Cultura

Por Maria Clara Vaiano*


Imagem da entrada da exposição que exalta a variedade de línguas indígenas (Foto: Ciete Silvério) — Foto: Galileu
Imagem da entrada da exposição que exalta a variedade de línguas indígenas (Foto: Ciete Silvério) — Foto: Galileu

Desde o dia 12 de outubro, quem for visitar o Museu da Língua Portuguesa, na Estação da Luz, em São Paulo, irá se deparar com uma rica floresta. A fauna faz parte da mostra Nhe’ẽ Porã: Memória e Transformação. O nome é baseado na língua indígena Guarani Mbya: Nhe’ẽ significa “espírito, sopro, vida, palavra, fala” e porã, “belo” e “bom”. A expressão significa “belas palavras” ou “boas palavras”.

A exposição tem curadoria da ativista, educadora e artista visual indígena Daiara Tukano, e contou com a consultoria especial da doutora em linguística Luciana Storto, professora da Universidade de São Paulo (USP). Nhe’ẽ Porã: Memória e Transformação propõe um outro olhar sobre o ínicio da cultura índigena no Brasil e, principalmente, de sua representatividade em museus.

Para fazer com que o público mergulhe na cultura desses povos sem perder a essência da identidade indígena, a exposição contou com a colaboração de cerca de 50 profissionais de povos originários durante a montagem. Entre eles estão cineastas, pesquisadores, influenciadores digitais e artistas visuais.

O rio do conhecimento

A mostra não tem paredes dividindo as salas, e o público é guiado pela pintura de um rio largo no chão. O desenho tem seu leito formado por grafias de palavras indígenas. Após entrar em todos os quatro ambientes, o desenho sobe para as paredes, virando um rio voador que desemboca em uma nuvem no centro do ambiente.

“Ao contrário do museu, que é uma caixinha quadrada, aqui o público pode andar em uma espécie de círculo. O que é importante porque representa a forma indígena de ver o mundo: tudo conectado, um grande ciclo”, comenta Tukano.

Momento em que o rio de palavras precipita dentro da sala em forma de chuva (Foto: Ciete Silvério ) — Foto: Galileu
Momento em que o rio de palavras precipita dentro da sala em forma de chuva (Foto: Ciete Silvério ) — Foto: Galileu

Um dos pontos de partida da exposição, Terra Viva traz uma ampla floresta. Cada árvore representa uma família linguística e, para conhecê-las, fones de ouvido trazem os sons das palavras. “É importante mostrar em que ritmo as palavras são ditas, porque a língua indígena vem de uma tradição oral que se incorpora a cantos. Não é só a pronúncia que tem que ser exposta, é a música”, afirma Tukano. Ao todo, a floresta contém 19 árvores que transmitem cerca de 175 línguas e cantos. Há também dispositivos inclusivos, como uma tela no tronco que traduz as palavras em libra.

O ambiente seguinte, denominado Língua é Memória, introduz o público a um lado da história mais doloroso, ao trazer à tona o histórico de violência e conflitos decorrentes da invasão de territórios indígenas desde o século 16 até os dias atuais.

A sala também tenta quebrar características não realísticas impostas aos povos nativos. “Colocamos em debate o fato de que somos descritos como povos ágrafos, sem escrita, mas nossas pinturas também são escritas – só que não alfabéticas”, explica Daiara Tukano.  

Antes de 1500

Um dos principais objetivos da mostra é problematizar o processo conhecido como “civilizatório”. Ocorrido a partir da chegada dos portugueses no Brasil, em 1500, ele apagou pouco a pouco as culturas indígenas. “Muitas vezes, os museus começam contando a história indigena após 1500. E fazer isso é reafirmar o discurso e pensamento coloniais. A história indigena começa antes!”, crítica Tukano.

Para reafirmar a existência dessas culturas antes da chegada dos portugueses no Brasil, o ambiente conta a história de vários povos nativos, principalmente por meio de objetos arqueológicos indígenas que antecedem o século 16. Todos os objetos foram retirados do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP).

Além disso, obras de artistas indígenas, registros documentais, mapas de famílias linguísticas de norte a sul da América e conteúdos audiovisuais e multimídia narram o processo violento de apagamento cultural.

Um dos exemplos é o monumental trocano. Um tambor feito a partir de uma única tora e extinto das aldeias. O objeto foi cedido pelo MAE-USP e é apelidado por Tukano de “o WhatsApp de antigamente”. O instrumento pertence aos povos do Alto Rio Negro, onde o pai da curadora nasceu.

O trocano era um objeto muito comum nas aldeias, entretanto, atualmente, ele só existe em museus (Foto: Acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo -- Ciete Silvério) — Foto: Galileu
O trocano era um objeto muito comum nas aldeias, entretanto, atualmente, ele só existe em museus (Foto: Acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo -- Ciete Silvério) — Foto: Galileu

“O patrimônio desse tambor era composto por quatro peças. Uma queimou no incêndio do Museu Nacional, outras duas estão na USP, em São Paulo, e outra em Manaus. Não existem mais esses instrumentos nas aldeias”, comenta.

Outro objeto que chama atenção na mostra é a exibição de uma palmatória feita de pau-brasil. A peça era utilizada em escolas religiosas para castigar crianças indígenas. “As crianças eram castigadas com esse instrumento quando mencionavam palavras indígenas. Na maioria das salas de aula só era permitido o português”, explica Tukano.

Imagem de uma jovem indígena observando a obra Exnãukôtxêpiátá - As onças e o tempo novo feita por Tamikuã Txihi (Foto: Ciete Silvério ) — Foto: Galileu
Imagem de uma jovem indígena observando a obra Exnãukôtxêpiátá - As onças e o tempo novo feita por Tamikuã Txihi (Foto: Ciete Silvério ) — Foto: Galileu

Para a Tukano, todo o processo de conseguir mostrar sua cultura em um museu intitulado "da Língua Portuguesa” gera uma emoção gigantesca. “Estar aqui é simbólico. O Museu da Língua Portuguesa abriu as portas para uma indígena contar, a partir de uma visão e curadoria indígenas, a história de seu povo. O movimento indígena lutou muito para estar aqui”.

Além de atiçar a memória e ressignificar os preceitos de culturas nativas, a exposição marca a abertura brasileira do Lançamento da Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032). É um movimento global de povos indígenas instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) e coordenado pela Unesco.

A exposição Nhe’ẽ Porã: Memória e Transformação fica em cartaz até o dia 23 de abril de 2023. Os ingressos custam R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia); aos sábados, a entrada a grátis. Crianças de até 7 anos tem entrada gratuita.

*Com edição de Luiza Monteiro.

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