Comportamento
 


Desde criança, a contadora Valquíria Calazans, 35, sonhava com o dia em que se tornaria mãe. Foram décadas e décadas imaginando como seria esse momento até que, em plena pandemia, depois de seis anos de relacionamento, veio o teste positivo de gravidez. A gestação foi tranquila e muito comemorada por ela e pela família.

Mães não deixam de ser mães porque perderam o filho — Foto: Getty Images
Mães não deixam de ser mães porque perderam o filho — Foto: Getty Images

Em 18 de janeiro de 2021, nove dias antes da data prevista para o nascimento, o pequeno Benjamin começou a dar sinais de que estava na hora de chegar. Valquíria foi e voltou ao hospital algumas vezes até, finalmente, a equipe plantonista entender que ela tinha dilatação suficiente para o parto. Porém, quando foi levada ao centro cirúrgico, era tarde demais. Benjamin nasceu, mas ninguém ouviu seu choro. Não havia mais nada que pudesse ser feito. “É uma dor dilacerante, mas, até ali, eu não tinha noção do que era perder um filho. Eu tenho duas amigas que também passaram por perdas gestacionais na época, mas nunca tive coragem de perguntar sobre a situação. Só fui fazer isso quando me vi nesse lugar também”, lembra. Assim como aconteceu com Valquíria e as amigas, nem sempre um teste de gravidez positivo é sinônimo de uma história com desfecho feliz. Segundo o Ministério da Saúde (MS), em 2022, foram registrados pelo menos 69.417 casos de óbitos fetais e perinatais no Brasil. Isso significa que, só no ano passado, quase 70 mil famílias passaram pela experiência de se despedir de um filho que faleceu entre a 22ª semana de gestação e o sétimo dia de vida.

“Nós estimamos que mais ou menos 10% das gestações têm alguma ameaça de abortamento. Dessas ameaças, cerca de 50%, de fato, se concretizam. Fora isso, existem inúmeras outras causas de desfechos desfavoráreis, que podem fazer com que a gravidez e o parto não sigam da forma esperada”, explica o obstetra Jorge Rezende Filho, membro da Comissão de Medicina Fetal da Febrasgo e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Apesar de os números serem significativos, pouco se fala sobre o assunto. Ainda existe um tabu grande em torno da morte – principalmente quando ela ocorre num momento em que todos deveriam estar celebrando a vida. “Desde que o mundo é mundo, gestações são interrompidas e bebês morrem no parto ou no pós-parto. Falar de maternidade e não olhar para o fato de que, eventualmente, haverá perdas, é como tapar o sol com a peneira”, diz a psicóloga Heloisa Salgado, que tem pós-doutorado em saúde pública e reprodutiva (SP).

É óbvio que, enquanto familiares, buscamos fazer o pré-natal corretamente e manter a gravidez o mais saudável possível. Enquanto cidadãos, também devemos cobrar das autoridades políticas públicas que tenham o objetivo de reduzir as taxas de mortalidade gestacional e perinatal. “Ainda assim, precisamos assumir que sempre vai existir uma parcela dos casos que não vamos controlar”, completa Heloisa.

Justamente por isso é importante trazer o debate à tona. Tanto é que em 15 de outubro é celebrado o Dia Internacional da Conscientização da Perda Gestacional ou do Recém-Nascido. Esta é uma campanha que países do mundo todo fazem para homenagear os pequenos que partiram prematuramente, pedir por iniciativas que acolham de forma respeitosa as famílias enlutadas e mostrar à sociedade que esses bebês merecem (e devem) ser amados e lembrados, assim como qualquer outra criança que continua aqui.

As marcas deixadas pela perda

Famílias abordam o luto perinatal — Foto: Getty Images
Famílias abordam o luto perinatal — Foto: Getty Images

Não há o que questionar: perder um filho é uma das situações mais inimagináveis e doloridas. Ninguém espera que pais e mães saiam ilesos depois de uma experiência como essa. Afinal, a partida de um bebê inverte a ordem natural das coisas. Quando morre uma criança, junto com ela morrem também os sonhos, os planos e um ideal de família.

A psicóloga e escritora Damiana Angrimani, 40, sabe bem o que é isso. Em 2013, ela engravidou e teve de se despedir do seu filho logo nas primeiras semanas de gestação. A experiência foi tão marcante que decidiu criar o Instituto do Luto Parental, onde acolhe famílias que também passaram pela mesma situação. “Quando a gente perde um adulto é difícil, mas nós temos uma história, um passado a que nos apegar. Quando é um bebê, sentimos uma dor por algo que ainda nem aconteceu. E perder o futuro é extremamente doloroso”, diz.

