"Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil". Esse poderia ser o título de uma das mais de 300 palestras que eu já fiz dentro das mais diversas empresas nos últimos cinco anos, falando sobre parentalidade e carreira em nome da Filhos no Currículo. Mas para a minha surpresa — e que feliz surpresa — esse foi o tema da redação do Enem de 2023. Ontem recebi muitas mensagens me contando essa boa notícia.
No primeiro momento, recebi essa informação com um certo ar de espanto e curiosidade. Por que será que isso mereceu essa repercussão? Por que será que devemos comemorar? Não seria “óbvio” que esse é um tema relevante, importante, urgente e de conhecimento de todos?
Mas em questão de segundos me senti extremamente emocionada. Emocionada porque apesar de há muitos anos estarmos nessa luta para que a Economia do Cuidado seja espalhada e vista por todos como algo muito relevante, a escolha como tema da redação de uma prova nacional dessa dimensão tem um impacto social muito importante. Ela dá ainda mais visibilidade para um assunto invisível. É mais um passo no sentido de afirmar que esse é um assunto que não dá mais para deixar de ver.
No auge dos meus 40 anos, com dois filhos, esperando o terceiro, eu receberia essa prova com um sorriso no rosto, certa de que teria muitos argumentos para trazer para essa redação por viver na pele o que isso significa, assim como conhecer tantas outras mulheres que enfrentam esse desafio. Agora, a menina de 17 ou 18 anos que eu fui, ou os meninos da mesma idade na minha época, será que teriam essa dimensão? É essa parte que me encanta nisso tudo.
Afinal, das mulheres adultas que já são profissionais, não tem uma que não tenha experimentado os desafios de ser mulher no mercado de trabalho e a sobrecarga vindo dos cuidados que acumulamos. Que mulher nunca escutou, seja numa entrevista de emprego ou diante da sua equipe e lideranças: "Como você dá conta de tudo?”; “Como faz para conciliar sua família e trabalho?”; “Você pretende engravidar?”; “Tem filhos? Quem vai cuidar dos seus filhos enquanto você trabalha?", e por aí vai…
Nós, mulheres, gastamos o dobro de horas nos cuidados domésticos, se comparado aos homens, segundo dados do IBGE. Mulheres são, também, as principais cuidadoras de outras pessoas da família, como filhos e parentes idosos, por exemplo. Segundo pesquisa deste ano da FGV, há no Brasil mais de 11 milhões de mulheres mães que chefiam suas casas sozinhas. Nós fazemos a roda girar.
Cuidar é o pilar central de manutenção e sobrevivência de toda sociedade. É o trabalho mais importante de todos. Diferente de outras espécies, o ser humano é o único animal que precisa de cuidado em todas as fases da vida.
As tarefas domésticas, que são esse conjunto de atividades como garantir a alimentação da família, higienizar a casa e uma lista de afazeres infinita e quase sempre invisível, são as que mais recaem nos ombros da mulher. Observe o que acontece na sua casa… O que ela precisa para funcionar? Se hoje somos adultos economicamente produtivos, é porque tivemos algum cuidador que se dedicou exaustivamente a esse trabalho. A diferença é que, até hoje, ele é um trabalho que você sente, mas não reconhece que faz. Não valoriza, não tem prêmio, remuneração, destaque ou promoção. Ele acontece no silêncio e de forma solitária, exercido majoritariamente por mulheres. É essa a Economia do Cuidado que subsidia a economia tradicional, é ela que faz a roda girar. Sem cuidado nada existe. Nem eu, nem você, nem ninguém.
Veja bem, o que quero dizer aqui, é que este não é um assunto exclusivo de mulheres, não é algo à margem da sociedade. O levantamento “Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade”, da ONG britânica Oxfam, apontou que mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam em torno de 12,5 bilhões de horas por dia ao trabalho de cuidado não remunerado. Segundo o mesmo relatório, o valor do trabalho de cuidado não remunerado equivale a 10,8 trilhões de dólares por ano, ou 13% do PIB da economia global. Estamos dizendo que é esse valor que as mulheres investem na sociedade, sem receber nada em contrapartida. A soma é mais de três vezes maior que o estimado para toda indústria de tecnologia do mundo, por exemplo.
Não há políticas públicas ou leis sobre o assunto e as discussões acabam ficando em fóruns limitados a quem está preocupado em mudar esse cenário, por uma questão de necessidade e sobrevivência. Existem estudos que apontam que levaremos mais de 300 anos para equiparar homens e mulheres na sociedade, ou seja, resolver o problema da desigualdade nos tratamentos, oportunidades, cargos profissionais e tarefas domésticas não é uma caminhada fácil. São muitos os obstáculos, a sensação é de que pouca coisa vem acontecendo e que as mudanças não acontecem na velocidade que gostaríamos.
A escolha desse tema para a redação do Enem eleva a discussão a outras camadas. Jovens de todo Brasil pararam no último domingo para pensar sobre esse tema. Foram convidados a apresentar pontos de vista com coesão e coerência, trazendo argumentos, causas e propostas de soluções para esse problema. Inclusive essa não era nem sequer uma aposta dos especialistas para qual seria o tema deste ano, mas a partir de hoje a Economia do Cuidado passa a cair na boca do Brasil como um dos temas a serem observados e estudados mais de perto.
Falar sobre esse assunto, lutar por essas mudanças, pode ser uma caminhada um tanto quanto árdua. Mas esse primeiro passo me dá uma ponta de esperança de que, a partir de hoje, nossas crianças e adolescentes nas escolas vão ter aulas sobre isso, os cursinhos, as faculdades, os professores, jornais, matérias... Ganhamos muitos novos aliados nesta caminhada. E precisamos sempre de mais e mais pessoas discutindo e pensando em soluções para essa reparação histórica e social com todas as mulheres.
Hoje é dia de celebrar mais um passo nesta longa caminhada. Cada pequena conquista é uma grande conquista!
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