• Texto: Larissa Lopes | Edição: Luiza Monteiro
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A astrônoma Duília de Mello (sentada) e a cientista política Nathalia Henrich lideram nova fase de digitalizações do acervo da Biblioteca Oliveira Lima (Foto: Divulgação)

A astrônoma Duília de Mello (sentada) e a cientista política Nathalia Henrich lideram nova fase de digitalizações do acervo da Biblioteca Oliveira Lima (Foto: Divulgação)

A pouco menos de 20 minutos da Casa Branca está guardada uma preciosa parte da história brasileira. No subsolo da biblioteca central da Universidade Católica da América, localizada em Washington D.C., capital dos Estados Unidos, mais de 60 mil obras e 700 manuscritos compõem a maior parte da coleção de Manoel e Flora de Oliveira Lima, um casal de intelectuais brasileiros cujo sonho era reunir o maior patrimônio possível de documentos históricos sobre o Brasil, para divulgar a cultura do país e da América Latina na terra do Tio Sam.

A Biblioteca Oliveira Lima possui um dos maiores acervos de brasilianas (como são chamadas publicações, documentos e materiais de estudo sobre o Brasil) do mundo: é a maior fora do país e a terceira maior em todo o globo, perdendo apenas para os acervos da Biblioteca Nacional e da Universidade de São Paulo (USP).

O trabalho da vida do casal, falecido na primeira metade do século 20, agora está nas mãos da astrônoma brasileira Duilia de Mello, que desde que se tornou vice-reitora de Estratégias Globais da universidade, em 2016, tem liderado o processo de digitalização dos arquivos da Biblioteca Oliveira Lima. “Quando recebi essa missão — que, como cidadã e cientista brasileira, é uma honra —, logo comecei a planejar quais seriam as melhores formas de tornar todo esse material acessível a qualquer pesquisador do mundo, e principalmente ao público brasileiro”, conta Mello, que assina a coluna Mulheres das Estrelas da GALILEU, ao lado das astrônomas Geisa Ponte e Ana Posses. “Eu quero que qualquer criança no Brasil consiga encontrar no Google os materiais da nossa biblioteca. Quero que o conteúdo da Oliveira Lima chegue a todas as escolas e universidades brasileiras.”

Esse objetivo está cada vez mais perto de se tornar realidade, já que as primeiras levas do material digitalizado começarão a ser disponibilizadas a partir de 2022, em comemoração aos 200 anos da Independência do Brasil. A seguir, a astrônoma conta como tem sido encarar a responsabilidade de preservar a memória do país, eternizada em centenas de milhares de páginas impressas e manuscritas adquiridas pelo casal de bibliófilos brasileiros.

Como vice-reitora de Estratégias Globais da Universidade Católica da América, uma das funções da astrônoma Duilia de Mello é coordenar a modernização e digitalização do acervo da Biblioteca Oliveira Lima (Foto: Acervo pessoal)

Como vice-reitora de Estratégias Globais da Universidade Católica da América, uma das funções da astrônoma Duilia de Mello é coordenar a modernização e digitalização do acervo da Biblioteca Oliveira Lima (Foto: Acervo pessoal)

Como você começou a se envolver com esse projeto?

Em 2016, me tornei vice-reitora de Estratégias Globais da Universidade Católica da América, em Washington D.C., e uma de minhas funções é cuidar das bibliotecas da instituição. Uma delas é a Biblioteca Oliveira Lima, que possui mais de 60 mil obras sobre o Brasil, formando o maior acervo de brasilianas fora do nosso país. Por ser brasileira, o reitor me incumbiu de modernizá-la e torná-la acessível. Desde então, a biblioteca tem passado por muitas transformações.

Tudo começou há seis anos, com uma primeira fase de digitalização do material coordenada pelo meu antecessor. Ao todo, mais de 1 milhão de páginas foram digitalizadas. Então, desde que assumi, contratei Nathalia Henrich [cientista política brasileira] como diretora da Biblioteca e Henry Widener, nosso bibliotecário. Em 2021, nossa tarefa será fazer uma curadoria do material já digitalizado e subir no servidor da universidade. Em 2022, ano que comemora o bicentenário da independência do Brasil, vamos disponibilizar essa parte do acervo para o público. Até 2024, quando a biblioteca completa 100 anos, pretendemos publicar mais uma rodada de digitalizações, que já está em curso. Queremos mostrar que estamos melhorando o acesso à coleção pelos brasileiros.

