Comportamento
 

Por Nathan Fernandes


Bento estava se preparando para completar 4 anos em fevereiro de 2019. Em meio às compras de lembrancinhas para a festa, ele pediu para a mãe comprar adesivos. Na loja, escolheu os da Princesinha Sofia. “Filho, olha esses do Batman, do Homem-Aranha… Não são legais também?”, rebateu a mãe, Thamirys Nunes, 33 anos, de Curitiba (PR), que hoje é ativista pelos direitos trans infantojuvenis. “Ah, mãe, mas o da Princesinha Sofia é mais bonito...” Ao ver que a mãe não cederia, a criança propôs uma solução que agradasse a ambos: “Já sei, mãe! A gente compra um de herói e um da Princesinha Sofia, assim nós dois ficamos felizes! Pode ser?”. Sem querer fazer joguinhos com o próprio filho, Thamirys o deixou comprar o que queria. 

Não era a primeira vez que Bento sugeria que ele e sua mãe precisavam de coisas diferentes para serem felizes. Em outra ocasião, a criança insistiu que tinha “voz de menina”, mesmo com a mãe afirmando que ele tinha “uma linda voz de menino”. Para gerenciar o conflito, a criança sugeriu que cada um pensasse o que quisesse sobre sua voz, assim não teriam problemas. Bento nem tinha completado 4 anos, e Thamirys já colecionava situações que indicavam que seu filho não se adequava ao gênero com que tinha nascido.

Família com crianças trangênero — Foto: Getty Images
Família com crianças trangênero — Foto: Getty Images

Vale reforçar que são várias questões que sugerem a transgeneridade. O simples fato de a menina gostar de brincar com carrinhos, preferir futebol ao balé ou amar a cor azul não diz absolutamente nada sobre identidade de gênero. O mesmo vale para o menino. Não é porque ele é mais emotivo, adora brincar de casinha e tem a cor-de-rosa como preferida que estes são sinais de atenção para os pais. É preciso muito cuidado para não cair em estereótipos de gênero, o que só retringe o universo (e as conexões cerebrais) dos pequenos, que ainda estão explorando todas as possibilidades ao seu redor [veja mais no fim desta reportagem].

No livro Minha Criança Trans?, lançado de forma independente, Thamirys Nunes conta a trajetória – cheia de percalços, inseguranças e dúvidas – que a levou a se descobrir como mãe de uma menina trans, hoje com 7 anos. “Eu quase morri, tive uma depressão fortíssima e cheguei em um ponto no qual achei que nunca seria feliz”, conta à CRESCER, ela, que hoje é uma das coordenadoras da Aliança Nacional LGBTI e vice-presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (ABRAFH). A salvação, segundo Thamirys , foi a busca incessante por informações. 

“Eu entendi que dentro de mim havia a mãe e a mulher. Enquanto a mãe era importante para aquela criança, a mulher tinha uma série de expectativas e sofrimentos. Assim, percebi que poderia ficar feliz e triste ao mesmo tempo”, explica, lembrando de quando fez a retificação da certidão de nascimento da filha, que passou a se chamar Agatha. “Quando peguei a certidão, fiquei feliz por ela, era uma conquista depois de vários casos de transfobia – como quando um motorista de ônibus não queria nos deixar embarcar, por causa dos documentos, e ameaçou nos deixar na estrada, caso passasse por uma blitz. Mas também fiquei triste, porque era uma despedida do meu Bento, que deixaria de existir inclusive no papel. Mas, como adultos, podemos procurar ajuda e aprender a lidar com esses sentimentos.” 

