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Dez anos depois da morte de Bin Laden, 'guerra ao terror' passa a segundo plano na política externa americana

Governo aponta para ação de supremacistas brancos dentro do território americano e desafios relacionados a Rússia e China no topo das prioridades; especialistas alertam que jihadismo segue ativo, mas com novas estratégias
Terreno onde ficava a casa de Osama bin Laden em Abbottabad, no Paquistão, em fevereiro de 2021. Construção foi demolida em fevereiro de 2012, para que não se tornasse uma espécie de santuário Foto: FAROOQ NAEEM / AFP
Terreno onde ficava a casa de Osama bin Laden em Abbottabad, no Paquistão, em fevereiro de 2021. Construção foi demolida em fevereiro de 2012, para que não se tornasse uma espécie de santuário Foto: FAROOQ NAEEM / AFP

O relógio marcava uma da manhã do dia 2 de maio de 2011 na noite silenciosa de Abbottabad, nos arredores da capital paquistanesa, Islamabad. Em instantes, a casa que não levantava muitas suspeitas entre os vizinhos se tornaria cenário de uma das mais importantes operações americanas das últimas décadas: a morte do líder da al-Qaeda, Osama bin Laden.

Dez anos depois, o terrorismo jihadista não desapareceu, mas deixou de ser considerado um risco primordial à segurança dos EUA, dando lugar a outros tipos de ameaça, como os grupos de extrema direita que protagonizaram a invasão do Capitólio, no dia 6 de janeiro.

Apoiadores de Osama bin Laden durante protesto em Quetta, no Paquistão, em ato que marcou um ano da morte do líder da al-Qaeda, em maio de 2012 Foto: BANARAS KHAN / AFP
Apoiadores de Osama bin Laden durante protesto em Quetta, no Paquistão, em ato que marcou um ano da morte do líder da al-Qaeda, em maio de 2012 Foto: BANARAS KHAN / AFP

Um sinal dessa guinada, que vinha se desenhando nos últimos anos, veio em março, quando um documento com prioridades de segurança nacional da Casa Branca não trouxe o extremismo islâmico entre os temas de maior preocupação, como ocorria desde os tempos de George W. Bush (2001-2009).

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No mês seguinte, um passo prático: com o anúncio da retirada das tropas do Afeganistão até setembro , seguindo um acordo fechado no governo de Donald Trump, Joe Biden declarou que era hora de colocar fim à “mais longa guerra” dos EUA. O conflito era o símbolo máximo da “guerra ao terror”, que marcou o mundo depois dos ataques de 11 de setembro de 2001.

— Nós seremos muito mais formidáveis diante nossos adversários e competidores a longo prazo se lutarmos as batalhas dos próximos 20 anos , não dos últimos 20 anos — afirmou Biden, em discurso no dia 14 de abril.

Mesmo antes de chegar à Presidência, Biden colocava a questão climática e relações com outros Estados, como Rússia e China, como reais prioridades dos EUA, apontando que o jihadismo já não era uma “ameaça existencial” ao país. Recentemente, deu destaque também ao extremismo de direita, negligenciado por Trump e apontado pelo Departamento de Segurança Nacional, em 2020, como “a mais persistente e letal ameaça” à nação.

A invasão ao Capitólio, descrita por Biden como “o pior ataque à democracia dos EUA desde a Guerra Civil (1861-1865)” deu força a projetos para reprimir organizações como os Proud Boys e conspiracionistas , que tiveram participação determinante na ação.

Para o presidente, é necessário adotar uma legislação “que respeite as liberdades civis e de expressão, ao mesmo tempo em que assume o mesmo compromisso de acabar com o terrorismo doméstico adotado para impedir o terrorismo internacional”.

Apelo global

Pela agenda oficial do governo americano, não há qualquer menção a eventos ou discursos para marcar o aniversário do ataque em Abbottabad. Foi o último capítulo de décadas de buscas pelo líder de uma das mais mortais organizações terroristas, a al-Qaeda, responsável pelos ataques contra embaixadas americanas em Nairóbi e Dar el Salaam, em 1998, e contra os sistemas de transporte de Madri, em 2004, e Londres, em 2006.

