Você nem deve imaginar que, muitas vezes, os seus filmes, séries, personagens, livros, quadros favoritos não são, na verdade, 100% originais. É claro, na arte, o ditado popular "Nada se cria, tudo se copia" não deixa de ser uma verdade: todo artista se inspira em outro, em uma cadeia infinita que transcende gerações.
E ninguém está imune a isso, você sabe. Se existe 'O Rei Leão', é porque Shakespeare concebeu 'Hamlet'; se existe 'Cisne Negro', é porque Satoshi Kon lançou sua animação 'Perfect Blue'. E se existe o Coringa, é porque em um dia de 1928, o diretor expressionista Paul Leni estreou sua bizarra adaptação do livro de Victor Hugo, 'O Homem que Ri'.
Ridi Pagliaccio
O Coringa é, provavelmente, o maior vilão dos quadrinhos. Seja em relação a DC Comics ou a suas concorrentes, em especial a Marvel, trata-se de um dos personagens mais marcantes, complexos e misteriosos de todo o universo pop.
Sim, é fato que existem outros supervilões de poderes muito maiores e mais interessantes dos que os do palhaço assassino -- Darkseid' e Lex Luthor são, tecnicamente, muito mais poderosos --, mas ainda assim, nenhum outro é tão icônico quanto o próprio Coringa.
![O Coringa dos quadrinhos oficiais do Batman — Foto: Reprodução](https://cdn.statically.io/img/s2-monet.glbimg.com/2oLJs6ka4bU52IX_lpKy1Of42NM=/0x0:620x348/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_e7c91519bbbb4fadb4e509085746275d/internal_photos/bs/2024/Q/D/sNrBxKT5K8Ansk7JygeQ/coringa-cla-ssico-cke-x1a7.jpg)
Surgido pela primeira vez na edição de estreia dos gibis do Batman, em abril de 1940, o Coringa foi o arquiinimigo inicial do Homem-Morcego. Por incrível que pareça, foi idealizado pelo trio de quadrinistas Bob Kane, Bill Finger e Jerry Robinson como um personagem de aparição única: o antagonista seria apenas um pontapé para que Bruce Wayne virasse a estrela da série.
E isso é visto nos detalhes: na leitura inaugural, o Coringa era apenas descrito como um "gênio do crime com algum senso de humor". Os planos não seguiram como o imaginado. Ao decorrer da década de 1940, o vilão reapareceu por diversas vezes, tornando-se um grande destaque do terreno de Gotham City.
![O Coringa se tornou um ícone, favorito entre os fãs dos quadrinhos — Foto: Reprodução](https://cdn.statically.io/img/s2-monet.glbimg.com/pLlarEnPT6gidZ4xD1eHnTvzFMQ=/0x0:1280x640/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_e7c91519bbbb4fadb4e509085746275d/internal_photos/bs/2024/d/a/FhIHsBQbKqAliHxUrfcQ/the-joker-detective-comics-69-cover.avif)
E sim, o retorno do Coringa aos quadrinhos com certa insistência se devia principalmente a sua popularidade entre os fãs: o visual colorido, o cabelo penteado para trás, conjunto ao sorriso macabro acabaram por criar uma horda de fãs.
Talvez pela grande quantidade de crianças aderindo aos gibis, o personagem, no final dos anos 1940, foi repaginado como apenas um pregador de peças barato. Não agradou, e o Coringa caiu no esquecimento entre as décadas de 1950 e principalmente 1960 -- mesmo que estivesse na TV, na clássica série, interpretado por Cesar Romero.
![Cesar Romero como o primeiro Coringa da televisão — Foto: Reprodução | Warner Bros.](https://cdn.statically.io/img/s2-monet.glbimg.com/eMIeeiEW3y68qSTbxj5ov96HlLU=/0x0:1000x753/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_e7c91519bbbb4fadb4e509085746275d/internal_photos/bs/2024/8/o/oqJszdSc2PPHsLqLCpYg/the-joker-batman-television-series-1966.jpg)
Seu devido retorno só veio na década seguinte, e a popularidade cresceu na década de 1990, quando Jack Nicholson encarnou, pela primeira vez no cinema, o papel do Príncipe do Crime em uma de suas mais icônicas atuações -- em 1989, no filme de Tim Burton, 'Batman'.
Não por acaso a encarnação é tão icônica: Nicholson embolsou o absurdo cachê de 90 milhões de dólares, o maior salário de um ator de todos os tempos.
![Jack Nicholson como o Coringa em 'Batman' (1989) — Foto: divulgação](https://cdn.statically.io/img/s2-monet.glbimg.com/z2aLc3dEXXQ6FNrrSjo0D1_g7I4=/0x0:3631x2374/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_e7c91519bbbb4fadb4e509085746275d/internal_photos/bs/2024/g/r/AkfwanSGqHLmB5ZE89Fg/jack-nicholson-coringa-3.jpg)
A versão do Coringa como o conhecemos hoje -- obscuro, assustador; um homem (ou um monstro) cujas origens são praticamente impossíveis de confirmar, e que é, em suma, o mal encarnado (já que não tem motivação material nenhuma, e visa apenas causar o pânico em Gotham e fazer o Batman pagar o pato) -- surgiu no final da década de 1990, ficando ainda vez mais notável com a HQ de Alan Moore, 'A Piada Mortal' (1998).
