• Camila Mazzotto*
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A carioca Jacqueline Lyra é um dos rostos por trás da empreitada que vai trazer de volta para a Terra as amostras coletadas pelo robô Perseverance em solo marciano (Foto: Arquivo pessoal)

A carioca Jacqueline Lyra é um dos rostos por trás da empreitada que vai trazer de volta para a Terra as amostras coletadas pelo robô Perseverance em solo marciano (Foto: Arquivo pessoal)

Entre 2026 e 2031, a Nasa pretende trazer de volta para a Terra as amostras de rocha e poeira coletadas pelo rover Perseverance, que pousou em Marte no último dia 18 de fevereiro. Para a empreitada, batizada de Sample Mars Return (MSR), a agência espacial dos Estados Unidos contará também com a Agência Espacial Europeia (ESA) — e com uma brasileira.

Engenheira mecânica e aeroespacial, a carioca Jacqueline Lyra acompanhou o desenvolvimento do robô Perseverance desde quando o veículo ainda era, em suas palavras, “uma porção de peças que precisavam ser montadas”. Entre 2015 e 2018, se não estava entre os computadores do Laboratório de Propulsão a Jato (JPL, na sigla em inglês) da Nasa, podia ser facilmente encontrada nos chamados clean rooms (salas limpas, em tradução livre), espaços onde são construídos objetos espaciais.

Trajada com um “bunny suit” (ou “roupa de coelho”), uniforme usado em ambientes com nível controlado de contaminação, Jacque (como prefere ser chamada) participou, por exemplo, dos testes que simularam ao robô características como pressão, temperatura e vácuo de Marte. “Essa parte é muito mais legal do que quando passo dias dentro do meu escritório fazendo apresentações ou desenhos no papel”, brinca a engenheira espacial, em entrevista virtual a GALILEU.

Se estivesse no JPL, Jacque provavelmente passaria o dia desenhando o esboço da Sample Mars Return em uma sala de reunião, ao lado de dezenas de outros engenheiros da Nasa. Em casa, por conta da pandemia, a jornada se arrasta durante quase 11 horas de enc (Foto: Revista Galileu)

A carioca Jacqueline Lyra acompanhou o desenvolvimento do robô Perseverance desde quando o veículo ainda era, em suas palavras, uma porção de peças que precisavam ser montadas. (Foto: Reprodução)

Atualmente, a brasileira vive uma dessas fases de trabalho menos empolgantes – mas consideravelmente desafiadoras. A MSR, missão na qual está atuando, é dividida em duas grandes áreas, correspondentes aos principais equipamentos que serão lançados ao Planeta Vermelho em 2026 (se tudo der certo): uma nave espacial e um orbitador.

Encabeçado pela Nasa, o primeiro objeto carregará, dentro de si, um novo rover que será desenvolvido pela ESA. Este, por sua vez, quando chegar a Marte, vai capturar os pequenos tubos de material orgânico deixados pelo Perseverance em solo marciano, e depositá-los na órbita do Planeta Vermelho – caberá a um orbitador comandado pela agência europeia o transporte desse material de volta à superfície terrestre. Por aqui, as amostras passarão por análises detalhadas em laboratórios de diversos países. 

A brasileira diz ter um pé nos esboços das duas áreas. Por isso, sua rotina de trabalho começa cedo: por volta das 6h30 da manhã, a partir de quando se divide entre reuniões em grupo por videoconferência e tarefas individuais em seu computador. O expediente termina às 17h – ou até mais tarde. O sistema mecânico-térmico dos objetos é o principal alvo da engenheira, que, ao longo de seus quase 33 anos no JPL, participou do preparo de todas as missões da Nasa já enviadas a Marte.

Tanto na construção dos robôs quanto das naves espaciais, o objetivo de Jacque, compartilhado pela equipe que a carioca coordena, é resumido por ela em poucas palavras: encontrar um balanço térmico perfeito – ou just right (“simplesmente certo”, em tradução livre), como ela prefere descrever – para que esses objetos sobrevivam às condições climáticas extremas de Marte.