Na ação mais dramática, mirou alguns dos maiores símbolos dos EUA: em Nova York, as torres gêmeas do World Trade Center; em Washington, o Pentágono. Um quarto avião, que também seguia para a capital americana, caiu em uma área rural da Pensilvânia. Naquele ensolarado 11 de setembro de 2001, 2.977 pessoas perderam a vida.

A Guerra no Afeganistão (2001- ), iniciada em outubro daquele ano, se tornou o símbolo da luta global contra o terrorismo jihadista, liderada pelos EUA. O Talibã, que estava no controle do governo afegão, se recusou a entregar Bin Laden, e foi rapidamente deposto.

A al-Qaeda passaria a operar nas montanhas da fronteira entre Afeganistão e Paquistão, e a imagem de Bin Laden passaria a ser recorrente através de mensagens defendendo ataques contra o Ocidente.

Osama bin Laden (E) ao lado de Ayman al-Zawahiri (D), que assumiria a liderança da al-Qaeda depois da morte de seu fundador, Osama Foto: Hamid Mir / REUTERS/Jornal Ausaf para o Daily Dawn
Osama bin Laden (E) ao lado de Ayman al-Zawahiri (D), que assumiria a liderança da al-Qaeda depois da morte de seu fundador, Osama Foto: Hamid Mir / REUTERS/Jornal Ausaf para o Daily Dawn

No dia 2 de maio de 2011, Bin Laden finalmente foi encontrado, e morreu ao resistir à abordagem de militares americanos em sua casa no Paquistão. O corpo foi jogado ao mar, e, em junho, o médico egípcio Ayman al-Zawahiri seria indicado o novo líder da al-Qaeda, uma organização ainda forte, mas sem o mesmo apelo global.

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Nos anos seguintes, outros grupos também começaram a buscar protagonismo, como o Estado Islâmico, surgido das fileiras da própria al-Qaeda, e que também realizou violentos ataques pelo mundo, com uma brutalidade que chocou até mesmo alguns jihadistas.

Mudança de estratégia

Apesar das outras prioridades, o governo Biden reconhece que o extremismo islâmico internacional ainda é um risco. Hoje, o modo de operar desses grupos mudou: ao invés de grandes ataques no Ocidente, foram abertas novas frentes, como na África, onde os jihadistas se aliam a grupos extremistas locais e até a organizações criminosas.

É o caso, por exemplo, de Moçambique, onde uma insurgência no Norte do país , associada ao Estado Islâmico, deixou centenas de mortos nas últimas semanas. Essas alianças se repetem em cenários como a África Subsaariana, Líbia e no Iêmen, onde o grupo desempenha papel central nos combates.

No Afeganistão, a milícia vem ganhando força com ataques cruéis contra a população civil, justamente no momento em que o Talibã, velho aliado da al-Qaeda, participa de negociações de paz com o governo e que, no ano passado, fechou um acordo com Trump abrindo caminho para a retirada militar americana.

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Ainda que diante do desaparecimento de Bin Laden e da perda da capacidade de realizar grandes atentados, é um erro declarar a al-Qaeda como derrotada depois de décadas de guerra e de praticamente todos seus líderes terem sido mortos. De acordo com relatório do centro de estudos Soufan publicado em abril, há cerca de 40 mil militantes leais ao grupo espalhados pelo mundo, especialmente na região do Sahel e na Somália, além de Paquistão e Afeganistão.

"A al-Qaeda reorientou sua estratégia para focar nas alianças com tribos e clãs, se aproveitando de desavenças locais e regionais em Estados fracassados e territórios sem lei", aponta documento, sublinhando ainda o plano de “reconstruir, de forma paciente e quieta” as redes internacionais de outros tempos.

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Por isso, mesmo em segundo plano, o governo americano segue atento ao jihadismo global. Agora, sem uma guerra ao terror no sentido clássico, mas com ações focadas na inteligência e operações pontuais de contraterrorismo.

— Nós vamos manter uma capacidade para suprimir ameaças futuras à nação. Não se enganem: em 20 anos, o terrorismo passou por uma metástase. A ameaça foi além do Afeganistão — declarou Biden, no discurso ao Congresso na quarta-feira. — Temos que nos manter vigilantes contra as ameaças aos EUA, não importa de onde venham.