Arte

Por Laura Moraes, com edição de Larissa Beani

Tradicionalmente, quando se conta a história dos povos originários do Brasil — isso quando é de fato contada —, a perspectiva predominante é a dos brancos. Na história do primeiro grande território indígena demarcado no país, o Xingu, não é muito diferente. Quantos conhecem o nome dos irmãos Villas Bôas, sertanistas que auxiliaram no processo de criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961, mas nunca ouviram falar dos Kuikuro, Wauja, Kamaiurá ou qualquer uma das 16 nações que habitam o território?

A nova exposição Xingu: contatos, que abriu para visitação gratuita no IMS Paulista no último sábado (5), trata justamente das múltiplas narrativas em torno da história da região, dando destaque à produção audiovisual indígena contemporânea.

“Os Villas-Bôas são personagens importantes dessa história, e são lembrados pelos povos do Xingu com muito carinho”, comentou Guilherme Freitas, um dos curadores da exposição e editor-assistente da revista Serrote, em entrevista à GALILEU. “Mas existe um lado dessa história que não chega muito no público não indígena, que é a importância das lideranças xinguanas nesse processo, não só na luta pela demarcação, mas na luta pelos direitos indígenas até hoje”.

Tomada de protagonismo

Encomendados especialmente para a exposição, o conjunto inclui seis curtas-metragens do Coletivo Kuikuro de Cinema e dos cineastas indígenas Divino Tserewahú, Kamatxi Ikpeng, Kamikia Kisêdjê, Kujãesage Kaiabi e Piratá Waurá. Além de mostrarem a cultura e cotidiano de cada povo, esses trabalhos também atuam como uma forma de denúncia e intervenção política para a luta dos direitos indígenas no Brasil.

Frame do curta A câmera é a flecha, 2022, feito pelo Coletivo Kuikuro de Cinema. — Foto: Coletivo Kuikuro de Cinema/ Divulgação
Frame do curta A câmera é a flecha, 2022, feito pelo Coletivo Kuikuro de Cinema. — Foto: Coletivo Kuikuro de Cinema/ Divulgação

O comunicador Kamikia Kisêdjê, por exemplo, usa o audiovisual também como forma de monitoramento ambiental, denunciando as invasões à terras indígenas, o avanço da fronteira do agronegócio e a ação ilegal de garimpeiros. É dele uma foto muito veiculada em 2021 que retrata a fronteira do Parque do Xingu com uma área não protegida, mostrando a clara diferença da conservação da floresta.

Para a exposição, o também cineasta Piratá Waurá fez um filme sobre a gruta de Kamukuwaká, um local tradicional e sagrado para o povo Waurá, que ficou fora da área demarcada em 1961 e hoje está sendo depredado. As gravações feitas pelo artista estão sendo usadas em um processo movido pelos Waurá para que esse território seja enfim reconhecido. Hoje, Piratá trabalha com ONGs europeias em um projeto de reconstituição de inscrições milenares em pedras da gruta.

“A ferramenta audiovisual é também uma ferramenta de luta. Antigamente apenas se falava da demarcação de terras, mas nós também queremos demarcar as telas: contar a nossa história e fazer com que as pessoas conheçam a realidade dos povos indígenas através do olhar dos indígenas”, disse o cineasta Takumã Kuikuro, também curador da exposição e morador da aldeia Ipatse, dentro do Parque Indígena do Xingu.

Takumã entrou em contato com o audiovisual pela primeira vez em 2002, através do projeto Vídeo nas Aldeias, da ONG Centro de Trabalho Indigenista, do antropólogo franco-brasileiro Vincent Carelli. Seu filme “As Hiper Mulheres”, de 2011, levou inúmeros prêmios nacionais e internacionais e está disponível atualmente no Prime Video, plataforma da Amazon.

“Acabei conseguindo aprender tanto a linguagem do português como a linguagem das câmeras. Também queremos estar nos streamings, nas mostras, nos festivais internacionais, levar nossas produções adiante e sermos conhecidos por ela”, relatou.

Digam os nomes deles

A mostra também traz imagens, reportagens e outros documentos produzidos no Xingu por não indígenas desde o final do século 19. Fruto de dois anos de pesquisa, a seleção apresenta cerca de 200 itens, que também se apresentaram como uma oportunidade de reavaliar a forma como os acervos das instituições são catalogados e exibidos.

“Nos deparamos com as lacunas dos acervos, inclusive do IMS, em relação às informações sobre os povos retratados", disse Guilherme. “Temos, por exemplo, fotos dos anos 1950 do Orlando Villas-Bôas com lideranças xinguanas e só o Orlando está identificado na foto. E isso acontece muito.”

À frente na bancada, da esquerda para a direita: Teseya Panará, Kanhõc Kayapó, Raoni Mētyktire e Tutu Pombo Kayapó, dentre outros, ocupam auditório da liderança do PMDB nas negociações do capítulo dos indígenas na Constituinte, Brasília, 31.05.1988.  — Foto: Beto Ricardo/ Acervo Instituto Socioambiental.
À frente na bancada, da esquerda para a direita: Teseya Panará, Kanhõc Kayapó, Raoni Mētyktire e Tutu Pombo Kayapó, dentre outros, ocupam auditório da liderança do PMDB nas negociações do capítulo dos indígenas na Constituinte, Brasília, 31.05.1988. — Foto: Beto Ricardo/ Acervo Instituto Socioambiental.

Através do diálogo com a Associação Terra Indígena do Xingu, que tem capilaridade entre os 16 povos residentes, foi possível consultar as lideranças indígenas sobre todas as imagens presentes na exposição. “Montamos grupos de Whatsapp com pesquisadores e lideranças indígenas e mandávamos as imagens para poderem circular nas aldeias. Então, as recebíamos de volta muitas vezes com nomes, data e lugar”, contou o curador.

Essa ação faz parte de um movimento recente de instituições que estão procurando requalificar os seus acervos para que essas imagens estejam disponíveis com informações mais completas e corretas, além de possibilitar que os povos conheçam esses retratos que em muitos casos nem sabiam da existência.

Foi uma fala de Gustavo Caboclo, artista Wapichana que conduziu um trabalho parecido no Museu Paranaense, que serviu como guia para o trabalho de Freitas. “Ele falou que essas imagens antigas para a instituição são acervo, mas para os povos retratados são álbum de família. Então, quando você vai expô-las, é necessário um cuidado e respeito especial”, lembra.

Nem todas as pessoas retratadas nas imagens da mostra foram identificadas já, mas a ideia dos curadores é que o trabalho não termine com a exposição e que sirva como uma ponte entre os povos indígenas e a instituição. “São personagens e histórias que o Brasil precisa conhecer”, conclui Guilherme.

Serviço

A exposição Xingu: contatos está aberta para visitação gratuita até 9 de abril de 2023, no IMS Paulista, que funciona de terça a domingo e feriados (exceto segundas), das 10h às 20h na Avenida Paulista, nº 2424.

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