História

Por *Hebe Mattos, Keila Grinberg, Martha Abreu e Monica Lima | The Conversation

A recente ação do Ministério Público Federal, que notificou o Banco do Brasil para apurar o envolvimento do banco no tráfico de africanos escravizados a partir de um documento elaborado por 14 historiadores, reaqueceu o debate público sobre reparação e o passado escravista brasileiro.

O documento explicita a relação entre o banco e a escravidão. Como, por exemplo, na comprovação da existência de vínculos diretos entre traficantes e o capital investido no banco, e o benefício que a instituição obteve com o mercado de crédito lastreado pela escravidão.

Cabe lembrar que, além de resultado das nossas próprias pesquisas, as informações contidas no texto que enviamos ao Banco são resultado de décadas de investimento público em pesquisa histórica, todas realizadas no âmbito das universidades públicas brasileiras. Se foram pouco divulgadas até agora, não resta dúvida de que devem sê-lo com maior intensidade. Afinal, trata-se de informação pública. É nossa responsabilidade compartilhar o conhecimento gestado na universidade.

História da historiografia

Poucos temas receberam tanta atenção dos historiadores brasileiros quanto a escravidão. Não somos exceção. De fato, a escravidão brasileira é muito mais do que um tema de estudo: é a espinha dorsal da nossa sociedade desde o início da colonização portuguesa. É impossível estudar a história do Brasil sem abordar o tema da escravidão.

A história da historiografia sobre a escravidão remonta pelo menos às décadas de 1930 e 1940, quando teve início um intenso debate intelectual transnacional sobre a escravidão nas Américas. Mas foi principalmente a partir dos anos 1980 que as relações sociais constituídas a partir do universo da escravidão passaram a ser estudadas a partir de múltiplas perspectivas, e principalmente a partir da análise de documentação muito variada.

Há cerca de 40 anos, historiadores interessados em estudar a agência de indivíduos escravizados passaram a buscar novas fontes, como processos judiciais, inventários, testamentos, cartas de alforrias, e a partir delas começaram a estudar temas como fugas e revoltas, religião, condições de vida e trabalho, criminalidade e justiça. Esse investimento a longo prazo na pesquisa arquivística gerou uma produção acadêmica pujante e complexa.

Embora vez ou outra historiadores e jornalistas ainda cedam ao apelo de escrever algo sensacionalista sobre a descoberta de documentos inéditos – sempre haverá alguma fonte que nunca ninguém leu sobre algum assunto –, a novidade da produção intelectual contemporânea sobre a escravidão não está nos segredos guardados nos arquivos.

Ressignificação da produção de conhecimento histórico

A novidade está na adoção de duas perspectivas combinadas: a primeira, que se convencionou chamar de História Pública, é o engajamento, por parte de historiadores profissionais, em produzir uma história que tenha sentido para além dos domínios da universidade.

A questão é que, para se produzir conhecimento histórico público relevante, não basta escrever para o público; é preciso escrever em diálogo com ele. Nesse sentido, os historiadores públicos da escravidão vêm dando uma contribuição fundamental para a ressignificação da produção do conhecimento histórico no Brasil.

Desde o início do processo de redemocratização, em 1985, a sociedade e o Estado brasileiros começavam a reconhecer a legitimidade da busca por direitos encampada pelo movimento negro por tanto tempo.

Os ativistas desempenharam um papel fundamental na regulamentação da igualdade racial e na proteção das expressões das culturas populares afrodescendentes e indígenas na Constituição de 1988, e abriram caminho para outras reivindicações, como a defesa das ações afirmativas, das cotas raciais e da inclusão da história da África e da cultura afro-brasileira como componentes curriculares obrigatórios na Educação Básica do país, o que ocorreu através da lei 10.639 de 2003, e de uma política nacional de ação afirmativa.

Em 2001, o tráfico atlântico de africanos escravizados para as Américas foi classificado pela Organização das Nações Unidas [ONU] como um crime contra a humanidade. A Conferência de Durban, realizada no mesmo ano, foi central na definição do conceito de reparação aplicado ao passado escravista.

Ao discursar em defesa das cotas no Supremo Tribunal Federal em 2010, o historiador Luiz Felipe de Alencastro nomeou a conivência do Estado brasileiro com a ilegalidade do tráfico de escravizados no século XIX de “pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira.”

Como Alencastro, vários historiadores da escravidão brasileira hoje se dedicam a contribuir para superar esse “pecado original”, encontrando na História a fundamentação da ação política do presente, e demonstrando a conexão entre os acontecimentos do passado e as lutas por direitos na contemporaneidade.

Projeto Passados Presentes

Este é justamente o caso do projeto Passados Presentes: memória da escravidão no Brasil, coordenado por nós, autoras deste artigo. Um entre vários projetos que há um bom tempo vem contribuindo para a tomada de consciência sobre a importância de se discutir com o grande público os efeitos do passado escravista na sociedade brasileira contemporânea.

No final dos anos 1990, ainda denominado Memórias do Cativeiro, Hebe Mattos deu início a uma série de entrevistas com descendentes da última geração de africanos escravizados no Rio de Janeiro.

