• Texto: Edison Veiga | Edição: Luiza Monteiro
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Projetos de pesquisa brasileiros que foram interrompidos na pandemia (Foto:  Getty Images)

Projetos de pesquisa brasileiros que foram interrompidos na pandemia (Foto: Getty Images)

Desde que a pandemia de Covid-19 foi declarada, o mundo (ou parte dele) entendeu o papel da ciência em nossa vida e por que ela é tão necessária. Mas engana-se quem pensa que os cientistas enfrentaram a disseminação global do novo coronavírus apenas como mais um dia de trabalho — assim como diversas outras categorias profissionais, eles também precisaram se reinventar.

Vendo que o Sars-Cov-2 trazia mais perguntas do que respostas, não foram poucos os estudiosos que decidiram alterar a rota de seus projetos de pesquisa para munir de explicações, métodos e técnicas todos os que atuariam na linha de frente do enfrentamento ao vírus.

O resultado está na ponta da agulha. Nunca na história da humanidade imunizantes foram desenvolvidos de forma tão rápida quanto esses que estão sendo aplicados no Brasil e no mundo — em muitos lugares, em menor velocidade do que gostaríamos, é verdade. Os avanços também estão em melhorias de diagnóstico, no entendimento de como máscaras funcionam, no combate a informações falsas e na busca por remédios realmente eficazes contra essa doença ainda permeada por incógnitas.

A prova também está nos periódicos científicos, publicações onde pesquisadores validam suas conclusões e dialogam com seus pares. Levantamentos mostram que o número de artigos sobre Covid-19 chegaram a uma média de mais de 730 por dia em 2020. De acordo com a empresa inglesa de banco de dados Dimensions, foram catalogados 269.791 materiais sobre o tema, compreendendo quase 20 mil entidades de aproximadamente 200 países. Já o repositório da Organização Mundial da Saúde (OMS) reuniu 184.857 artigos artigos científicos a respeito da infecção pelo coronavírus no ano passado.

Um efeito colateral dessa força-tarefa para salvar o planeta, contudo, foram as pausas ou suspensões de diversas outras pesquisas que se dedicavam a enfermidades tão urgentes e preocupantes quanto a causada pelo Sars-CoV-2. Segundo a plataforma PubMed, que congrega publicações científicas do mundo todo, foram publicados 18.095 estudos sobre HIV, 2.225 sobre dengue e 1.696 sobre zika em 2020. Covid, por outro lado, contou com 91.309 trabalhos registrados ali.

No Brasil, cientistas de centros de estudo de ponta apertaram o pause em muitos projetos em prol de entender a dimensão da pandemia que nos assola e como superá-la. Para ter ideia do que ficou de lado nos laboratórios do país, GALILEU conversou com cinco pesquisadores que vinham trabalhando em estudos relevantes e tão necessários quanto aqueles sobre a Covid-19.

Veja a seguir alguns dos temas cujas investigações científicas foram desaceleradas no último ano.

ANEMIA FALCIFORME, DENGUE E DOENÇA DE CHAGAS

Ainda no fatídico 26 de fevereiro de 2020, quando o primeiro caso de infecção pelo Sars-CoV-2 foi confirmado no Brasil, a médica imunologista Ester Cerdeira Sabino, pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), reuniu-se com outros quatro cientistas no laboratório central do Instituto Adolfo Lutz, na capital paulista. A partir de uma estrutura já montada para estudar o vírus da dengue, eles prontamente começaram o sequenciamento genético da amostra do vírus recém-chegado ao país.

O resultado saiu em tempo recorde: 48 horas. Desde então, Sabino só estuda o coronavírus causador da Covid-19. “Não deu para decidir muito. A gente foi sendo levada pela necessidade de responder [sobre a Covid-19]”, comenta a cientista, que se tornou referência no assunto.

Antes, seu grupo de pesquisa trabalhava em análises laboratoriais para compreender enfermidades que atingem milhões de brasileiros todos os anos: além da dengue, a anemia falciforme e a doença de Chagas. Essas pesquisas acabaram ficando em segundo plano. “Chagas e anemia falciforme prejudicou mais, porque são estudos que dependem de pessoas irem até os centros de pesquisa e isso [o isolamento] dificultou”.

