Moda
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Por Rafaela Fleur (@rafaelafleur)


Era um sábado, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Na 52ª edição do São Paulo Fashion Week (SPFW), maior semana de moda do Brasil, que aconteceu entre os dias 17 e 21 do mês passado, apenas estilistas pretos iriam desfilar. O momento já tinha tudo para ser marcante, mas a marca Mile Lab se encarregou de transformar a ocasião em um marco inesquecível. Com o desfile-manifesto FLVXO MILENVR, a etiqueta verbalizou duras críticas ao evento, denunciou falta de apoio, questionou a efetividade “da tal cota de diversidade” e dividiu com o público uma série de incômodos que, até então, estavam restritos aos bastidores. Nos 26 anos de SPFW, nunca havia acontecido nada parecido. A apresentação mais aplaudida da última edição tinha um plano, e conseguiu exatamente o que queria: fazer revolução - e, de quebra, organizar um grande baile funk em plena passarela.

Mas, qual foi a motivação por trás de tudo isso? Para começar, a Mile Lab é uma marca periférica. Não apenas porque foi fundada e é sustentada no Grajaú, na capital paulista, mas porque Milena Nascimento, estilista à frente da etiqueta, faz questão de levantar a bandeira da autointitulada "moda marginal" em todos os detalhes. "As roupas são um veículo, mas a marca é um projeto afetivo de comunidade, da minha comunidade", explica. Entendido isso, vamos para o segundo ponto de atenção: como ela foi parar na maior semana de moda do Brasil? A resposta está no projeto Sankofa.

Backstage da marca Mile Lab no SPFW (Foto: Reprodução/Instagram @amandarodfoto/ @periferiaemmovimento) — Foto: Glamour
Backstage da marca Mile Lab no SPFW (Foto: Reprodução/Instagram @amandarodfoto/ @periferiaemmovimento) — Foto: Glamour

Lançada na 51ª edição do SPFW, que aconteceu em junho deste ano, a iniciativa busca aumentar a inclusão de pessoas racializadas no evento. Criada pelo movimento Pretos na Moda em parceria com a startup de inovação social VAMO (Vetro Afro Indígena na Moda), o projeto elegeu oito marcas independentes para passarem por uma série de consultorias e participar da semana de moda. A ideia da é dar visibilidade e auxiliar no desenvolvimento desses negócios para que eles ganhem relevância nacionalmente - mas algumas lacunas ainda parecem não estar preenchidas.

"Desenvolvi uma coleção absurda para ser apresentada, mas, quando me deparei com os custos daquilo, comecei a me questionar sobre o lugar em que eu estava sendo inserida. Como eu iria desembolsar, no mínimo, 40 mil reais para fazer uma coleção? Um valor que nunca vi na minha conta, que nunca tive acesso?", relata Milena." -

O modelo Silvio Brandão (aka SLV Venenoso) no desfile FLVXO MILENVAR (Foto: Reprodução/Instagram @amandarodfoto/ @periferiaemmovimento) — Foto: Glamour
O modelo Silvio Brandão (aka SLV Venenoso) no desfile FLVXO MILENVAR (Foto: Reprodução/Instagram @amandarodfoto/ @periferiaemmovimento) — Foto: Glamour

Inspirada por suas avós costureiras, Maria Nascimento e Arlene Soares, a estilista sempre quis trabalhar com moda, e a primeira oportunidade veio aos 18 anos, quando ela foi contratada pelo próprio SPFW para ser camareira. Justamente por já ter estado do outro lado, Milena confessa que uma das suas maiores preocupações foi com o bem-estar da sua equipe. "Os últimos dias antes do desfile me levaram para um lugar em que eu detesto acessar, o de necessidade. O desespero de não ter o básico. De faltar coisas em casa, mas correr atrás de, pelo menos, oferecer um lanche e um suco para a equipe e para os modelos nas provas de roupa, nos shootings de campanha. Isso me desestabilizou, mas todos os dias sigo tentando tirar forças de onde não tenho para me manter de pé", confessa.

Mile Lab apresentando o desfile FLVXO MILENVAR no SPFW (Foto: Reprodução/Instagram @amandarodfoto/ @periferiaemmovimento) — Foto: Glamour
Mile Lab apresentando o desfile FLVXO MILENVAR no SPFW (Foto: Reprodução/Instagram @amandarodfoto/ @periferiaemmovimento) — Foto: Glamour

Entre denúncias e desabafos muitíssimo bem justificados, Milena Nascimento divide detalhes do processo de desenvolvimento do desfile, compartilha projetos futuros e conta o que mudou na Mile Lab após a repercussão do SPFW. Confira a entrevista exclusiva:

Quais foram os maiores desafios que você enfrentou para colocar este desfile no SPFW?
Falta de grana. Eles querem preencher essa cota de pessoas pretas, periféricas, mas oferecem o mesmo sistema que é oferecido a marcas lideradas por gente branca e de classe média alta. Desse jeito, a conta nunca bate. Desenvolvi uma coleção absurda para ser apresentada, mas, quando me deparei com os custos daquilo, comecei a me questionar sobre o lugar que eu estava sendo inserida. Como eu iria desembolsar, no mínimo, 40 mil reais para fazer uma coleção? Um valor que nunca vi na minha conta, que nunca tive acesso? Para não desistir, começamos a correr atrás de investimentos, tentamos conseguir atenção de grandes marcas que, no final das contas, achavam a nossa proposta linda, mas não entendiam que o nosso corre é diferente. Para quem é de quebrada não tem essa de pagamento em 90 dias, a gente precisa para hoje. E fomos atrás de investimento, não de prestação de serviço. Ficamos semanas esperando um retorno para receber diversos "nãos" no final.

