• Tiemi Osato*
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Alunos do interior do Pará realizam pesquisas sobre conversão do açaí em bioprodutos (Foto: Reprodução Instagram/@ccimmoju)

Alunos do interior do Pará realizam pesquisas sobre conversão do açaí em bioprodutos (Foto: Reprodução Instagram/@ccimmoju)

Todos os anos, crianças e jovens de uma pequena cidade do nordeste do Pará aguardam ansiosamente por um evento específico: a Feira de Ciências do Município de Moju (Feicimm). Ao longo de uma semana, alunos de diferentes escolas são incentivados a conhecer e apresentar projetos sobre problemáticas regionais. As ideias são avaliadas e premiadas por estudantes da Universidade do Estado do Pará (Uepa) e, ao fim da feira, servem como inspiração para que mais pequenos pesquisadores participem de futuras edições do evento.

É dessa forma que muitos paraenses são encorajados a vivenciar a ciência em Moju, uma cidade interiorana que abriga 84 mil habitantes e fica a 127 quilômetros de Belém. A iniciativa é do Clube de Ciências de Moju (CCIM), que, além de estimular a participação na Feicimm, promove uma série de atividades educacionais em 200 comunidades. A organização proporciona cursos, palestras e oficinas e atua também de maneira volante, levando biblioteca e museu itinerantes à área rural do município.

Foi graças ao trabalho do CCIM que Daniel Neto, de 17 anos, se apaixonou pela ciência. Atualmente no 2º ano do Ensino Médio da Escola Estadual Ernestina Pereira Maia, Daniel é aluno voluntário do clube, do qual participa desde 2015, e é responsável por coordenar a Feicimm. Mas, antes de assumir os bastidores, ele era um ávido espectador das exposições. “Eu sempre fui curioso e ia muito para a Feicimm quando mais novo”, relembra em entrevista a GALILEU. “Lá eu via de tudo, porque é uma oportunidade para a população conhecer projetos científicos que podem mudar a realidade na qual estamos inseridos”, explica.

Daniel do Monte Pereira Neto é aluno voluntário do Clube de Ciências de Moju (Foto: Arquivo pessoal)

Daniel do Monte Pereira Neto é aluno voluntário do Clube de Ciências de Moju (Foto: Arquivo pessoal)

Para Francielly Barbosa, de 19 anos, sua relação com a ciência também começou na feira, onde apresentou seu primeiro trabalho aos 8 anos. Dois anos mais tarde, ela ganhou destaque no evento por ter desenvolvido um projeto sobre pedofilia no ambiente escolar, que incluía relatos anônimos de estudantes e discutia as principais características dos agressores. “Foi a primeira vez que eu recebi uma premiação e, depois disso, comecei a participar sempre”, diz a jovem, que cursa Engenharia de Produção na Universidade Federal do Pará (UFPA) e integra a coordenação do clube. “Meu primeiro contato com a faculdade e com o método científico foi nesse momento. Ajudar a moldar o olhar científico das crianças desde muito pequenas é uma característica marcante do CCIM”, destaca.

Francielly Rodrigues Barbosa integra a coordenação do Clube de Ciências de Moju (Foto: Arquivo pessoal)

Francielly Rodrigues Barbosa integra a coordenação do Clube de Ciências de Moju (Foto: Arquivo pessoal)

Agora, as atividades do clube, que Francielly descreve como uma “fábrica de cientistas”, estão prestes a ser potencializadas. Com apoio do Instituto Serrapilheira, quatro alunos secundaristas ganharam bolsas de iniciação científica: Daniel Neto, Maynara Marques, Oriel de Abreu e Eduardo Souza e Souza. Francielly Barbosa, que está no ensino superior, recebeu uma oportunidade de estágio. Os cinco estudantes irão contribuir para o trabalho da bióloga Ayla Sant’Ana, do Instituto Nacional de Tecnologia (INT), no Rio de Janeiro.

Conexão Rio-Moju

O convite para que membros do CCIM se aprofundassem no universo da pesquisa partiu da capital fluminense, sendo um desdobramento de acontecimentos de 2019. Na época, Ayla estava assistindo à televisão quando viu um comercial sobre jovens inventores, no qual uma menina aparecia com um caroço de açaí — justamente o objeto de pesquisa da bióloga, que investiga a conversão de resíduos (como a semente amazônica) em bioprodutos.

Financiada pelo Instituto Serrapilheira, Ayla sabia que teria acesso à verba denominada “bônus de diversidade”, voltada para a inclusão de indivíduos de grupos sub-representados na ciência, e considerava interessante contar com a contribuição de pessoas da região norte do país. “Seria muito rico ter a perspectiva e os saberes de quem está ali no dia a dia tendo a experiência com a matéria-prima”, conta a pesquisadora.

O recurso é voluntário e adicional e pode ser destinado, por exemplo, ao pagamento de bolsas de iniciação científica, mestrado e doutorado, ao oferecimento de cursos de capacitação e à disponibilização de auxílios moradia, transporte e internet. “Nós sabemos que grupos sub-representados tem uma série de dificuldades muito maiores do que quem já está dominando a área, portanto procuramos entender os desafios e oferecer essa flexibilidade de verba para que os alunos minimizem seus problemas e melhorem suas condições para produzir conhecimento”, explica Cristina Caldas, diretora de Ciência do Instituto Serrapilheira.