O que é uma pena: segundo boletim epidemiológico divulgado em abril pelo Ministério da Saúde, estima-se que pelo menos 1 milhão de pessoas no Brasil estejam infectadas com o protozoário Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas; já a anemia falciforme, uma condição crônica e hereditária, afeta 3 mil recém-nascidos no país a cada ano.

"Está bem difícil organizar para retomar a [pesquisa de] dengue, as pessoas estão muito ocupadas trabalhando com Sars-Cov-2""

Ester Cerdeira Sabino, imunologista e pesquisadora da Faculdade de Medicina da USP

Aproveitar o laboratório dedicado aos estudos sobre a dengue para a Covid-19 foi bem-vindo, mas agora preocupa. “Está bem difícil organizar para retomar a [pesquisa de] dengue, as pessoas estão muito ocupadas trabalhando com Sars-Cov-2. Muitos alunos de mestrado e doutorado também tiveram de mudar o assunto da tese e focaram no coronavírus”, relata Sabino.

Ainda assim, com a vacinação chegando a cada vez mais pessoas, a cientista já consegue ver luz no fim do túnel: os estudos de anemia falciforme e Chagas, aos poucos, retornam a campo. “Estamos também voltando a sequenciar dengue, mas em uma quantidade menor do que o previsto originalmente. Vamos fazer 50% do proposto”, avisa.

GRIPE

Em maio deste ano, o Instituto Butantan iniciou a fase de testes, com aplicação em 6,5 mil voluntários, de uma nova e mais potente vacina contra a gripe. Tetravalente, o imunizante combate quatro variantes do vírus influenza: H3N2, H1N1, B Victoria e B Yamagata. O produto atualmente fornecido pela entidade paulista ao Ministério da Saúde, e aplicado na campanha de vacinação da rede pública, é trivalente, blindando apenas contra as cepas H1N1, H3N2 e B Victoria.

Até aí, só boas novas. O que pouca gente sabe, porém, é que essa notícia era para ter ocorrido no ano passado. “[O estudo] Foi adiado por causa da pandemia. Está acontecendo agora porque não conseguimos fazer em 2020”, justifica Ricardo Palacios, diretor médico de pesquisa clínica do Instituto Butantan. “Por conta dessa crise, tivemos de adiantar o máximo possível a produção de doses de influenza para vacinar as pessoas.”

Como a Covid-19 afeta o sistema respiratório, a ideia foi privilegiar o desenvolvimento da vacina contra a gripe. A exemplo do que ocorreu em outros países, o princípio é proteger também contra essa enfermidade não só pensando no indivíduo, mas em não sobrecarregar ainda mais os hospitais. Com isso, os esforços de pesquisa foram preteridos em função da atividade de produção do que já estava aprovado.

Palacios conta que estava acompanhando pessoalmente o desenvolvimento da vacina tetravalente. Mas logo precisou “mudar a chavinha”, debruçando-se também sobre temas ligados ao Sars-Cov-2 e, sobretudo, à CoronaVac — imunizante contra a Covid-19 da farmacêutica chinesa SinoVac, fabricado e distribuído pelo Butantan no Brasil. “Não foi uma mudança tão radical para mim, pois já trabalhava com vacinas, tinha feito prospecções de vacinas de vírus respiratórios e outros vírus”, frisa. “Todo mundo hoje transfere o conhecimento do influenza para o coronavírus. Como ambos são vírus respiratórios, há muita coisa em comum.”

Projetos de pesquisa brasileiros que foram interrompidos na pandemia (Foto: Getty Images)

Projetos de pesquisa brasileiros que foram interrompidos na pandemia (Foto: Getty Images)

Quanto à gripe, a fase de testes iniciada este ano é promissora. Mas, segundo Palacios, ainda é cedo para saber quando o novo imunizante estará pronto para ser aplicado em larga escala e na rede pública. Ele acredita que os resultados da etapa atual serão conhecidos em meados de 2022 — e depois ainda terão de ser avaliados pelas instituições competentes.

