Livros

Por José Tadeu Arantes | Agência FAPESP

A despeito de seu caráter revolucionário, de ter colocado em xeque muitos valores estabelecidos, tanto estéticos quanto sociais, a chamada “arte moderna” foi notavelmente não inclusiva em relação às mulheres. Para provar isso, basta pensar em quantas artistas cubistas ou fauvistas mulheres foram retidas pela memória coletiva. Houve, é claro, grandes pintoras, escultoras e praticantes de outras modalidades das artes visuais, mas elas ficaram em segundo plano, à sombra dos modernistas do sexo masculino.

A genial artista mexicana Frida Kahlo (1907-1954), que se transformou nas últimas décadas em um ícone da cultura de massas e o pivô de um fenômeno global conhecido como Fridomania, foi, durante muito tempo, tratada nos livros sobre arte moderna como “Senhora Diego Rivera”, em alusão ao grande pintor a que muitos se referem agora como “o marido de Frida”.

Nesse contexto internacional, e ainda mais em um país periférico, provinciano e conservador como o Brasil da primeira metade do século 20, é surpreendente que ao menos duas pintoras tenham sido protagonistas de primeira linha do movimento modernista: Anita Malfatti (1889-1964) e Tarsila do Amaral (1886-1973).

Uma carta de Mário de Andrade (1893-1945) a Anita, escrita em 1924, dois anos depois da Semana de Arte Moderna, dá bem a medida desse protagonismo. “É engraçado! a pintura brasileira hoje está dependendo das mulheres e nas mãos delas! Tu, Tarsila e Zina sempre caminhando, enquanto os homens decaem”, disse-lhe o polimórfico autor de Macunaíma.

A terceira pintora citada por Mário, Zina Aita, nascida em Belo Horizonte em 1900, participou da Semana de Arte Moderna de 1922, mas, mudando-se para a Itália em 1924, onde passou a dirigir uma fábrica de cerâmicas, praticamente desapareceu do cenário artístico brasileiro. Morreu em Nápoles em 1967. Anita e Tarsila permaneceram ativas e reconhecidas até o fim de suas vidas.

As trajetórias artísticas das duas foram tratadas em profundidade no livro Mulheres modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira, de Ana Paula Cavalcanti Simioni, publicado pela Edusp com apoio da FAPESP.

O livro Mulheres modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira (Edusp, 2022) tem 360 páginas e pode ser adquirido por R$ 68,80 no site da editora. — Foto: Reprodução
O livro Mulheres modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira (Edusp, 2022) tem 360 páginas e pode ser adquirido por R$ 68,80 no site da editora. — Foto: Reprodução

Simioni é professora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), membro do Instituto de Estudos Avançados de Nantes e líder do grupo de pesquisa GAAI (Gênero, Arte, Artefato e Imagens). Além de Anita e Tarsila, seu livro dedica também um capítulo a Regina Gomide Graz (1897-1973), que acabou sendo subestimada como artista e reduzida à condição de esposa do pintor suíço John Graz e cultora de uma modalidade artística considerada “menor” e “tipicamente feminina”, as artes têxteis.

No entanto, a produção do casal, e particularmente de Regina Gomide Graz, pode hoje ser relida e compreendida como um importante capítulo da circulação dos paradigmas da arte total no Brasil.

“Parece ser uma singularidade do caso brasileiro o reconhecimento, já na época e não apenas postumamente, da importância de Anita e Tarsila como figuras centrais do modernismo. Na Semana de Arte Moderna de 1922, Anita ocupou um espaço expositivo maior do que o de todos os colegas. Tarsila, como se sabe, não participou da Semana, porque estava estudando em Paris, mas, depois de voltar a São Paulo, inseriu-se no grupo e foi rapidamente reconhecida pelos pares. Foi um desafio metodológico do livro entender essa singularidade, que contrasta com a ideia de exclusão das mulheres que permeia os trabalhos feministas no campo da história da arte”, diz Simioni.

A socióloga ressalta que Anita e Tarsila foram figuras centrais não apenas no período fundador do modernismo; mas também nas décadas de 1960 e 1970, durante a revivescência modernista. E pondera que, se as duas artistas não podem ser compreendidas pela lógica da exclusão, talvez seja possível enxergá-las a partir da ideia de terem ocupado lugares particulares, com vieses de gênero, nas narrativas modernistas.

“No contexto histórico em que se deu o modernismo, a ideia da domesticidade como único lugar de realização das mulheres burguesas, prevalente no século 19, já havia sido em certa medida superada. Como mostrou a pesquisadora argentina Georgina Guzmán, faz parte da ideologia, da mitologia, da modernidade a consideração da mulher como sujeito. Embora muitas vezes de maneira objetal, os próprios modernos expressaram uma espécie de fascínio pela imagem da mulher”, pondera Simioni.