Após realizar buscas online, Ayla descobriu que a jovem da propaganda era Francielly e que ela estava desenvolvendo o projeto A Casa do Açaí — em andamento até hoje, a iniciativa utiliza o caroço do fruto para criar tijolos e já foi noticiada por GALILEU. Uma vez em contato com a paraense, Ayla conheceu o Clube de Ciências de Moju e propôs uma parceria. “Eu percebi que a Francielly não é um fenômeno isolado, e sim consequência de um trabalho transformador que o CCIM vem fazendo há anos com as comunidades da região, então decidi oferecer bolsas de iniciação científica de forma que usássemos o tema do meu projeto”, afirma.

Para isso, foi realizado um processo seletivo. Os candidatos responderam um questionário sobre seus perfis socioeconômico e racial e as suas motivações para entrar em uma pesquisa. Posteriormente, eles foram entrevistados e, por fim, escolhidos. “Como eu sempre tive esse sonho de estar mais no meio científico, essa bolsa foi uma coisa extraordinária para mim”, relata Daniel. “Creio que isso vai transformar bastante meu desenvolvimento”, comenta o aspirante a biólogo.

Do resíduo ao produto

O quinteto de Moju irá se dividir entre três propostas. A primeira delas, à qual Francielly irá se dedicar, consiste no mapeamento da cadeia produtiva do açaí. Isso porque não há dados detalhados e sistematizados sobre a geração e a destinação da semente, embora as estimativas indiquem que a parte comestível corresponde de 5% a 15% do alimento e que o caroço se acumula em mais de 1,5 milhão de toneladas anualmente.

Os estudantes participam de três projetos de pesquisa envolvendo o caroço do açaí  (Foto: Divulgação)

Os projetos de pesquisa têm como objeto o caroço do açaí  (Foto: Divulgação)

Para preencher essa lacuna, os estudantes irão enviar formulários a secretarias estaduais e municipais, produtores de açaí e empresas. Com as informações sobre a produção e o manejo do resíduo, será possível identificar quem é responsável por coletá-lo e para onde ele vai. Hoje, por exemplo, sabe-se que, em Moju, o caroço é utilizado para fazer adubo, artesanato e tijolos. “O principal propósito da pesquisa é saber se é viável fazer algo a partir do açaí. É muito resíduo, mas não vai ter o suficiente para nós usarmos e alimentarmos o mercado se ele já estiver sendo usado para outros fins”, explica Francielly.

Os demais projetos estão relacionados ao potencial comercial da semente, que apresenta altas quantidades de manana (um tipo de açúcar não tão abundante na natureza) e de polifenóis (compostos antioxidantes). Ambas características podem ser interessantes para gerar ferramentas úteis à sociedade, como o biogás, que se origina na decomposição microbiana do resíduo. Esse bioproduto pode ser transformado em energia ou empregado em atividades de abastecimento e em fornos. “Aqui nós temos montanhas desses caroços”, observa Daniel. “Vamos a campo para entender o que os moradores têm a dizer sobre o assunto e pesquisar mais para trazer uma solução para esse problema intenso.”

A terceira vertente do trabalho aprofunda uma investigação feita anteriormente por um ex-integrante do Clube de Ciências, que desenvolveu um biofiltro de água com carvão ativado a partir da semente do açaí. Dessa vez, a ideia é testar a peça a longo prazo para verificar a viabilidade e a duração dela, instalando um protótipo em uma comunidade ribeirinha. “Ter uma forma de filtração é bem importante para a região, porque vários lugares não recebem água canalizada, então vamos fazer essa análise do produto por um período de tempo maior”, diz Ayla, que, em conjunto com os professores envolvidos no CCIM, irá orientar os alunos durante um ano.

Clube de Ciências em ação

Atualmente, o grupo está dando seus primeiros passos. Enquanto as bolsas passam por uma fase burocrática de implementação, os estudantes secundaristas estão se familiarizando com os instrumentos básicos para o trabalho. “Nos encontramos por quase uma semana e conversamos sobre o projeto, mostramos o resíduo do açaí, explicamos os ODS [Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da ONU] e ensinamos a fazer observações e anotações de pesquisa”, conta Francielly, que acumula mais experiência na área por já estar na universidade e ter o projeto A Casa de Açaí.

“Os alunos estão super interessados e foi um momento muito emocionante. Antes a gente não tinha nada no Clube de Ciências, mas conseguimos água e energia para ocupar o espaço recém-adquirido. Foi histórico”, relata a jovem. Daqui para frente, textos de referências bibliográficas serão disponibilizados e planos de estudo serão montados. O objetivo é encaixar as tarefas da iniciação científica no contraturno das atividades escolares e proporcionar uma programação que, de fato, apresente aos bolsistas todas as etapas de pesquisa.

E assim está sendo dada a largada para que Francielly, Daniel, Maynara, Oriel e Eduardo mergulhem no fazer científico — que, por sua vez, irá crescer (e muito) com o envolvimento desses jovens pesquisadores. “Não faltam dados na literatura mostrando que quanto mais diverso é um grupo, mais criativo ele será para responder perguntas”, lembra Cristina. “A ciência fica muito mais rica, interessante e inovadora quando há uma pluralidade de pontos de vista e de ideias.”

*Com supervisão de Larissa Lopes