FEBRE AMARELA E DOENÇA REUMÁTICA CARDÍACA

O médico imunologista Jorge Elias Kalil Filho atuava diretamente em dois grandes projetos quando a pandemia exigiu ajustes nas prioridades. Em uma das empreitadas, o diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), da Faculdade de Medicina da USP, dedicava-se a analisar aspectos quanto à proteção imunológica da febre amarela; na outra, buscava o desenvolvimento de uma vacina contra a Streptococcus pyogenes, bactéria causadora da doença reumática cardíaca. “Quando surgiu a Covid-19, uma emergência mundial bem dentro de nossa área de atuação, que é a imunologia, me senti compelido a trabalhar nisso, e estou trabalhando”, confessa Kalil.

Já de olho nos casos que estouravam na Ásia e na Europa, o professor reuniu seu grupo de pesquisa e começou a atuar no desenvolvimento de uma vacina contra o Sars-CoV-2. “Coloquei pelo menos dois pesquisadores principais, sêniores, além de mim, para esse projeto. Eles pararam com os outros e há pelo menos três funcionários também envolvidos, além de alunos e colaboradores”, detalha o médico.

"Quando surgiu a Covid-19, uma emergência mundial bem dentro da nossa área, a imunologia, me senti compelido a trabalhar nisso"

Jorge Elias Kalil Filho, diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), da USP

O diferencial do imunizante seria a técnica, chamada VLP ou virus-like particles, que significa uso de partículas semelhantes a vírus. Desde o princípio, Kalil já sabia que seu produto não estaria pronto a tempo de competir com os primeiros a surgir no mundo — sua expectativa é de que a vacina possa ser utilizada se houver a necessidade de novas doses. Mas isso só deve ocorrer quando se souber com precisão qual a durabilidade do efeito imunoprotetor dos imunizantes que estão sendo inoculados atualmente.

Enquanto as atenções estão intensamente voltadas para a Covid-19, Kalil conta que os dois projetos inicialmente desenvolvidos seguem devagar. No caso da febre amarela, o estudo pretende entender se há marcadores genéticos e imunológicos que indicam proteção após a vacinação. “E também saber se há marcadores que mostram a suscetibilidade de uma pessoa à gravidade da doença”, explica. “Esse projeto continua, com uma pós-doutoranda e uma mestranda. Mas diminuiu a quantidade de envolvidos.”

No caso da vacina contra a doença reumática cardíaca, a fase atual é de burocracias junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. “Vamos ver se obtemos a licença para começar a fase 1 em humanos. A equipe também foi um pouco diminuída, mas o projeto segue”, garante.

MICROBIOTA E SISTEMA IMUNOLÓGICO

Uma coisa que o imunologista Carlos Rodrigo Zárate-Bladés já costumava ver no microscópio é adaptação. No caso, de bactérias. Diretor do Laboratório de Imunorregulação da Universidade Federal de Santa Catarina, seu foco de estudo é o entendimento da regulação do sistema imunológico por meio da microbiota — a comunidade de microrganismos comensais que coloniza o corpo humano. “Mas tive de adaptar [os estudos à realidade da Covid]”, comenta.

O maior problema é que boa parte dos trabalhos de sua equipe eram pesquisas de campo, com coletas de materiais em hospitais. “Com as restrições e o distanciamento impostos, supernecessários, obviamente, a gente teve de parar muitos projetos. Os pesquisadores não tinham mais acesso às áreas que precisavam, isso praticamente aconteceu durante todo o ano passado”, lembra.

Uma das frentes, financiada pela Fundação Bill e Melinda Gates, precisou ser interrompida abruptamente. Consistia em coletar amostras de pacientes já em alta hospitalar para tentar entender a rota de circulação de bactérias muito resistentes. “A gente precisa ir na casa deles. Isso foi completamente abolido”, explica o médico. “Era um projeto já em fase final.”