Engenheira mecânica e aeroespacial, a carioca Jacqueline Lyra acompanhou o desenvolvimento do robô Perseverance desde quando o veículo ainda era, em suas palavras, uma porção de peças que precisavam ser montadas.  (Foto: Arquivo pessoal)

Entre 2015 e 2018, se não estava entre os computadores do Laboratório de Propulsão a Jato (JPL, na sigla em inglês) da Nasa, podia ser facilmente encontrada nos chamados clean rooms (salas limpas, em tradução livre), espaços onde são construídos objetos espaciais (Foto: Arquivo pessoal)

O lugar mais frio da Terra, uma camada de gelo no meio da Antártida, tem cerca de -98 ºC. Em Marte, a temperatura mais gelada pode chegar a -130 ºC. A disparidade é ainda maior no que diz respeito aos locais mais quentes: por aqui, o Vale da Morte, na Califórnia, já atingiu 56,7ºC; em solo marciano, segundo a engenheira, há períodos em que o lugar mais aquecido não passa dos 20ºC. “O sistema de controle de temperatura da nave espacial mantém um equilíbrio muito delicado entre o congelamento profundo do espaço e o calor escaldante do sol”, explica ela.

Além de garantir que todos os mecanismos térmicos da nave e do orbitador funcionem em solo marciano – da eletricidade às antenas de telecomunicação –, a equipe da qual a brasileira faz parte também está construindo novos times de engenheiros para atuar na Sample Mars Return. Mas nem tudo precisa ser renovado: conquistas de missões anteriores são, de alguma maneira, reaproveitadas em projetos correntes. Há muito do Curiosity, robô lançado pela Nasa em 2011, no Perseverance, por exemplo.

Jacque exemplifica: o sistema de rejeição de calor, desenvolvido pela equipe da engenheira para o Curiosity, também foi, segundo ela, incorporado ao Perseverance. Uma vez que o rover atua como “o cérebro da espaçonave”, explica a cientista, uma grande quantidade de energia é gerada pelo veículo. Para que o excesso de energia não seja liberado no espaço – e, assim, “desperdiçado” –, o sistema bombeia mecanicamente o calor, que pode servir para aquecer equipamentos dentro do rover. “Mas também há muitas coisas que são como um papel em branco à nossa frente, teremos que construir agora”, diz ela.

Ciência, Brasil e maternidade

Se estivesse no JPL, Jacque provavelmente passaria o dia desenhando o esboço da Sample Mars Return em uma sala de reunião, ao lado de dezenas de outros engenheiros da Nasa. Em casa, por conta da pandemia de Covid-19, a jornada se arrasta durante quase 11 horas de encontros virtuais.

Ao longo de seus quase 33 anos no JPL, a carioca participou do preparo de todas as missões da Nasa já enviadas a Marte (Foto: Arquivo pessoal)

Ao longo de seus quase 33 anos no JPL, a carioca participou do preparo de todas as missões da Nasa já enviadas a Marte (Foto: Arquivo pessoal)

Mas, assim como naves e robôs só sobrevivem em condições de balanço termal, a engenheira considera que um estado de equilíbrio precisa ser prioridade também para quem é feito de carne e osso. “Além de ajudar na saúde do corpo, um balanço entre trabalho e tempo livre reduz o estresse”. Por isso, às segundas, quartas e sextas, ela preenche suas noites com atividade física. Aos fins de semana, o lugar favorito da carioca é o mais óbvio: “sou rata de praia”.

É o tipo de lazer que não aparece com a mesma frequência na rotina das engenheiras da Nasa com quem Jacque trabalha que são mães – especialmente em meio à pandemia, quando as tarefas domésticas recaíram com maior força sobre as mulheres. A brasileira já esteve na pele delas: é mãe solo de uma jovem de 19 anos.

Mackenzie ainda era bebê quando a cientista estava coordenando parte dos testes com os robôs Spirit e Opportunity, dois rovers do programa de exploração da Nasa a Marte lançados em 2004. Certo dia, em meio a uma emergência na creche onde a filha costumava ficar, perto do JPL, Jacque não teve alternativa. Comunicou logo à equipe: “Vamos dar uma pausa porque eu preciso de 5 minutinhos para ir logo ali”. Amamentou a pequena, deixou-a com uma amiga de confiança e voltou a trabalhar.

