História

Por Laurie Marhoefer* | The Conversation*

No outono de 2022, um tribunal alemão ouviu um caso incomum. Foi um processo civil que surgiu de uma disputa no Twitter sobre se pessoas transsexuais foram vítimas do Holocausto. Embora não existam muitos debates sobre se gays e lésbicas foram perseguidos, houve poucos estudos sobre pessoas trans durante esse período.

O tribunal colheu depoimentos especializados de historiadores, inclusive eu, antes de concluir que as evidências históricas mostram que as pessoas trans foram, de fato, perseguidas pelo regime nazista. Esse é um caso importante. Foi a primeira vez que um tribunal reconheceu a perseguição de pessoas trans na Alemanha nazista.

Alguns meses depois, o Bundestag, o parlamento da Alemanha, divulgou formalmente uma declaração reconhecendo pessoas trans e cisgênero queer como vítimas do fascismo. Até os últimos anos, havia poucas pesquisas sobre pessoas trans durante o regime nazista. Historiadores como eu estão agora descobrindo mais casos, como o de Toni Simon.

Ser trans durante a República de Weimar

Em 1933, ano em que Hitler assumiu o poder, a polícia de Essen, na Alemanha, revogou a permissão de Toni Simon para se vestir de mulher em público. Simon, que estava na casa dos 40 anos, viveu como mulher por muitos anos.

A República de Weimar, o governo democrático mais tolerante que existiu antes de Hitler, reconheceu os direitos das pessoas trans, embora de forma relutante e limitada. Sob a república, a polícia concedeu licenças a pessoas trans como a que Simon tinha.

Na década de 1930, pessoas trans eram chamadas de transvestites, termo que atualmente é ofensivo, mas na época se aproximava do que hoje se entende por transgênero. As licenças da polícia eram chamadas de “certificados de travestis” e isentava uma pessoa das leis contra travestismo. Sob a República, as pessoas trans também podiam mudar seus nomes legalmente, embora tivessem que escolher em uma lista curta e pré-aprovada.

Em Berlim, as pessoas trans publicavam várias revistas e tinham um clube político. Algumas mulheres trans glamorosas trabalharam no famoso cabaré Eldorado. O sexólogo Magnus Hirschfeld, que dirigia o Instituto de Ciências Sexuais de Berlim, defendeu os direitos das pessoas transgênero.

A ascensão da Alemanha nazista destruiu esse ambiente relativamente aberto. Os nazistas fecharam as revistas, o Eldorado e o instituto Hirschfeld. A maioria das pessoas que tinham “certificados de travesti”, como Toni Simon, tiveram seus documentos revogados ou viveram impotentes enquanto a polícia se recusava a honrá-los. Isso foi apenas o começo do problema.

"Medidas draconianas" contra pessoas trans

Na Alemanha nazista, as pessoas trans não eram inclusas nas questões políticas como são hoje. Houve pouca discussão pública sobre pessoas trans. O que os nazistas disseram sobre eles, no entanto, foi arrepiante.

O autor de um livro de 1938 sobre “o problema do travestismo” escreveu que, antes de Hitler chegar ao poder, não havia muito que se pudesse fazer a respeito dos transgêneros, mas que na Alemanha nazista eles poderiam ser colocados em campos de concentração ou submetidos à castração forçada. Isso era bom, ele acreditava, porque a “mentalidade antissocial” das pessoas trans e sua supostamente frequente “atividade criminosa” justifica medidas draconianas do estado.

Toni Simon era uma pessoa corajosa. Encontrei seu arquivo policial pela primeira vez quando estava pesquisando pessoas trans no Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos. A polícia de Essen conhecia Simon como o atrevido proprietário de um clube underground onde pessoas LGBTQ se reuniam.

Em meados da década de 1930, ela foi levada ao tribunal por criticar o regime nazista. A essa altura, a Gestapo — polícia secreta criada pelos nazistas — já estava farta dela. Simon era um perigo para a juventude, escreveu um oficial da força-tarefa. Um campo de concentração era “absolutamente necessário”.

Não tenho certeza do que aconteceu com Simon. Seu arquivo termina abruptamente, com a Gestapo planejando sua prisão, mas não há documentos de prisão reais. Esperançosamente, ela escapou da polícia.

Outras mulheres trans não escaparam. No Arquivo do Estado de Hamburgo, li sobre H. Bode, que frequentemente saía em público vestindo-se de mulher e namorava homens. Sob a República de Weimar, ela possuía um certificado de travesti. A polícia nazista foi atrás dela por “travestir-se” e por fazer sexo com homens. Eles a consideravam masculina, então seus relacionamentos eram homossexuais e ilegais. Eles a enviaram para o campo de concentração de Buchenwald, onde ela foi assassinada.

Liddy Bacroff, de Hamburgo, também tinha um passe de travesti sob a República. Ela ganhava a vida vendendo sexo para clientes homens. Depois de 1933, a polícia foi atrás dela. Eles escreveram que ela era “fundamentalmente uma travesti” e uma “criminosa moral da pior espécie”. Ela também foi enviada para um campo, Mauthausen, e assassinada.

Trans-alemães

Por muito tempo, o público não conhecia as histórias das pessoas trans na Alemanha nazista. Histórias anteriores tendiam a confundir mulheres trans, o que era estranho: quando você lê os registros de seus interrogatórios policiais, muitas vezes elas são notavelmente claras sobre sua identidade de gênero, mesmo que não estivessem ajudando em nada seus casos ao fazê-lo. Bacroff, por exemplo, disse à polícia: “Minha percepção do meu sexo é total e completamente a de uma mulher”.

Também houve confusão causada por alguns casos que, porventura, vieram à tona primeiro. Nesses episódios, a polícia agiu com menos violência. Por exemplo, há um acontecimento bem conhecido em Berlim em que a polícia renovou o “certificado de travesti” de um homem trans depois de passar alguns meses em um campo de concentração.

Os historiadores inicialmente consideraram esse caso representativo. Agora que temos muito mais casos, podemos ver que foi uma situação isolada já que a polícia normalmente revogava os certificados.

Um problema atual

Hoje, os ataques de direita contra pessoas trans nos Estados Unidos estão se intensificando. Embora a Academia Americana de Pediatria e todas as principais associações médicas aprovem cuidados de saúde com afirmação de gênero para crianças trans, os políticos republicanos o proibiram em 19 estados, com ainda mais movimentos de proibição

A medicina de afirmação de gênero já tem mais de 100 anos – e tem raízes na Alemanha de Weimar. Nunca antes havia sido legalmente restrito nos EUA. No entanto, o estado de Missouri basicamente o proibiu para adultos, e outros estados estão tentando restringir o atendimento a adultos. Uma série de outros projetos de lei antitrans está tramitando nas legislaturas estaduais.

Acho apropriado, então, que A Transparent Musical tenha estreado recentemente em Los Angeles. Nele, berlinenses trans fabulosamente vestidos cantam e dançam desafiando os bandidos nazistas. É um lembrete de que os ataques a pessoas trans não são novidade – e que muitos deles saíram direto do manual nazista.

*Laurie Marhoefer é professor de História na Universidade de Washington, nos Estados Unidos, e historiador de pessoas queer e trans em Weimar e na Alemanha nazista.

Este texto foi originalmente publicado em inglês no site The Conversation

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