 Thamirys Nunes, mãe da Agatha, uma menina trans — Foto: Acervo pessoal
Thamirys Nunes, mãe da Agatha, uma menina trans — Foto: Acervo pessoal
“Ao reconhecer a Agatha como uma menina trans, passei por uma depressão. Mas entendi que, ao compartilhar minhas fraquezas, as pessoas entendem melhor. Percebi que era uma pessoa de privilégios, e hoje, que tenho uma família trans, a sociedade me olha diferente. E meu olhar também mudou. Muitas crenças caíram por terra. Aprendi que precisamos nos unir. Quando somos um coletivo, tudo fica mais fácil. Ou melhor, menos impossível.” 
— Thamirys Nunes, mãe da Agatha

Mundo não binário

Os dados sobre a população trans no Brasil são escassos. Uma pesquisa realizada na Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp estimou que 2% dos brasileiros se identificam como transgêneros ou não binários (que não se identificam nem como homem nem como mulher). Não existem dados relativos a crianças e adolescentes. A recusa do IBGE de incluir questões sobre gênero e sexualidade no questionário do Censo de 2022 – sob a alegação, entre o utros pontos, de que não haveria tempo útil, depois de dois anos de atraso – ajuda a aumentar a ideia de que a população LGBTQIA+ é invisível. Mas essas pessoas existem.

Aos pais que se deparam com essa questão, a pediatra Alda Azevedo, presidente do Departamento Científico de Adolescência da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), lembra que é preciso levar em consideração que a incongruência de gênero não é um ato de vontade pessoal e, sim, uma condição. Para entender melhor, basta fazer um questionamento simples: em que momento da vida você, que lê esta reportagem, escolheu ser mulher ou homem? A resposta mais provável seria algo como: “Eu não escolhi, já nasci assim”. O mesmo vale para pessoas transgêneras.

Na verdade, de acordo com Alda Azevedo, a identificação com os gêneros se dá nos primeiros meses de vida. “Entre 6 e 9 meses, os bebês já são capazes de diferenciar vozes e rostos de homens e mulheres. Aos 12 meses, associam vozes masculinas e femininas a determinados objetos tidos como típicos de cada gênero. Embora mais nítido aos 2 anos, crianças de 17 a 21 meses têm habilidade de se identificar como meninos ou meninas, e apresentam brincadeiras culturalmente tidas como de determinado gênero”, aponta. Reforçando que não preferir certos brinquedos, como carrinho ou boneca, não definem gênero.

O que se entende por identidade de gênero tem início entre os 2 e 3 anos. Para a maioria das pessoas, esse entendimento está em conformidade com o sexo biológico. Isso é, no geral, pessoas que nascem com pênis se percebem como homens, e pessoas que nascem com vagina se percebem como mulheres. São as pessoas cisgêneras. Eventos como chás de revelação ajudam a reforçar essa expectativa binária, ou seja, a ideia de que existem apenas duas possibilidades para os bebês que ainda nem nasceram.  

Mas nem sempre os órgãos genitais e a identidade de gênero são correspondentes. A história e a ciência mostram que pessoas que nascem com pênis também podem se identificar como mulheres, e pessoas que nascem com vagina também podem se identificar como homens. São as pessoas transgêneras. Em alguns casos, o indivíduo pode, inclusive, não se identificar nem como homem, nem como mulher. São as pessoas não binárias – caso de artistas como Bárbara Paz e Demi Lovato. Apesar de serem condições respaldadas pela ciência atual, o preconceito social faz com que elas enfrentem situações difíceis. “O estresse, o sofrimento e o desconforto causados por essa discrepância é chamado de disforia de gênero”, explica a pediatra Alda. 

Para muitas pessoas, isso parece difícil de entender. E há uma razão para tal. Desde muito cedo, somos ensinados a pensar de forma binária, como se as coisas sempre estivessem uma em oposição à outra. É a lógica da cultura ocidental, na qual vivemos, que opera sob conceitos como “bem x mal”, “claro x escuro”, “gay x hétero”, “homem x mulher”. Sem considerar que, entre questões como “preto” e “branco”, existe um arco-íris inteiro. 

Essa lógica tenta se vender como a única forma possível de interpretar o mundo. Mas não é. Outras culturas apresentam formas distintas de pensar e, inclusive, de compreender as questões de gênero. Para algumas culturas africanas, por exemplo, a ideia de transgeneridade simplesmente não existe. Xica Manicongo, a primeira travesti conhecida do Brasil, que viveu no século 16, veio do Congo, onde era considerada uma “cudina”, o equivalente a uma divindade. Neste lado do Atlântico, foi escravizada, desumanizada e forçada a viver como homem. Até hoje, na Índia, as “hijras” (como são conhecidas as mulheres trans) são chamadas para abençoar casamentos na zona rural, onde são consideradas sagradas. Conhecer essas histórias nos ajuda a compreender que o modelo ocidental nem sempre consegue dar conta da complexidade do mundo em que vivemos. 