Mas Zárate-Bladés buscou sua maneira de contornar a situação e ajudar a comunidade. “Eu me senti na obrigação de colaborar com os colegas que estão na linha de frente, a tentar compreender melhor a doença [Covid-19]”, afirma. “No início, estávamos completamente perdidos com o que estava acontecendo. Mesmo que já tivéssemos conhecimentos sobre infecção viral, tratava-se de um vírus novo e era preciso ver até que ponto nossos conhecimentos se amoldavam ao histórico da patologia”, recorda.

Projetos de pesquisa brasileiros que foram interrompidos na pandemia (Foto: Getty Images)

Projetos de pesquisa brasileiros que foram interrompidos na pandemia (Foto: Getty Images)

O médico trabalhou ainda no desenvolvimento de máscaras caseiras mais efetivas, disponibilizando modelos para a comunidade, e também passou a atuar como porta-voz de divulgação científica, ajudando a combater fake news e a reiterar a importância do uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), da manutenção do distanciamento social e da vacinação. “Ouvimos por aí as coisas mais aberrantes. E estamos tentando ajudar a esclarecer os conceitos”, afirma.

DE PETRÓLEO A PERFUMES FALSIFICADOS

Quando a pandemia chegou, o químico Marcos Nogueira Eberlin havia se desligado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no interior paulista, e estava no meio do processo de montagem de seu novo laboratório na Universidade Presbiteriana Mackenzie, na capital. O MackMass 43 - Laboratório Mackenzie de Espectrometria de Massas passaria, então, a servir para a expertise que marca sua carreira. “Trabalho com espectrometria de massas, uma técnica que tem amplo espectro de aplicações: química, bioquímica, medicina…”, enumera o cientista. “É uma técnica que permite caracterizar moléculas com alta velocidade, além de quantificar, separar misturas. Tudo é química, no final.”

No laboratório, é possível desde analisar uma amostra de petróleo e, com base em suas características, identificar a origem, até descobrir se um perfume é verdadeiro ou falsificado. Na Unicamp, ele costumava trabalhar com um grupo de 50 a 60 pesquisadores. Mas, em 2020, as limitações necessárias diante da crise sanitária acabaram atrasando as instalações do Mackenzie. “Foi um descompasso muito grande. Estávamos prontos para inaugurar e tudo parou: a instalação dos equipamentos, os ajustes hidráulicos e elétricos”, conta. “À medida que a pandemia foi andando, fomos aprendendo a lidar com as restrições, mesmo com todo o caos que se instalou.”

"Um pesquisador sempre precisa ter flexibilidade e capacidade de se adaptar rapidamente às novas condições"

Marcos Nogueira Eberlin, químico e diretor do Laboratório Mackenzie de Espectrometria de Massa

O maior desafio foi planejar um projeto de espectrometria que funcionasse para o diagnóstico imediato do novo coronavírus. A saída foi utilizar uma caneta detectora de câncer, desenvolvida em 2019 por sua filha, a também cientista Livia Eberlin, pesquisadora na Universidade do Texas, nos Estados Unidos.

Em uma triangulação entre a universidade norte-americana, o Mackenzie e a Universidade São Francisco, em Bragança Paulista (SP), a ideia passou a ser entender a efetividade do equipamento para o combate ao agente causador da Covid-19.

O grupo constatou que o instrumento deveria identificar a capa lipídica — isto é, de gordura — que envolve o vírus. Na primeira fase, o material coletado no hospital universitário de Bragança foi enviado aos Estados Unidos para análise, e tudo acompanhado pelo MackMass. Os resultados, segundo Marcos, são promissores. O objetivo das próximas etapas é chegar a um método em que a detecção de Covid-19 se dê pela saliva, sem precisar da coleta nasal.

Apesar dos contratempos, o químico considera que o caminho até aqui tem sido vitorioso. “Um pesquisador sempre precisa ter flexibilidade e capacidade de se adaptar rapidamente às novas condições. O cientista é valente, é bravo e criativo”, exalta. E é graças a essas características que, mesmo diante das adversidades, a ciência vai avançando — ainda que seja preciso dar dois passos para frente e um para trás.