A prática do cuidado na rotina do grantmaking
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A prática do cuidado na rotina do grantmaking

Por Leticia Born *

O campo filantrópico tem se preocupado cada vez mais com impacto sustentável, em promover iniciativas que sejam de alguma forma resistentes às intempéries. Por mais que essa seja a intenção, sabemos que a imprevisibilidade é inerente à busca de transformações reais nas vidas das pessoas mais afetadas pela injustiça social, de gênero e de raça. 

Por mais que tenhamos avançado como setor ainda enfrentamos uma série de contradições e desafios, para que justamente o planejar-replanejar-tentar-tentar de novo-testar-aprender-ouvir-perseverar seja um ciclo virtuoso, permeado de paciência, solidariedade e não de sofrimento na relação entre doador-donatário.

Na Co-Impact, colaborativo filantrópico lançado em 2017 com atuação na América Latina, África e Ásia, nos propomos a contribuir para essa discussão e aprender com o setor. Sabemos que com frequência, padrões de exclusão e desigualdade são perpetuados pelas “regras do jogo” da filantropia que acabam favorecendo organizações que já têm boas relações, que sabem navegar os códigos e espaços prioritariamente de elite.

Até o momento, a Co-Impact conta com 60 parceiros financiadores de 17 países e temos apoiado 85 organizações a partir do Fundo de Gênero.

Acreditamos que a filantropia deve desempenhar um papel ativo no desmantelamento da discriminação por meio do cuidado com suas parcerias, com a consciência de que as relações entre doador-donatário são inerentemente desiguais e baseadas em constructos de poder. Nesse sentido, a lente feminista e interseccional pode ser primorosa para que possamos aperfeiçoar nossas relações com parceiros. 

Alguns aprendizados do pouco caminho percorrido até agora que gostaríamos de compartilhar, com a enorme ressalva de que essa trajetória é longa e que como qualquer relação, exige esforço, comprometimento e escuta. Também temos nossas limitações e continuamente nos questionamos para que possamos praticar o que acreditamos. 

  1. Encorajar a coerência estratégica: uma boa estratégia está no âmago de iniciativas que têm a intenção de mudar os sistemas. A partir do apoio da Co-Impact, a ideia é que nossas parceiras tenham o tempo, recurso e o espaço necessários para revisar suas escolhas estratégicas – processo facilitado por meio de uma abordagem que oferecemos. Em essência, organizações fortes têm maiores chances de consolidar sua atuação, suas equipes e de construírem sistemas que alavanquem as vidas de mulheres. Vale pensarmos: como doadores, estamos facilitando sua vida, para que a equipe da organização possa concentrar-se no trabalho de fato, que é sua estratégia de mudança? Estou escutando a equipe dessa organização ou já trago os meus vieses de primeira? 
  2. Valorizar o tempo e o esforço das parceiras: procuramos tornar os nossos requisitos simples e previsíveis. Ainda temos que evoluir nesse ponto, nosso objetivo é tornar nossas expectativas e processos transparentes, por meio de documentos públicos e conversas francas. Também entendemos que não há como pensar no futuro, quando há diferentes demandas que competem pela atenção das organizações. Encorajamos nossas parceiras a cancelar o ruído; a dizer não para uma reunião que não contribui para sua estratégia; ou quem sabe dizer não para uma doação com peso administrativo enorme e pouca relevância financeira. Outros exemplos: exigimos relatórios de prestação de contas que sejam personalizados ou aceitamos relatórios que tenham sido feitos para outros financiadores, reduzindo assim o tempo e esforço da equipe da organização? Estou realmente dando o espaço que essa organização precisa? Ou faço convites que colocam essa organização em um lugar difícil de recusar (como participar de diversas reuniões do conselho da minha organização ou outros eventos internos que retiram sua atenção e foco?)
  3. Comportar-se como verdadeiros parceiros: dado que uma parceria envolve respeito e confiança mútuos, nosso objetivo é ouvir mais do que aconselhar e fornecer feedback sobre o que temos mais experiência e sermos humildes sobre o que não sabemos, buscando alavancar as agendas próprias da organização, e pensando continuamente em como diminuir as relações de poder que podem inibir ou limitar espontaneidade e criatividade. Estou consciente do lugar que ocupo e em maneiras de redistribuir esse poder? Estou adequando os eventos ou seminários que minha organização promove, para que a organização possa estar presente de forma satisfatória e tranquila (ou seja, penso em questões imigratórias, tradução, horários, tempo de deslocamento, consequências do trabalho de cuidado, tempo de descanso, entre outros)?
  4. Liderança de mulheres: talvez o mais desafiador seja incentivar a liderança de mulheres nos espaços de poder nas organizações parceiras, e ao mesmo tempo colocar isso em prática em nossa própria organização. Qual o peso e espaço que organizações lideradas por mulheres, principalmente antirracistas, ocupam na minha estratégia de grantmaking? Estou facilitando ou inibindo a liderança de outras mulheres para que tenham voz e que possam perseverar em seus espaços?

Do lado da Co-Impact, estamos continuamente buscando parcerias para o nosso modelo de filantropia colaborativa. Se quiser saber mais, me escreva: leticia@co-impact.org.

Leticia Born traz 14 anos de experiência no setor de desenvolvimento social. É gerente de programas na Co-Impact para América Latina. Antes de ingressar na Co-Impact, foi Gerente de Programas na Porticus, liderando a estratégia Educação Infantil e Primeira Infância no Peru e no Brasil, com recorte de gênero e raça. Ela também apoiou o desenvolvimento de um portfólio nascente em Justiça de Gênero e Governança Democrática. É jornalista e mestre em Estudos de Desenvolvimento pela Universidade de Amesterdã, o que a levou à Jordânia para pesquisar sobre justiça de gênero e sociedade civil.

Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do GIFE e de seus associados.

Andreia Schroeder

Corporate & Institutional Partnerships Manager at Plan International Brasil

3 m

Obrigada por compartilhar Leticia. Estas reflexões são muito importantes para o aprimoramento do fazer, gerar mais impacto e transformação social.

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