Acolher para cuidar

Depois de consultar uma profissional que orientou Thamirys a “reforçar o masculino” em Agatha – o que não resolveu nada, gerou sofrimento e um atraso de dois anos no entendimento de sua transgeneridade –, a mãe se consultou com outros especialistas. Entre eles, Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS) do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, maior referência do Brasil nos estudos sobre infância e adolescência trans

“Para os pais, muitas vezes, é difícil e triste constatar que a criança não se identifica com o sexo de nascimento. Reconhecer que isso existe é o primeiro passo”, orienta Saadeh. Mas como é possível saber se uma criança é transgênero ou se ela está apenas brincando com objetos que ela considera divertidos? “Se é algo que é estável e está presente o tempo todo da vida da criança, vale a pena buscar um especialista. Mães são perspicazes em perceber essa diferença e, muitas vezes, são acusadas indevidamente de ‘incentivar e favorecer’ um comportamento anômalo. Na verdade, elas só respeitam o que lhes é legítimo na solicitação da criança e tentam a todo custo evitar que ela sofra.” Foi o que fez Thamirys em relação a Agatha. “Quando alguém afirma que eu incentivei a minha filha, sempre falo para a pessoa ler meu livro ou ver alguma live minha. Não foi um processo fácil.”

Já a professora capixaba Laura Ribeiro da Silveira, 46 anos, passou por um processo diferente, quando o filho Thales (que nasceu biologicamente como menina) contou que se identificava como um menino trans, aos 11 anos, depois de conhecer o tema na internet. “Para mim, fazia sentido, porque, ao longo da vida, ele sempre teve uma preferência nítida por papéis associados ao gênero masculino”, conta a mãe, ao lembrar que o filho, hoje com 12 anos, desde sempre, rejeitava enfeites de cabelo e roupas femininas, preferindo jogar bola e ficar sem camisa. Antes mesmo de se entender como trans, Thales já dizia que preferia ser um menino. “Quando é uma brincadeira, é passageiro. Quando é uma questão de identidade, há uma insistência. Aquele menino novinho que já amarra a fralda na cabeça porque gosta de cabelos longos, por exemplo, não consegue verbalizar. Então, é pela insistência que ele mostra para os adultos sua identidade. Quando é mais velho, ele fala”, afirma Laura.

Laura Ribeiro da Silveira, mãe do Thales, um menino trans — Foto: Acervo pessoal
Laura Ribeiro da Silveira, mãe do Thales, um menino trans — Foto: Acervo pessoal
Desde que Thales me contou que era um menino trans, a libertação foi tão grande que eu só consegui voltar minha atenção a isso. Pensei: era um menino preso numa identidade que não era a dele esses anos todos. Veio a sensação de resolução. Aquela criança tímida e insegura, na verdade, estava incomodada com uma questão muito maior. Não fiquei triste, porque só consegui focar no aspecto positivo.”
— Laura Ribeiro da Silveira, mãe do Thales 

Segundo a professora, o acolhimento é uma das coisas mais importantes que os pais podem fazer. “Os adultos devem fomentar a rede de apoio para a criança transicionar com segurança e qualidade de vida. Isso é importante porque sabemos da questão de depressão e suicídio. O dia em que a sociedade aprender a acolher essas crianças, o problema acaba. Mas sei que esse dia está longe”, lamenta Laura. 

Como lembra Alda Azevedo, da SBP, por causa da incongruência, pessoas trans podem viver um intenso conflito interno. “Esse sofrimento psíquico [disforia de gênero] pode determinar tentativas de suicídio, depressão, ansiedade e angústias das mais diversas formas. Em muitos casos, os familiares podem contribuir na abordagem dessas manifestações, funcionando como um elo entre os pacientes e os serviços de saúde, dando apoio e compreendendo seu filho ou filha para que sejam cuidados com dignidade, humanização e sem distinção de raça, cor e sexualidade”, afirma.