Por enquanto, como as pessoas podem ter acesso ao material?

Enquanto o material ainda não está público, nós fazemos digitalizações por demanda. Se algum acadêmico estiver interessado em uma das nossas obras, ele pode entrar em contato com a biblioteca [cua-limalibrary@cua.edu], que nós digitalizamos o que for necessário. Nos últimos dois anos, recebemos mais de 100 pedidos. A procura é alta pois a biblioteca tem um acervo único — ela é viva, está sempre se transformando!

Pode contar um pouco sobre como a biblioteca foi criada?

A coleção pertencia ao diplomata e escritor Manoel de Oliveira Lima e sua esposa, a socialite Flora. O casal de bibliófilos pernambucanos colecionou livros durante toda a vida — mesmo após a morte de Manoel, em 1928, Flora continuou a comprar itens até falecer, em 1940. Preservar a história da colonização portuguesa pelo mundo e a história do Brasil era o principal objetivo deles com essa biblioteca, que foi fundada em 1920, mas aberta apenas em 1924. Esse fascínio pela história e política do país é abordado em cartas e em várias das 20 obras que Manoel publicou ao longo de sua carreira. Em vida, ele testemunhou a proclamação da República, em 1889, fato que o fez colecionar uma porção de artigos da época, por exemplo. Outro marco importante e bem documentado na coleção foi o centenário da Independência, em 1922, também testemunhado por Oliveira Lima, que passou a colecionar tudo o que encontrava sobre o assunto.

Quais são os principais artigos preservados na biblioteca?

Os Oliveira Lima gostavam de colecionar tanto publicações de sua época como raras. Um exemplo é o Paesi nouamente retrouati, datado de 1507, que trata sobre a descoberta de novas terras — inclusive do Brasil. É o ítem mais antigo da coleção. Também há muito material sobre Pernambuco, a terra natal do casal, e sobre a colonização holandesa. Um dos livros mais raros sobre essa temática é Rerum per octennium in Brasilia et alibi nuper gestarum sub praefectura, escrito por Gaspar Barleus e ilustrado por Frans Post, pintor que fazia parte da equipe de Maurício de Nassau, que governou o Brasil Holandês entre 1637 e 1643. Além disso, também temos o primeiro documento impresso no estado de Pernambuco e uma bandeira que saiu às ruas durante a Revolução Pernambucana, ocorrida em 1817.

Agora, uma curiosidade: por que o acervo está em Washington D.C., nos Estados Unidos, e não no Brasil?

A biblioteca é um retrato de um Brasil jovem e de um diplomata que gostava de promover a cultura brasileira e latino-americana ao redor do mundo. Manoel de Oliveira Lima queria deixar um legado na capital estadunidense e a Universidade Católica da América foi um lugar estratégico.

Algo interessante é que há parte da história da América Latina sendo contada através do acervo também. Antes de ser nomeada em homenagem ao casal pernambucano, a instituição se chamava Biblioteca Ibero-Americana. Temos preservados os documentos que Manoel de Oliveira Lima assinou para estabelecer a fronteira entre o Brasil e a Venezuela, a caneta usada na ocasião e a medalha que ele ganhou pelo tratado. Além disso, uma pequena mapoteca [coleção de mapas] faz parte do acervo.

Cartas de Machado de Assis fazem parte do acervo da Biblioteca Oliveira Lima (Foto: Reprodução)

Cartas de Machado de Assis fazem parte do acervo da Biblioteca Oliveira Lima (Foto: Reprodução)

Além de diplomata, Oliveira Lima era também escritor e até foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras. Como podemos ver na coleção da Biblioteca sua influência na literatura?

Ele era muito próximo aos intelectuais da época. Trocava correspondência com todos os membros da Academia, inclusive Machado de Assis, seu amigo pessoal. Na coleção, temos também muitas cartas de Lima Barreto e Gilberto Freyre, que era pupilo do diplomata e costumava chamá-lo de “Dom Quixote Gordo” [Essa amizade mais tarde rendeu o livro Oliveira Lima, Dom Quixote Gordo, publicado por Freyre]. Freyre costumava visitar o acervo em Washington quando era jovem e considerava o local a capital de estudos brasileiros nos Estados Unidos. Após a morte do tutor em 1928, Freyre continuou se correspondendo com Flora.

