A fisioterapeuta Francielle Fontana Jorge, 37, está lutando para reparar sua casa e sua clínica que foram afetadas pelas enchentes em Guaíba, no Rio Grande do Sul. A mãe de duas meninas ficou abrigada no segundo andar da sua casa e ainda acolheu mais três famílias, incluindo os vizinhos e até uma desconhecida que encontrou na rua que estava com uma bebê de quatro meses no colo. Agora, depois que as águas baixaram, ela está tentando limpar e recuperar o que pode. "Está parecendo uma cena de guerra", diz em entrevista exclusiva à CRESCER.
Tudo começou em 4 de maio, um sábado. "Eu estava na minha clínica, que fica no bairro Cohab, que foi fortemente atingido pela enchente. Eu estava atendendo uma paciente às 9 horas, estava tudo normal, até que o marido dela começou a ligar para ela e bater na porta. Ele estava gritando dizendo que a água estava subindo e era para a gente sair de lá", lembra. Ela pegou o carro e tentou levar a paciente até a casa dela, mas a água estava ficando cada vez mais alta, então, teve que parar. Em seguida, ela checou nos pais, que moravam na frente da clínica e os avisou para subir os móveis para o segundo andar e foi para a sua casa, que ficava em um bairro próximo, o Santa Rita. "A água subiu muito rápido, em questão de cinco minutos, não tinha como não pisar em água", diz.
Chegando em casa, ela já avisou o marido, deixou o carro e tentou voltar para o Cohab de bicicleta para ajudar os pais, mas na metade do caminho, eles viram que não iam conseguir chegar até lá. Na volta, ela encontrou uma mulher com uma bebê de quatro meses no colo e sua mãe indo em direção ao bairro em que a água estava mais alta e ofereceu que elas se abrigassem na sua casa. "A água veio muito rápido e veio muita intensa, com bastante volume. Elas não iam conseguir, estava muita correnteza", diz.
"Nós começamos a subir os móveis para o segundo andar, felizmente, tivemos tempo, demorou cerca de 40 minutos para a água entrar na minha casa", recorda. O marido de Francielle é bombeiro, por isso, ele sabia o que fazer e eles não perderam tempo. "Também subimos comida e água potável", afirma.
Ela também ofereceu abrigo para dois de seus vizinhos. "O terreno de um deles é mais baixo, então, a água já estava dentro da casa deles. Então, eles trouxeram roupa, colchão, televisão, foram levando tudo que conseguiam", lembra. No segundo andar, tinham três quartos, então, eles conseguiram se dividir. Estavam em 13: um casal que era vizinho; outro casal que também era vizinho que tinha uma filha de quatro anos; a mulher com sua mãe e a bebê que ela conheceu na rua; Francielle, o marido, as filhas gêmeas de três anos, Helena e Heloísa, e a sogra.
"Minhas filhas usam muito a palavra 'medo'"
"Estávamos basicamente bem estruturados, tinha fogão, nossos quartos, roupa seca, camas, caixa d'água. Mas ficamos sem luz. Quando a água ficou acima do joelho, começaram a passar barcos oferecendo para sairmos e irmos para abrigos, mas decidimos ficar", conta. A água chegou até o nível da cintura no andar de baixo. "Colocamos um limite, se a água subisse até a metade da escada, a gente ia sair, mas chegou apenas até o quarto degrau", diz.
Aos poucos, a velocidade da água foi diminuindo e, segundo Francielle, na manhã seguinte, domingo, parou de subir. "Durante a madrugada, o casal decidiu sair e, de dia, o outro casal com a filha de 4 anos também. Nós e a mulher com a mãe e a bebê continuamos, achávamos que a água ia baixar", explica.
As crianças conseguiram ficar calmas durante o tempo em que ficaram ilhados. "Como a gente, dentro do possível, manteve a calma e não se desesperou, elas ficaram bem tranquilas. Mas, com o tempo, elas estavam entendendo a gravidade da situação", afirma. Tiveram alguns momentos em que Helena e Heloísa ficaram preocupadas. "Quando eu e o meu marido tentávamos sair para ir na casa dos meus pais, elas choravam muito, gritavam e pediam para a gente ficar em casa", explica. "Elas também usavam muito a palavra 'medo', coisa que elas não faziam antes", acrescenta.
"A vida está uma bagunça"
Mas as condições começaram a ficar mais insalubres conforme o tempo foi passando. "A água já estava ruim para lavar louça, tínhamos de alternar os dias dos banhos para economizar água, tomávamos banho de caneca, estávamos sem luz, sem internet e com uma bebê de quatro meses e duas crianças de três anos, ficou bem desconfortável", explica.
Apesar da água ter baixado, ainda estava alta. Por isso, na segunda-feira (6 de maio) à tarde, depois de três dias ilhados, resolveram sair e foram para o quartel dos bombeiros. "Um barco entrou na minha sala para nos buscar", recorda. Três dias depois, ela começou a limpeza da casa. "A água ainda estava na altura do joelho na rua, mas na casa não tinha mais. Então, a gente já foi tirando coisas, botando fora, pelo menos tirando aquela lama", afirma. No início dessa semana, a luz voltou e eles retornaram para a casa.
"Mas a prefeitura e a Defesa Civil não querem que as pessoas fiquem em casa porque ainda existe um risco de alagamento. Alguns dias atrás tinha carro de som passando na rua dizendo que é para evacuar o bairro e ir para os alojamentos. Na última terça-feira (14), subimos todos os móveis de novo e voltamos para o quartel de bombeiros", diz Francielle. "A coisa está muito tensa por aqui, parece uma cena de guerra", lamenta.
Agora, eles voltaram para casa e seguem com a arrumação. "A vida está uma bagunça, não tem hora para almoçar, não tem hora para tomar café, não tem hora para nada. As minhas filhas estão com a rotina totalmente desorganizada. Nós estamos sem carro, os dois estragaram, os mercados próximos estão fechados, porque o bairro todo está se reconstruindo, então, é caos total. A gente está focado em limpar o máximo de coisa que conseguir", afirma.
O maior desafio será recuperar sua clínica de fisioterapia. "A água chegou a 1,55 metros. Todos os aparelhos, as agulhas de acupuntura, geladeira, ar condicionado, tudo foi perdido. Parece que passou um terremoto, tudo está virado e cheio de lama", destaca. "Estou sem trabalhar e acho que vai demorar para conseguir voltar. Meus alunos tiveram as casas devastadas e vamos sentir as consequências disso no mínimo todo esse ano e mais um pouco do ano que vem. Além dos custos para consertar as coisas para retorno às atividades de trabalho", diz.
Situação no Rio Grande do Sul
As enchentes causaram ao menos 151 mortes, segundo boletim divulgado na manhã desta quinta-feira (16). O número pode aumentar nos próximos dias, já que ainda há 104 desaparecidos. As mortes ocorreram em 44 cidades, conforme a Defesa Civil, e há 806 feridos. No total, 458 dos 497 municípios do estado foram afetados, sendo que 77.199 pessoas estão desabrigadas e 538.164 ficaram desalojadas.