De acordo com a organização The Trevor Project, uma das maiores instituições dedicadas à saúde mental de pessoas LGBTQIA+ dos Estados Unidos, quase metade dos jovens LGBTQIA+ daquele país “consideraram seriamente o suicídio” em 2021. A pesquisa de abrangência nacional, que foi feita com 34 mil jovens, entre 13 e 24 anos, identificados como parte desse grupo, constatou que 45% dos participantes pensaram em atentar contra a própria vida, e 14% tentaram, de fato, pelo menos uma vez. 

Os pais e mães que conseguem acolher seus filhos no momento de transição percebem uma clara mudança no humor e no comportamento das crianças. “Thales costumava ser mais fechado e tímido. O primeiro comentário que meus sogros fizeram quando o viram depois de se entender como trans foi: ‘Nossa, como ele está solto, feliz e conversador!’ Então, para mim, essa mudança não trouxe sofrimento, porque me concentrei muito nesses aspectos positivos.”

Amor incondicional

Acolher o filho também foi a principal preocupação do advogado pernambucano Aizamarch Almeida, 48 anos. Quando tinha 16 anos, Júlia, como era chamada até então, disse sentir atração por meninas, mas não se considerava lésbica. Na época, Almeida era pastor da Igreja Batista, e sentiu que sua ocupação poderia afastá-lo do filho. Juntando isso a outras questões, depois de mais da metade da vida dedicada ao ministério pastoral, decidiu abdicar do cargo. Três meses depois, Júlia se apresentou como Juno, hoje com 23 anos. “Uma dúvida que já existia desde a primeira infância se confirmou, porque sempre fui muito observador e próximo dos meus filhos”, conta o pai, lembrando que, desde sempre, o filho já demonstrava interesse por questões associadas ao gênero masculino. 

Juno, de camisa azul, com  o pai e a irmã, Giovana — Foto: Acervo pessoal
Juno, de camisa azul, com o pai e a irmã, Giovana — Foto: Acervo pessoal

“Eu sabia que, se estivesse no ministério, ele não se sentiria à vontade para se abrir comigo”, lembra. “Na época, falei: ‘Talvez eu não saiba nem 10% sobre o tema LGBT, mas entre saberes e sentimentos, eu escolho o que sinto por você’. O que a sociedade entende como certo hoje pode mudar amanhã, mas o que eu sinto pelos meus filhos não muda nunca.”

O ex-pastor, então, fez questão de acompanhar Juno ao cartório para fazer a retificação do nome. O mesmo cartório no qual, anos antes, fez o registro do filho com um nome feminino. “Mais uma vez, como sempre, eu estive do lado do meu filho, para ele entender que, além de dizer que o ama, o pai dele também demonstra”, afirma Almeida. 

A foto dos dois na frente do cartório, com uma declaração emocionada do pai, viralizou na internet. Nos comentários, Juno escreveu: “Painho, chega eu tô mole. A gente sabe que essa não é a realidade para muitos de nós”, constatou, “se um dia eu for pai, terei uma bagagem de ensinamentos que aprendi contigo”. 

Para reconhecer o Juno como um menino trans tive de passar por uma desconstrução. Eu me questionava: ‘Quem é Juno?’. Repassei nossa trajetória e vi que, na verdade, ele sempre esteve ali. Não era uma pessoa nova. Minha tristeza começou a se dissipar quando entendi que Juno estava preso dentro da moldura que eu mesmo tinha criado para ele, a moldura da religião, da sociedade. Ao perceber isso, entendi que sempre o amei.”
— Aizamarch Almeida, pai do Juno

A retificação dos documentos, ou afirmação legal, é a segunda etapa de transição de uma pessoa trans. A primeira é a afirmação social, quando a pessoa passa a se apresentar publicamente com o gênero com o qual se identifica, por meio de roupas e cabelo, por exemplo. Estas duas etapas são reversíveis, e podem ser feitas em qualquer momento da vida. 