Por vezes, a jornada de testes com os robôs se estendia ao longo de cinco horas sem interrupções. O tempo era longo demais para quem precisava, periodicamente, retirar pequenas porções de leite dos seios: corria ao banheiro para encher os recipientes, armazenava-os na geladeira e retornava às atividades.

Depois de colocar os pés em casa, a jornada de trabalho continuava: a bolsa era deixada no chão, o corpo corria para o fogão. “Posso falar, com propriedade, que o que as mulheres mães estão fazendo durante essa pandemia é de tirar o chapéu”, elogia a engenheira. Apesar dos desafios, ela nunca imaginou que a filha iria encontrar, estampados nos livros de ciência, os robôs projetados pela mãe. Mas Mackenzie não vê graça nos astros — é estudante de Ciências Políticas. “Ela brinca dizendo que, pelo menos, está estudando algum tipo de ciência”, conta Jacque.

A engenheira fez questão de introduzir sua língua natal à filha. Até os 5 anos de idade, só conversava com ela em português. Quando estava crescendo, também a levava para a casa de sua família no bairro de Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro. Não deu outra: a jovem se tornou uma entusiasta da Cidade Maravilhosa. Segundo a mãe, Mackenzie virou fã das “feiras hippies do Rio” e das praias de Búzios, no litoral norte do estado.

Jacque já levou um pouco da cultura brasileira até para Marte. Foi ela quem, no dia 11 de julho de 1997, sugeriu que o robô Sojourner fosse despertado para mais um dia de trabalho no Planeta Vermelho com o samba “Coisinha do Pai”, eternizado na voz de Beth Carvalho.

Quando se aposentar, a cientista quer que também as memórias associadas ao seu legado carreguem a bandeira verde e amarela. “Desejo que as pessoas lembrem que eu comecei como qualquer outra pessoa de classe média do Brasil, com pais separados, morando com a avó e a mãe, estudando em escolas públicas”, afirma.

Se estivesse no JPL, Jacque provavelmente passaria o dia desenhando o esboço da Sample Mars Return em uma sala de reunião, ao lado de dezenas de outros engenheiros da Nasa. Em casa, por conta da pandemia de Covid-19, a jornada se arrasta durante quase 11 horas de encontros virtuais (Foto: Arquivo pessoal)

A carioca começou uma graduação em engenharia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mas, após uma visita à terra do Tio Sam, decidiu ficar por lá (Foto: Arquivo pessoal)

Fascinada pelo cosmos desde pequena, ela ainda lembra de como o céu estava no dia em que fez a entrevista que a colocou dentro do JPL, no dia 14 de abril de 1988, quando ainda tinha 26 anos. “Como havia acabado de chover na Califórnia, coisa rara, o céu estava lindo, sem neblina”. A cientista até queria ter ficado no Brasil, mas na época em que prestou o vestibular, fim da década de 1970, o país tinha apenas duas instituições com cursos que se aproximavam da astronomia – e ambas só aceitavam homens.

A carioca começou uma graduação em engenharia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mas, após uma visita à terra do Tio Sam, decidiu ficar por lá. Passou pelo Instituto de Tecnologia de Nova York, onde se formou em engenharia, e, em 1988, concluiu um mestrado na Universidade do Texas – mesmo ano em que ingressou na Nasa.

Dos robôs Sojourner ao Perseverance, a carreira da brasileira tem girado em torno de Marte. Mas sua "missão de vida" é outra: despertar o interesse de pelo menos uma criança ou jovem do Brasil para a ciência. Às vezes, mal consegue acreditar que seu nome está escrito nos projetos de exploração do Planeta Vermelho. Incorporando descobertas anteriores e chegando à luz de novas, as missões ao solo marciano parecem seguir uma linha de evolução sem fim. “É como acompanhar uma história de vida”, resume a engenheira. E que história!

*Com supervisão de Luiza Monteiro