Não à toa, 60% dos pais enlutados apresentam sintomas de depressão, ansiedade e estresse pós-traumático, segundo uma revisão feita por pesquisadores da Universidade Saint Martin (EUA), no ano passado. Esse tipo de perda, que acontece ainda na gravidez ou logo após o nascimento, pode ser até mais incapacitante do que outras. Relatos de luto complicado (quando a pessoa apresenta extrema dificuldade de retomar a rotina) após óbito perinatal variam de 25 a 75%. Nos outros casos, esse índice é de apenas 4%.

Infelizmente, em 2022, a administradora Maria Teresa Echeverria, 31, entrou para essa estatística. Mãe de Alejandre, 7, ela teve de se despedir de seu segundo filho, Benjamin, apenas nove dias depois de recebê-lo nos braços. “Eu não queria sair e nem falar com ninguém. Nem a luz do quarto eu acendia. E a sensação era mesmo de que eu nunca fosse sair dessa escuridão. Eu me sentia muito sozinha, porque parecia que a minha vida tinha parado, enquanto a de todo mundo continuava”, lembra.

Quase um ano depois, Maria Teresa, aos poucos, tem conseguido retomar a rotina. Ela entrou para a faculdade de Direito e, em homenagem ao filho que partiu, fez um projeto para arrecadar fundos e doações a um hospital público da cidade onde mora. “Eu digo que vivo uma montanha--russa. Um dia estou bem, lá em cima, e, do nada, eu despenco na velocidade da luz. Mesmo que passe uma vida inteira, sempre vai ter uma parte de mim que dói muito. É difícil ver as mães com seus filhos e eu sabendo que está faltando um meu. Não tem um só dia que não me lembre do Benjamin.”

A maternidade “invisível”

O que significa ser pai e mãe? O que faz com que alguém seja digno de receber esse título? Pouco mais de um ano depois de perder o primeiro filho, Valquíria, do começo da reportagem, engravidou de novo. Foram 35 dias sabendo da existência do segundo bebê, até que veio a notícia de que havia sofrido um aborto espontâneo. “Quando achei que estava começando a levar a primeira perda mais de boa, veio um outro baque por cima”, diz. Hoje, está grávida novamente, agora de 24 semanas. Apesar de ser seu terceiro filho, ela conta que são poucas as pessoas que a veem como mãe. “É muito difícil enxergar as mães de colo vazio, como eu. Eu me sinto invisível ainda. Infelizmente, a maternidade só é reconhecida se você estiver com o seu filho no colo.”

E tem mais: enquanto todos parecem ignorar o que aconteceu, o corpo da mulher a faz lembrar a todo tempo que deveria haver um bebê ali. Logo depois da perda, o luto passa a dividir espaço com os desafios do puerpério e de um organismo que continua sob a ação dos hormônios da gravidez e do parto.

“Eu nunca imaginei isso, mas estava no velório do meu filho com o peito vazando. É um desespero muito grande ver que seu organismo está produzindo leite para um bebê que já não está mais aqui. As primeiras semanas foram terríveis”, lembra a fotógrafa Anna Carolina Negri, 39. Em 2 de junho de 2021, apenas 15 dias depois de dar à luz, ela se despediu do Jonas, seu primogênito. Ele foi embora depois de um quadro de enterocolite necrosante e quatro paradas cardíacas.

A volta para casa, a retomada da rotina, o desafio de ter que encarar o quartinho do bebê vazio… Anna Carolina lembra que nada disso seria possível se não fosse o acolhimento e o carinho de seu companheiro, Maurício. “Foi ele que pegou a bombinha e me ajudou a tirar o leite quando eu cheguei em casa. Eu estava tão mal que as pessoas involuntariamente falavam para ele cuidar de mim. Mas o que ninguém via é que ele perdeu o filho dele também. E que, por mais que meu corpo estivesse mais debilitado, ele precisava de colo, assim como eu.”

Preservando a memória

É importante guardar memórias do filho — Foto: Getty Images
É importante guardar memórias do filho — Foto: Getty Images

A morte de uma criança é um assunto delicado. Às vezes, mesmo com a melhor das intenções, acabamos empurrando a história para baixo do tapete, na ilusão de que, assim, ninguém precisará ficar desconfortável ao relembrar tudo o que aconteceu. Porém, na tentativa de poupar a dor, ocorre o efeito contrário. “Esse comportamento faz com que as pessoas sofram sozinhas. Quem perdeu o filho já está pensando nisso 24 horas por dia. Falar sobre o bebê é dar uma oportunidade para que elas lembrem e validem socialmente a existência dessa criança e da sua maternidade e paternidade”, explica a psicóloga Heloisa Salgado.