A terceira etapa, que é a afirmação médica, no entanto, a qual conta com terapia hormonal e a cirurgia de redesignação sexual (antigamente chamada de “mudança de sexo”), só pode ser feita depois dos 18 anos (enquanto a terapia hormonal é liberada a partir dos 16), segundo as normas do Conselho Federal de Medicina. Essa é mais difícil de reverter. É também uma das causas de preocupação dos pais, que temem um possível arrependimento dos filhos. 

“A destransição [processo de reversão da cirurgia de redesignação sexual] é pouco frequente se a criança foi acompanhada em centro especializado, de forma cuidadosa e respeitosa”, explica o psiquiatra Alexandre Saadeh, do Amtigos. “Precisamos ouvir e entender a criança em sua individualidade. Isso não significa fazer o que ela quer. Não estamos falando de comer chocolate antes do jantar (uma vontade); estamos falando de levar em conta quem é essa criança, como se vê, percebe e se mostra socialmente. O risco de destransição existe, mas pode ser minimizado com o diagnóstico de incongruência de gênero bem-feito e um bom acompanhamento ao longo do tempo, feito por uma equipe multidisciplinar.”

3 passos da transição de gênero

O processo de transição de gênero é complexo, e engloba tanto o reconhecimento e expressão da própria pessoa sobre seu gênero, quanto outros procedimentos legais e até médicos:

Transição social
É a alteração da forma como a criança se apresenta socialmente, por meio da mudança de roupas, acessórios e cabelo, por exemplo.

Retificações legais
É a alteração dos documentos, a fim de evitar constrangimentos em instituições como a escola e em viagens. Existem dois tipos: a retificação (alteração do nome nos documentos oficiais) e a inclusão do nome social nos documentos (que mantém o nome de nascimento e inclui o novo nome). Em menores de 18 anos, o primeiro deve ser feito por via judicial. O segundo, pode ser feito via administrativa nos órgãos de emissão de documentos. Em alguns estados, há limitações: PR apenas maiores de 16 anos; RJ apenas maiores de 12 anos; SC apenas maiores de 18 anos.

Protocolos de mudanças corporais
Crianças trans não tomam hormônios, nem fazem cirurgias. Na pré-adolescência, é possível fazer o bloqueio hormonal, com orientação médica. A hormonização (terapia que modifica o corpo através do uso de hormônios) só pode ser feita a partir dos 16 anos. As cirurgias de redesignação sexual só são permitidas depois dos 18 – lembrando que nem toda pessoa trans deseja fazer os protocolos de bloqueio puberal/ hormonização/ cirurgia.

O "Cistema"

Saadeh lembra de um estudo clássico o qual afirma que de 6% a 25% das crianças diagnosticadas na infância permanecem com o diagnóstico até a adolescência. “Esse trabalho está por cair em descrédito por motivos que já são discutidos há muito tempo: o intervalo de 6% a 25% é muito grande, o que gera suspeitas em relação à sua precisão”, explica. “Está para sair um artigo de pesquisa na revista Pediatrics, o qual indica que mais de 90% das crianças diagnosticadas na infância se mantêm no diagnóstico ao chegar na puberdade."

Ainda em relação à cirurgia de redesignação sexual, vale lembrar que se trata de um procedimento extremamente invasivo e doloroso. Por isso, nem todas as pessoas trans sentem vontade ou necessidade de realizá-lo. Muitas se sentem confortáveis com seus órgãos genitais biológicos. O fato de uma mulher possuir um pênis e de um homem possuir uma vagina não invalida suas reivindicações, uma vez que a identidade de gênero não tem relação com o órgão genital – o que também derruba a ideia de uma pessoa que nasceu no “corpo errado”. Afinal, o mundo não é binário. Além disso, esse fato também não guarda relação com o termo “travesti”, uma afirmação política exclusivamente latino-americana, que aponta para um gênero diferente, a exemplo da cantora Linn da Quebrada, que participou do BBB 22. 