Já em parceria com Martha Abreu, essas entrevistas, que hoje compõem o acervo do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, deram origem a outros projetos e filmes de pesquisa (Memórias do Cativeiro, Jongos, Calangos e Folias: música negra, memória e poesia, Versos e Cacetes: o jogo de pau na cultura afro-fluminense, com Matthias Assunção, e Passados Presentes: memória negra no sul fluminense).

O esforço de pesquisa e produção de fontes rendeu outros frutos, entre eles a produção, por Mattos, Abreu e Milton Guran, em parceria com vários historiadores de universidades brasileiras, do Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil (2013).

Já com a presença de Keila Grinberg, elas se propuseram a transformar o inventário em um banco de dados digital. A ideia inicial era disponibilizar as informações sobre os lugares de memória já incluídos no inventário, acrescidos de verbetes sobre o patrimônio imaterial do estado do Rio de Janeiro, tais como rodas de capoeira e grupos de jongo, localizando-os em um grande mapa digital do Brasil.

Participação de quilombolas

Foi aí que, de História para o público, passamos de fato a trabalhar em autoria compartilhada com lideranças de comunidades quilombolas do Rio de Janeiro. A parceria com comunidades de descendentes diretos de escravizados trouxe novas reflexões e demandas de pesquisa.

Agora batizado de Passados Presentes, o projeto acabou sendo transformado num projeto de turismo de memória realizado em parceria com as comunidades jongueiras de Pinheiral e quilombolas de Bracuí (Angra dos Reis) e de São José (Valença).

Visão geral do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. O local era conhecido por ser o desembarque de escravizados — Foto: wikimedia commons
Visão geral do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. O local era conhecido por ser o desembarque de escravizados — Foto: wikimedia commons

Para incentivar a visitação pública, construímos memoriais a céu aberto e desenvolvemos quatro aplicativos para celular com roteiros turísticos, incluindo também a Pequena África, região na zona portuária do Rio de Janeiro reconhecida pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade, que compreende o cais do Valongo, o quilombo da Pedra do Sal e o Instituto dos Pretos Novos, onde foi descoberto um grande cemitério de pretos novos, africanos escravizados que não sobreviveram à chegada ao país.

Ainda no Rio de Janeiro, agora com a entrada de Monica Lima, participamos das discussões sobre a patrimonialização do Valongo, a sinalização da região da Pequena África e a inclusão de novos locais relativos à memória da escravidão e à história da cultura afro-brasileira no mapeamento digital da cidade.

O projeto ganhou dimensões que jamais poderíamos imaginar: em 2015, Pinheiral recebeu o título de “capital do jongo” e a antiga sede da Fazenda do Pinheiro foi transformada no Parque Municipal das Ruínas da Fazenda São José do Pinheiro; no ano seguinte, em conjunto com as lideranças das comunidades negras do Pinheiral e de São José, fomos chamadas a colaborar na reorganização de visitas turísticas em fazendas do Vale do Paraíba.

No quilombo do Bracuí, entre outras iniciativas, o projeto atraiu a atenção de arqueólogos subaquáticos do Brasil e dos Estados Unidos, que, em conjunto com lideranças da comunidade, vêm buscando encontrar vestígios do navio escravagista Camargo, que afundou na baía de Angra dos Reis em 1852.

Parcerias internacionais

Atualmente, em parceria com pesquisadores e membros de comunidades, o projeto vem sendo expandido para incorporar a região de Minas Gerais e para desenvolver conteúdo para a Wikipedia; em parceria com o Instituto Smithsonian, o Museu Histórico Nacional, o Arquivo Nacional e comunidades locais, o grupo prepara a curadoria de uma série de exposições no Rio de Janeiro.

Todo o material de entrevistas está sendo transcrito e traduzido para o inglês, para constituir a Special Collection on Afro-Brazilian History and Culture, da University of Pittsburgh; também lá, o mapeamento digital e o método de criação compartilhada do Passados Presentes está sendo a base para elaboração de um grande projeto digital denominado Atlas de Injustiças Históricas.

E, por fim, em conjunto com outros historiadores de todo o país, viemos a público discutir a conexão das instituições brasileiras com a escravidão — e engrossar a demanda por reparação histórica.

É justamente a partir da articulação entre historiadores e o público que fundamentamos historicamente a argumentação em torno do direito à memória e à reparação histórica. Ao ajudarmos a trazer o passado para o centro do debate público contemporâneo sobre o racismo e as injustiças históricas da sociedade brasileira, estamos agindo conforme a nossa responsabilidade: compartilhamos com a sociedade as informações que coletamos em nossas pesquisas e que lhe são de direito conhecer.

O que se fará com essas informações, quais e como serão os pedidos de reparação, cabe à sociedade discutir e cobrar das instituições pertinentes. A luta pela reparação implica luta pela memória e pelo conhecimento da História. Só assim é possível lidar com os traumas da sociedade brasileira; só assim é possível fazer com que o passado – este passado que remonta ao período escravista, e que se reencena hoje em dia na forma de racismo – passe de uma vez.

*Hebe Mattos é historiadora do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense; Keila Grinberg é professora do Departamento de História e diretora do Center for Latin American Studies na University of Pittsburgh; Martha Abreu é professora do Programa de Pós-graduação em História na Universidade Federal Fluminense; e Monica Lima atua como professora do programa de pós-graduação em História Social e do Instituto de História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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