Dez anos depois, Heath Ledger iria finalmente elevar o personagem a um patamar além da imortalidade, tornando-o referência para atores, diretores, escritores e praticamente qualquer pessoa que queira se inspirar em criar um personagem tão completo ou entregar uma atuação tão próxima da pura realidade.
Ainda que Jared Leto tenha se arriscado a interpretar o mesmo papel em 'Esquadrão Suicida' (2016), o apelo crítico ao personagem só veio três anos mais tarde, quando Joaquin Phoenix tomou o papel de Arthur Fleck em 'Coringa'.
Tanto Ledger quanto Phoenix tornaram o Coringa um dos únicos personagens a ganhar o Oscar em filmes e intérpretes diferentes.
![Heath Ledger como o Coringa de 'Batman: O Cavaleiro das Trevas' — Foto: Reprodução](https://cdn.statically.io/img/s2-monet.glbimg.com/6avcqeGjxleHiJOQ9pQHF48vX6M=/0x0:1280x720/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_e7c91519bbbb4fadb4e509085746275d/internal_photos/bs/2024/u/a/BRBFeESGGAMytqdfDvoQ/75c40e54349fe16f5fa09dc6922d1fc8.jpg)
![Joaquin Phoenix em Coringa (2019), filme que lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator — Foto: divulgação](https://cdn.statically.io/img/s2-monet.glbimg.com/ww0AIxeo-i-gYj667buLnb2H9ok=/0x0:1449x853/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_e7c91519bbbb4fadb4e509085746275d/internal_photos/bs/2022/D/8/klUJonSgaVUcIStEkHQQ/joaquin-phoenix-coringa.jpg)
Iguais na forma, mas com diferenças no conteúdo
Ao todo são 84 anos de história. E o Coringa jamais foi esquecido -- e nem será. Seja em um futuro próximo ou não, o personagem lançado na década de 1940, sob um contexto cultural completamente diferente do contemporâneo, escrito e desenhado sob uma ótica completamente diferente do que se vê hoje, teve o poder de se reinventar tão poderosamente que do mundo dos super-heróis, conseguiu migrar para a comédia, para o suspense, para o thriller, para o terror e para o drama, em todos os quatro cantos do mundo.
Mas como? O que é que faz o Coringa tão especial? Talvez esteja relacionado às suas origens. Não narrativamente, mas sim, conceitualmente. Ele é cria de direta de um dos mais clássicos personagens, e um dos mais icônicos filmes de toda a história do cinema: 'O Homem que Ri', de 1928.
![Conrad Veidt como Gwynplaine de 'O Homem que Ri' — Foto: Reprodução](https://cdn.statically.io/img/s2-monet.glbimg.com/Xzg8JEPlLL_l9J_-DSlMQWf1_TI=/0x0:1068x900/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_e7c91519bbbb4fadb4e509085746275d/internal_photos/bs/2024/x/l/Si5v02TGmUq5H9MCbefw/aaaaaa.jpg)
Na década de 1920, originalidade narrativa era sim importante, mas a adaptação de histórias oriundas de outros meios era ainda mais comum. Fosse no Expressionismo Alemão ou nos primeiros anos da indústria hollywoodiana, adaptar sucessos da literatura era certeiro. E 'O Homem que Ri', filme americano mudo do final de 1920, encaixa-se perfeitamente nesse contexto, já que faz a versão em imagens o livro homônimo do escritor Victor Hugo.
No enredo, escrito originalmente em 1869, o jovem Gwynplaine é sequestrado a mando do Rei pelo crime de traição cometido por seu pai, o Lorde Clancharlie. Como castigo pelo erro do patriarca, o pequeno garoto tem o rosto deformado, que crava um sorriso em seu rosto para todo sempre. Após a morte do pai, Gwynplaine é adotado pelo dono de um circo, e é transformado em uma das atrações do show de horrores.
Renegado pela sociedade, visto como um monstro e uma mera atração, o protagonista é confrontado pelo amor da jovem Dea, uma garota cega, e pela promessa de destruição pelo bobo da corte do Rei James II.
!['O Homem que Ri' é a adaptação cinematográfica do livro de Victor Hugo — Foto: Reprodução](https://cdn.statically.io/img/s2-monet.glbimg.com/SjZrL3Hfm9t3MxBhw1WleWZ6ATg=/0x0:800x450/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_e7c91519bbbb4fadb4e509085746275d/internal_photos/bs/2024/G/M/BBFR2XQlSq2Jgm9MftHw/image-w1280.webp)
Logo de cara, o visual do personagem é facilmente reconhecível: cabelos penteados para trás, uma maquiagem escura que destaca os olhos, o rosto recoberto por uma base clara. O que provoca o contraste com os olhos, e é claro, o principal de tudo: um sorriso assustadoramente gigantesco.