E prossegue: “Um exemplo significativo, já discutido por Griselda Pollock [teórica das artes visuais, nascida na África do Sul em 1949], é o da emblemática figura do artista moderno como flâneur [passeador, caminhante ocioso] construída por Charles Baudelaire (1821-1867). Esse observador singular da vida moderna, que desfruta da liberdade de perambular, incógnito, por todos os espaços urbanos, dos palacetes aos bordéis, só poderia ser uma figura masculina. A mulher flaneuse (termo inexistente no feminino) é uma impossibilidade histórica. Baudelaire se refere à figura feminina como: ‘uma espécie de musa, estúpida talvez, mas bela, e que provoca nos homens as melhores obras’. Essa situação evidencia que, no despontar da experiência moderna, na França oitocentista, o reconhecimento conferido às mulheres era, como se vê, atrelado à noção de musa inspiradora dos grandes homens, e não como artista propriamente”.

Nesse sentido, é digno de nota o reconhecimento alcançado, em vida, por Anita e Tarsila. Para tanto não foi necessário que elas interiorizassem ou reproduzissem uma mitologia artística masculina. O desafio das mulheres dessa geração foi o de criarem algo novo: se afirmarem como artistas mulheres modernas.

Para tanto, Anita, Tarsila e Regina desenvolveram estratégias particulares de inserção no sistema artístico existente em São Paulo. Entre suas práticas e ações e o modo com que foram inseridas nas narrativas dominantes há, no entanto, algumas tensões.

“Anita, por exemplo, foi sendo cada vez mais construída como uma vítima de Monteiro Lobato (1882-1948), que criticou enfaticamente sua pintura no artigo Paranoia ou Mistificação’ publicado no jornal O Estado de S. Paulo. Já Tarsila foi sendo construída como uma musa. É impressionante como, no caso da Tarsila, tende-se a falar primeiro da beleza da artista e só depois das obras”, informa Simioni.

Esses vieses, de vítima ou de musa, é que enquadrariam e até mesmo confinariam as duas modernistas em lugares particulares na narrativa construída ao longo do século 20. A atribuição de fragilidade a Anita e o fascínio pela figura física de Tarsila foram frequentes nos colegas da mesma geração e reiterados por historiadores e críticos da arte posteriormente.

No caso de Regina Graz, a menos estudada das três, as referências constantemente enfatizam sua condição de “esposa” de artista. Como sustenta Simioni, os três lugares, vítima, musa e esposa acabam por reiterar estereótipos de feminilidade.

“Eu não acho que Anita legitimou essa narrativa. Sem ser rica e sem se casar, ela foi uma mulher que se sustentou a vida inteira com seu trabalho. Foi sozinha para Berlim e depois para Nova York. Sobreviveu artisticamente às críticas de Monteiro Lobato, sem desistir da pintura. Foi para a França novamente sozinha. Nunca dependeu de ninguém. Nas cartas que trocou com Mário de Andrade, a gente vê uma mulher determinada, que sabia o que queria e resistia às intervenções dele”, afirma a socióloga.

E continua: “O notável, no caso de Tarsila, é que ela participou ativamente de sua construção como musa. No livro, eu trabalhei muito o tema do Autorretrato au Manteau Rouge, uma famosa pintura de 1923. Nessa obra, Tarsila se coloca como uma mulher linda, cosmopolita, branca, elegante, sem aludir à sua condição de pintora, o que não é tão comum em autorretratos de artista. Essa construção merece ser vista em contraponto ao tratamento que dá ao corpo feminino na pintura A Negra, do mesmo ano”.

Trazendo a pintora mexicana para a pauta, Simioni enfatiza que tanto Tarsila quanto Frida foram mulheres conscientes de que o corpo feminino é, sempre, um corpo observado. E usaram isso a seu favor, construindo um discurso próprio de si mesmas como artistas a partir de seus próprios corpos. Frida acentuou com seus trajes tehuana sua condição de mulher mestiça; suas roupas, suas joias, seus penteados eram objetos de uma construção minuciosa.

Há relatos de que ela levava, às vezes, duas horas para se vestir. Ou seja, não era algo “espontâneo”, mas sim muito elaborado. Em outra chave, Tarsila teria feito algo semelhante. Há um escrito em que ela diz: “Entrei na Ópera e todos os olhares se dirigiram para mim”.

A grande diferença, segundo Simioni, é que Frida, como outras mulheres mexicanas de sua geração, utilizou seu próprio corpo para frisar sua participação em um projeto estético e político de valorização das tradições populares autóctones. Enquanto isso, o vestuário escolhido por Tarsila traz a assinatura de costureiros franceses de elite, um cosmopolitismo classista que está presente também em seu autorretrato.

Sem historicizar de modo determinista a arte e os comportamentos, aqui caberia talvez lembrar que o modernismo mexicano foi filho de um processo revolucionário extremado, enquanto o modernismo brasileiro foi fruto do mecenato condescendente da oligarquia paulista.

Ser uma artista mulher, naqueles tempos, implicava ter um acesso privilegiado à educação formal e artística; ter condições de viajar para o exterior; era algo restrito a uma elite. “Isso não invalida o notável esforço dessas mulheres e sua importância para nossa história da arte. No entanto, é também preciso hoje, em 2022, reconhecer os limites do nosso projeto moderno”, conclui Simioni.

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