Você disse que pensou em desistir muitas vezes. O que te motivou a continuar?
Minha rede de apoio. Sou absurdamente grata pela minha mãe, Edna Nascimento, meu pai Henrique Silva, Cintia Felix, Natasha Soares, Italo Augusto, Leticia Mestiça, Breno Luan e toda a equipe que sempre me deu suporte e um colo quando eu mais precisei. Se a gente fez o que fez, foi porque eles ficaram do meu lado. A força do coletivo é realmente o que me move.

Como foram os momentos que antecederam o desfile? Rolou muita tensão, como estava o clima?
Foi um dos momentos mais gostosos que já vivi. Para quem trabalha dentro dos backstages de moda, sabe o quanto aquele lugar é tenso, estressante e difícil de se manter com sorriso no rosto, mas desde que comecei a trabalhar em equipe, a minha maior preocupação era saber se os meus estavam bem, se estavam tranquilos. E antes do desfile, não foi diferente. Em meio a tanta correria, nós celebramos, dançamos, demos muitas risadas, pois todo mundo já estava bem alinhado com o que deveria fazer e entregar naquela passarela. Foi sobre trabalhar a autoestima de todos ali. E o que vocês viram na passarela, foi justamente o que já estava rolando no camarim: o nosso baile.

A repercussão do desfile foi grande, e trouxe muita visibilidade para a marca. Como você pretende aproveitar esse momento em que a Mile está em foco?
Os dias estão sendo insanos e estamos felizes demais em ver o quanto conseguimos gerar um impacto tão positivo, que nada tem a ver com números em redes sociais, mas sim em como isso ajudou muita gente a ter forças para fazer acontecer também, o quanto isso inspirou e representou um país inteiro. Agora, nosso objetivo é fazer mudanças acontecerem, começando pelo nosso negócio. Fazer a Mile Lab crescer enquanto potência mercadológica, queremos vender, vender muito, para começar a nos pagar e não sofrer para ter o básico.

Você pensa em se apresentar na próxima edição?
Só iremos voltar naquela passarela se entrarem com recursos, com investimento. Não adianta usar a mesma régua que se usa com marcas veteranas e já consolidadas. O país está mudando, e queremos mudanças imediatas. Eu e outros estilistas emergentes precisamos de capital para fazer as coisas acontecerem. Como iremos pensar em inovações, quando a nossa criatividade é explorada pela necessidade de pôr comida na mesa? E não estou falando de investimento apenas em matéria-prima e insumos de produção, precisamos de dinheiro. Mais nítida que isso eu não consigo ser.

Você sofreu algum tipo de boicote pós-desfile? Se sentiu ameaçada de alguma forma?
Quando decidi fazer o manifesto, aquilo parecia muito complexo de ser executado, utilizar do próprio evento para se manifestar contra ele. Tive muitas crises de ansiedade, foram várias sessões de terapia para poder lidar com o medo que estava sentindo. Pensei que poderiam me arrastar de lá, tirar o microfone das nossas mãos, rasgar o papel com meu discursos, nos expulsarem. Definitivamente, nos preparamos para o pior. Me alivia saber que isso não aconteceu, mas já esperávamos boicote e silenciamento. Por mais que diversos veículos e influenciadores não tenham se pronunciado, nosso recado foi dado. E quem tinha que nos ouvir, nos ouviu!

Quais foram as principais mensagens que o FLVXO MILENVAR quis passar?
A principal foi conseguir falar o que ninguém teve coragem até agora. O desfile surge como um ato de manifesto para reafirmar nossa existência no agora e, consequentemente, no futuro, lutando contra um sistema de extermínio dentro das favelas, contra a precarização dos nossos trabalhos e a invisibilidade do que é ser um corpo preto e marginal no mundo, e principalmente, na moda. E o funk é a trilha sonora da favela do futuro, é o ritmo do nosso FLVXO.

O que o SPFW precisa fazer para ir além da cota da diversidade e, de fato, ajudar marcas menores e periféricas? Onde o Sankofa está falhando?
Investir capital e assumir a culpa pelas dores que levamos naquele dia. Eles fingem que estão lutando com a gente, mas não nos ouvem. Ninguém veio conversar com a gente, ninguém nos procurou para discutir sobre mudanças, sobre como podem ajudar. Fomos apenas convidados para uma live, que eu me questiono até hoje qual foi o propósito. Não vou ser hipócrita e fingir que, depois de tudo isso, está tudo bem, que eles são nossos aliados. Se não chegarem com as ferramentas, com o que a gente realmente precisa, não tem conversa. Lives se fazem aos montes, mas não é isso que queremos. Queremos mudança nas estruturas, que as bases sejam outras. Sobre o Sankofa, entendo muito o projeto enquanto algo que está nascendo, que está criando formas e tem muito a melhorar.

Algo que não te perguntei, mas você gostaria de acrescentar?
O quanto tudo isso só foi possível com uma comunidade inteira em prol de algo tão importante para o nosso povo, de colocar a nossa identidade no mapa. Agradecimentos a uma equipe absurda e aos nossos verdadeiros apoiadores: a quebrada! Queria destacar o trabalho impecável da beleza do nosso desfile, liderado por Leticia Mestiça, Victor Viana e Rodrag. Ao trabalho absurdo de audiovisual, como o nosso fashion film e trilha sonora, por Lucas Antonio ,e fotografia por Vinicius Marques. Meu costureiro, Danilo Chagas, minhas grandes produtoras, Andy Reis e Sabrina Rodrigues. O criativo Breno Luan e o responsável pela liderança de comunicação e tecnologia, Italo Augusto . E meu grande apoiador e investidor das pipas do desfile, Hamilton. Sou grata também a Glamour, por nos ouvir, colaborar com nossa luta e realizar um trabalho sincero e necessário, quando poucos fazem isso.

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