Além disso, como lembra Saadeh, a transgeneridade não é uma doença. Trata-se de uma variação presente em nossa espécie. Uma informação que tranquilizou Thamirys Nunes, que só conseguiu ficar mais aliviada depois de receber a confirmação médica de que Agatha era uma criança trans. Segundo a mãe, o documento foi um atestado para ela mesma, não para a filha. “Era a prova de que eu não era uma mãe louca, neurótica e desocupada, como muitos haviam insinuado”, escreveu no livro Minha Criança Trans?

“Entendo que um adulto trans, talvez, não precise disso, porque ele pode ser quem quiser. Mas a criança trans precisa de um pai e uma mãe, e, quando fugimos do padrão, a sociedade ataca, diz que a mãe é maluca”, explica. “Já fui denunciada várias vezes no Conselho Tutelar, então o relatório acaba sendo um escudo de proteção”, diz Thamirys.

Os questionamentos que cercam o entendimento de uma identidade trans são comuns em uma sociedade moldada por e para pessoas cisgênero. Buscar se informar e trocar experiências parecem ser as maneiras mais indicadas para dissolver a névoa de obscurantismo que ainda envolve o assunto. Ainda assim, quem se sente confuso pode recorrer a táticas como aquela usada por Thamirys quando ainda não sabia se chamava sua criança de “filho” ou de “filha”. Na dúvida, por um tempo, ela escolheu chamá-la de “amor”. Porque amor não tem gênero.

3 perguntas para Alexandre Saadeh

Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS), do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, responde questões sobre o processo de descoberta da transgeneridade das crianças:

CRESCER: Como diferenciar a simples preferência por certos brinquedos de uma possível transgeneridade na infância?
Alexandre Saadeh: Na transexualidade, o fenômeno começa cedo na infância e se manifesta independente do momento em si. Ele está o tempo todo presente; diz respeito a quem é a criança, não guarda relação apenas com brincadeiras, mas sim revela quem a criança é; não apenas com o que brinca. Mães são perspicazes em perceber essa diferença e muitas vezes acusadas indevidamente de “incentivar e favorecer” um comportamento anômalo. Elas só respeitam o que lhes é legítimo na solicitação da criança e tentam a todo custo evitar que ela sofra.

CRESCER: Existe uma idade comum para que a criança dê sinais?
A.S.: O frequente é que se inicie por volta dos 2 a 4 anos (pode ser mais cedo ou mais tarde), quando o sistema neurológico está mais maduro e há a presença da consciência e, portanto, da identidade na criança. Nesse período, os pais podem perceber, por exemplo, meninos usando panos na cabeça para simular cabelos longos, e meninas recusando-se a usar vestidos. É fundamental ressaltar, no entanto, que comportamentos “cross-gender” são importantes, mas não fazem o diagnóstico. O importante é a persistência. Se um menino brinca de boneca uma vez, por exemplo, isso não significa nada, mas se ele insistentemente demonstra afeição por características tidas como femininas, a exemplo da Agatha, a percepção é outra.

CRESCER: O que os pais devem fazer, caso notem esses comportamentos?
A.S.: Reconhecer que isso existe é o primeiro passo. Perceber se o comportamento e a maneira de se revelar é compatível ou não com o padrão do sexo em que nasceu. Se é algo que é estável e está presente o tempo todo da vida da criança, vale a pena buscar um especialista.

Muita calma nessa hora…

Não tenha medo do assunto, busque informações. Há uma série de materiais disponíveis sobre o tema, a exemplo do livro e Instagram Minha Criança Trans? (@minhacriancatrans), de Thamirys Nunes, e os perfis de educadores como Jonas Maria (@jonasmariaa) e Helena Vieira (@helena.vieiras).

Considere a ajuda de profissionais especializados em gênero e sexualidade, a exemplo do AMTIGOS da USP. Nem todo profissional domina o assunto, que é cercado por tabus e moralismo. Uma orientação errada pode trazer sofrimento e atraso.

Busque outras pessoas que estão passando pelo mesmo. O coletivo Minha Criança Trans, a Aliança Nacional LGBTI e a Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (ABRAFH) podem ser um bom ponto inicial de conversa.

Lembre-se de que não existem regras. Cada criança tem um processo de desenvolvimento diferente, evite comparações. Atente-se ao processo dela.

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