Mas ele era apenas uma entre as cerca de 1,2 mil e 1,3 mil pessoas com as quais o casal se correspondia frequentemente, de acordo com as estimativas baseadas no nosso acervo. Temos cartas de Monteiro Lobato, Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, José Maria da Silva Paranhos Júnior [Barão do Rio Branco]. Lendo as cartas, é possível reconstruir também um pouco da história do Brasil. E elas surgem no acervo a qualquer hora. Às vezes, você encontra uma ao abrir um livro. Achamos uma carta de Lima Barreto assim. É uma forma de entender não apenas a vida do casal, mas também a dinâmica deles com as pessoas e os intelectuais da época.

Quais são as principais dificuldades de manter e modernizar um acervo tão grande e único?

Digitalizar documentos raros requer mão de obra e equipamentos muito especializados. As máquinas de scanner para esse tipo de material são muito caras. Temos uma na universidade, mas queríamos ter um equipamento próprio para a biblioteca, assim não precisaríamos ter que movimentar o acervo pelo campus para ser digitalizado.

Temos ainda o agravante de estarmos nos Estados Unidos e necessitarmos de pessoas que falem português para fazer a catalogação, para entender aquilo que está sendo digitalizado. A gente acha que muito já poderia ter sido feito pelo acervo se não fosse a questão da língua. Só agora, depois de muitas décadas, temos brasileiros encarregados pela biblioteca.

É importante entender um pouco também do legado do Brasil, da memória brasileira. Quando você faz um trabalho de documentação e reconhece com o que está lidando, você trata o material de forma diferente, com mais zelo.

Além da digitalização e disponibilização do acervo, vocês têm outros projetos em prol da divulgação do conteúdo da coleção?

Nós estamos fazendo um projeto com o Senado Federal para comemorar os 200 anos da Independência do Brasil em 2022. Faremos uma publicação sobre os panfletos [materiais de até 50 páginas que podem ser cartas, livros, manuscritos] encontrados sobre o assunto na biblioteca. Atualmente estamos fazendo a curadoria dos conteúdos, que chegam a ser uma centena.

Outra instituição muito parceira é a embaixada do Brasil em Washington, cuja relação com a biblioteca vem desde sua inauguração, já que o próprio Oliveira Lima era diplomata.

Podemos dizer, então, que o projeto de modernização da biblioteca vai ao encontro do antigo sonho dos Oliveira Lima de divulgar o país?

Sim! Nos últimos 4 anos, a universidade fez um investimento de pelo menos US$ 500 mil no projeto — e estamos em campanha para arrecadar mais. Por isso, fundamos o Instituto para Estudos Latino-Americanos e Ibéricos (ILAIS), uma iniciativa idealizada por Manoel e Flora. Com o apoio da reitoria, estamos realizando um sonho do casal, que tinha essa ideia de inaugurar um centro de estudos que congregasse a cultura latino-americana nos Estados Unidos, aproximando todas as Américas.

Dirigido pela professora e pesquisadora em Direito Livia Lopes, o Instituto irá construir pontes com universidades brasileiras. Queremos que a biblioteca seja um espaço de acolhimento entre os latino-americanos nos EUA. Ela tem um papel muito importante no estreitamento das relações internacionais Brasil-Estados Unidos.

E como têm sido para você estar à frente desse projeto e ajudar a representar o país mundo afora? Como você concilia sua atuação como astrônoma com a supervisão da biblioteca?

Quando recebi essa missão — que, como cidadã e cientista brasileira, é uma honra —, logo comecei a planejar quais seriam as melhores formas de tornar todo esse material acessível a qualquer pesquisador do mundo, e principalmente ao público brasileiro.

À medida que fui me aproximando do acervo da biblioteca, também me fui me sentindo mais próxima do Brasil. Acho que é uma responsabilidade minha, como cidadã, cuidar da coleção e torná-la mais acessível, pois a forma como ela é acessada hoje é apenas presencial — ou seja, o pesquisador precisa vir até Washington para consultar os arquivos — ou por pedidos enviados por e-mail. Caso alguém queira fazer uma visita, é necessário marcar com antecedência, porque não temos funcionários o suficiente para deixar a biblioteca aberta.

O que eu quero é que qualquer criança no Brasil consiga encontrar no Google os materiais da nossa biblioteca. Quero que o conteúdo da Oliveira Lima chegue a todas as escolas e universidades brasileiras — e estamos dispostos a fazer novas parcerias para tornar isso uma realidade.