Pode até parecer contraditório num primeiro momento, mas, em outras palavras, o conselho dos especialistas é: para aliviar a dor da partida é preciso se lembrar dela e construir memórias. A mineira Paula Beltrão aprendeu isso na prática. Depois de anos trabalhando como fotógrafa de partos em Belo Horizonte (MG), algo começou a incomodá-la. Por mais que a maioria de seus registros fossem alegres, vez ou outra ela observava nos hospitais famílias chorando e saindo dali de braços vazios.

“As pessoas estão preparadas para momentos felizes, não de despedidas. Mas isso não quer dizer que viver e registrar essa partida não seja importante”, defende. Com esse pensamento, ela se juntou à obstetra Mônica Nardy e à psicóloga Daniela Bittar e, assim, fundaram o Grupo Colcha, que oferece apoio e acolhimento a quem perdeu um bebê. Uma das formas que fazem isso é justamente registrar e eternizar em fotos o pouco tempo em que os pequenos puderam estar junto de suas famílias.

Para muitos, as fotos produzidas pelo Grupo Colcha são as únicas que restam após o funeral. “Com o tempo, fomos entendendo que são essas lembranças que ficarão. Mas não é só uma foto, é também a chance de tocar o filho mais uma vez. Não temos como mudar aquela realidade, só que podemos olhá-la sob um viés mais amoroso e carinhoso”, afirma Paula.

Seguindo em frente

Seguindo em frente após a perda de um bebê — Foto: Getty Images
Seguindo em frente após a perda de um bebê — Foto: Getty Images

Depois da partida de Jonas, a fotógrafa Anna Carolina Negri buscou ajuda profissional para lidar melhor com a nova fase que começava na sua vida. Em pesquisas na internet, encontrou um instituto que oferecia terapia gratuita para pessoas com histórias parecidas com a dela. Foram seis meses de tratamento com uma psicóloga e de reflexões até entender que, apesar do que aconteceu, ainda tinha vontade de engravidar de novo.

Ela e o companheiro, então, recorreram à ajuda de uma médica geneticista, fizeram vários exames, adotaram uma rotina mais saudável e, menos de um ano depois da perda do primeiro filho, receberam a notícia de que estavam esperando um outro bebê. “Foi um mix de sentimentos. Eu só rezava e pedia para que Deus mantivesse aquela criança com a gente. Eu vivia um eterno pavor, tinha muito medo de que pudesse acontecer qualquer coisa de novo.”

No último dia 31 de dezembro, a pequena Diana chegou tranquilizando as inseguranças que ali estavam até então. “Ela nasceu e nós renascemos como uma família de quatro. Hoje, ela olha a foto do irmão na geladeira e dá risada, como se soubesse que ele está ali com a gente. Quero que ela cresça sabendo que nunca será a irmã mais velha, porque essa posição sempre vai ser do Jonas.”

Falar com pessoas que passaram por experiências parecidas, participar de grupos de apoio e buscar atendimento especializado são algumas das formas de ajudar nesse processo de seguir em frente. Mas não existem fórmulas prontas, como diz a psicóloga Damiana Angrimani, coordenadora no Instituto do Luto Parental. Cada pessoa vai descobrindo o seu jeito para continuar. “É um caminho solitário na etapa de elaboração, mas que pode, sim, ter amparo. O luto não acaba e o bebê que se foi não volta, a dor sempre vai continuar ali. Mas essa história pode ser reescrita”, conclui.

Questão de saúde pública

Já não bastasse a dor de perder um filho, muitas famílias ainda relatam a falta de preparo e de apoio psicológico por parte das equipes de saúde nas maternidades e nos hospitais para lidar com mães e pais enlutados. Infelizmente, no Brasil, não existe uma diretriz nacional, nem na rede pública nem na privada, que oriente as instituições de saúde sobre o que fazer nesses casos.

Enquanto isso, alguns hospitais alçam voo-solo e criam seus próprios protocolos de atendimento. No Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por exemplo, desde 2021 as famílias enlutadas são acolhidas por equipes treinadas e têm a chance de se despedir do filho de forma privada e individualizada. Os familiares são avisados da possibilidade de registrar as memórias do bebê por meio de um kit personalizado e de participar de uma roda de conversa e de apoio após a alta. “Nosso mantra é oferecer uma experiência máxima de cuidado, apesar da máxima dor”, diz Juliana de Oliveira Marcatto, professora do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Saúde Pública da UFMG e coordenadora do Projeto de extensão e pesquisa “Renascer: cuidado multidisciplinar do luto perinatal”.

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