A semelhança de fato não tem nada de mera coincidência: os quadrinistas Kane, Finger e Robinson confirmaram: o visual do Coringa só é do jeito que é, por causa de Gwynplaine do filme.
E "semelhança" é uma palavra muito modesta para comparar os dois personagens. Eles são praticamente idênticos. O ator que interpretou o tal 'Homem que Ri', Conrad Veidt, em 1928 e o desenho dos quadrinhos de 1940 têm até o formato do rosto semelhante: ambos são especialmente alongados, quase quadrangulares, e de queixo fino.
Gwynplaine e o Coringa das HQs também aparecem muitas vezes curvados. A diferença é que o Homem que Ri se curva por vergonha, enquanto o Coringa talvez apareça curvado uma vez ou outra, como uma característica comum da expressão corporal ao representar uma certa perversidade escondida.
![Conrad Veidt em 'O Homem que Ri' — Foto: Reprodução](https://cdn.statically.io/img/s2-monet.glbimg.com/n-ggBN265i59r3KPh6q9B1HmbfY=/0x0:1024x847/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_e7c91519bbbb4fadb4e509085746275d/internal_photos/bs/2024/R/Q/60rjs0T7SOsBNc1XSjXg/hands-the-man-who-lauhs-1024x847.jpg)
![O Coringa clássico dos quadrinhos — Foto: Reprodução | DC Comics](https://cdn.statically.io/img/s2-monet.glbimg.com/lNh8xiVfeb62o3a28PhbBifAdG4=/0x0:3840x2160/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_e7c91519bbbb4fadb4e509085746275d/internal_photos/bs/2024/O/D/YP6co6QImp9AELLqIwYQ/joker-0924-news-heroc-v1.jpg)
A combinação deu muito mais do que certo, é óbvio. A dramaticidade do protagonista de 'O Homem que Ri', reminiscente dos visuais do Expressionismo Alemão, deu ao personagem uma cara especialmente abstrata: apesar de sua bondade e graciosidade, o visual assustador é praticamente impossível de ser ignorado. É um personagem de duas caras, é e não é. Gwynplaine é uma das primeiras versões da ideia do "Não julgue um livro pela capa" e "A beleza de dentro é a que mais importa", enquanto o Coringa é totalmente o oposto: ele é o puro mal. Visualmente, essencialmente. Não há bondade escondida sob seu rosto marcado, ele é o que é.
Coringa é quase como um comentário sarcástico à idealização de Gwynplaine -- algo tão característico ao seu personagem. E mesmo anos depois, continua imortal e supera a ideia de "O assustador pode esconder o que é bom". Basicamente, a própria criação do Coringa soa como um grande plano do próprio gênio do crime: não há esperança nenhuma, não há por que procurar a bondade em lugar algum. Ela não existe.
![O Coringa dos quadrinhos — Foto: Reprodução | DC Comics](https://cdn.statically.io/img/s2-monet.glbimg.com/VBp8d-XmgviaYm5cUBGuZubcio0=/0x0:1200x675/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_e7c91519bbbb4fadb4e509085746275d/internal_photos/bs/2024/p/U/gvQNA8Ssu4D7UgKWtL4w/img-15120fd15349-1.0.jpg)
Ainda que só o visual de Gwynplaine tenha sido a única inspiração do trio para o personagem dos quadrinhos, parte da essência dos dois é parecida: tanto ele quanto o Coringa são rejeitados pela sociedade.
A diferença é que 'O Homem que Ri' encontra uma saída do sentimento de rejeição através do amor, enquanto o Coringa, a encontra por meio do caos e da maldade.
![Cena de 'O Homem que Ri' (1928) — Foto: Reprodução](https://cdn.statically.io/img/s2-monet.glbimg.com/ioke-iD0Ws09Sw681tgiIAQHR5M=/0x0:1296x730/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_e7c91519bbbb4fadb4e509085746275d/internal_photos/bs/2024/A/I/I5VxYxSQyWD3Z7j9hKSg/the-man-who-laughs-1928-photofest-still-h-2019-.webp)
Quase 100 anos após o lançamento do filme 'O Homem que Ri' e 84 anos após a primeira aparição do Coringa nos quadrinhos, o arquétipo permanece um ícone atemporal, sempre se reinventando sob novos contextos culturais -- não por acaso estará de volta, agora, em um musical, ao lado de uma das mais icônicas divas da música pop contemporânea em 'Coringa: Delírio a Dois'.
Confira o trailer de 'O Homem que Ri', filme que inspirou a criação do Coringa. Em seguida, relembre o trailer de 'Coringa' e confira o de 'Coringa: Delírio a Dois'.
*Com edição de Luís Alberto Nogueira