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Estado Islâmico amplia operação na África e número de ataques, que ameaçam civis, dispara

Estudo mostra quase 5.000 incidentes de violência no continente, que deixaram 13 mil mortos no ano passado; milícias ligadas à al-Qaeda mantêm influência na Somália e no Sahel
Pessoas caminham ao lado de local de ataque com um morteiro nos arredores da base da Missão da União Africana na Somália, em Mogadíscio Foto: FEISAL OMAR / REUTERS
Pessoas caminham ao lado de local de ataque com um morteiro nos arredores da base da Missão da União Africana na Somália, em Mogadíscio Foto: FEISAL OMAR / REUTERS

A onda de ataques e a recente invasão de Palma , cidade em uma área de produção de gás natural de Moçambique, por um grupo afiliado ao Estado Islâmico, na semana passada, evidenciaram ao mundo um dos principais desafios de segurança hoje na África: a atuação de milícias jihadistas, que ampliaram suas áreas de operação e ameaçam a estabilidade de governos nacionais e a vida de milhões de pessoas.

Segundo relatório do Centro de Estudos Estratégicos da África, dedicado a analisar políticas e contextos relacionados ao continente, 2020 foi um dos anos com o maior crescimento de ações de milícias extremistas, 43% em relação a 2019. Os atos de violência deixaram mais de 13 mil mortos, incluindo em ataques, combates e operações de contraterrorismo levadas adiante por autoridades locais e potências estrangeiras.

O Índice de Terrorismo Global 2020, publicado pelo Instituto de Economia e Paz, também destaca o impacto econômico dos extremistas, estimado em US$ 13 bilhões em 2019 e em US$ 171,7 bilhões no período entre 2007 e 2019. Uma estimativa conservadora, alerta o estudo.

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O documento aponta que essa tendência  de alta vem desde 2016, coincidindo com a decadência do domínio do Estado Islâmico na Síria e no Iraque. A desintegração da Líbia pós-Kadafi , quando houve um aumento da presença de jihadistas no país, onde chegaram a tomar partes do território, serviu de base para um maior número de milicianos leais ao grupo liderado então por Abu Bakr al-Baghdadi no continente.

Com o enfraquecimento da frente líbia, ocorreu um êxodo de milhares de jihadistas para locais onde já havia atividade terrorista, como na África Subsaariana, acompanhado pelo surgimento de novas frentes, como em Moçambique , onde fatores econômicos e sociais contribuíram para a expansão do extremismo. Ao mesmo tempo, é constatada uma ausência de coordenação mais ampla, com grupos agindo preferencialmente de acordo com cálculos locais.

“O aumento da violência demonstra o crescimento da capacidade dos grupos em cada um desses teatros nos últimos anos. Entre outros fatores, isso é visto em sua vontade de enfrentar as forças de segurança, assim como a sofisticação desses grupos em acessar redes de financiamento, que se assemelham a atividades do crime organizado”, diz o relatório do Centro de Estudos Estratégicos da África.

Cenários complexos

Hoje, há cinco cenários principais de ação de grupos extremistas no continente africano, que contam ainda com milícias aliadas à rede terrorista al-Qaeda — em alguns deles, como na região do Sahel, há relatos de confrontos entre os próprios jihadistas, com dezenas de mortos. Ali, as áreas de operação do chamado Estado Islâmico do Grande Saara se sobrepoem a territórios controlados pelo “consórcio” de milícias ligadas à al-Qaeda, conhecido por Nusrat al-Islam.

Principais cenários de atuação de jihadistas na África Foto: Editoria de Arte
Principais cenários de atuação de jihadistas na África Foto: Editoria de Arte

Em 2020, foram 1.170 incidentes de violência na região, 44% acima do visto em 2019, que resultaram em 4.122 mortes, 57% a mais que no ano anterior. Segundo os números do Centro de Estudos Estratégicos da África, quase 70% dos incidentes foram combates entre as milícias e forças do governo ou entre os próprios grupos armados.

Na mesma área, a Bacia do Lago Chade, que compreende Nigéria, Chade, Camarões e Níger, concentra o maior número de vítimas no continente — 4.801 em 2020, na maior parte mortas em solos nigeriano e camaronês. Além do aumento no número de ataques contra a população civil, alta de 32% em relação ao ano anterior, vale destacar os combates cada vez mais frequentes entre as próprias milícias. Neste caso, o Boko Haram, de Abubakar Shekau , e uma dissidência que ganhou força ao longo dos anos, o Estado Islâmico na África Ocidental. De acordo com o relatório, eles são os principais responsáveis pelo aumento de 60% na atividade terrorista na região.

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Outro cenário considerado “tradicional” de milícias é a Somália, uma área que se destaca pela prevalência do al-Shabab, um grupo afiliado à rede terrorista al-Qaeda, que antes do surgimento do Estado Islâmico era uma “potência” no continente africano — incluindo no Sahel, no Norte da África e, como ainda o é, na Somália e países vizinhos, como a Tanzânia.

Em 2020, aponta o Centro de Estudos Estratégicos da África, foram 2.369 vítimas, menos do que o registrado em 2019, embora o número de incidentes de violência tenha aumentado 33%, resultado dos confrontos entre o Shabab e as forças de segurança. Ainda há a presença de uma facção do Estado Islâmico no país, que muito embora seja minoritária, realiza ataques frequentes contra autoridades, população civil e contra o próprio al-Shabab.

Contrastes

Por outro lado, o Norte da África, região que por muitos anos foi sinônimo de atividades de grupos extremistas, se encontra em uma situação menos crítica: ao todo, foram 371 incidentes terroristas, que deixaram 574 mortos em 2020, uma queda de quase 40% em relação a 2019. Embora haja presença do Estado Islâmico na Argélia, na Líbia e na Península do Sinai — talvez o único foco ativo de combates —, o Centro de Estudos Estratégicos da África aponta que os extremistas não conseguem expandir suas operações na área.

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Analistas, contudo, são quase unânimes em apontar a atuação do Estado Islâmico em Moçambique como a que mais apresenta riscos à segurança regional. Além de ideias extremistas propagadas por lideranças locais, as milícias contam com fatores econômicos para atrair novos apoios, em especial entre a população mais jovem e que se encontra em situação de vulnerabilidade social.

— Todo mundo tem se questionado nos últimos anos sobre quem são essas pessoas. Há uma compreensão de que os problemas locais são uma causa central, que pode ter sido capturada pelas dinâmicas terroristas internacionais — afirmou Adriano Nuvunga, diretor-executivo do Centro de Democracia e Desenvolvimento de Moçambique, à agência alemã Deutsche Welle.

Desde os primeiros ataques, em 2017, cerca de 3.000 pessoas morreram e 400 mil deixaram suas casas para fugir da violência, sem contar os prejuízos bilionários à indústria do gás natural , localizada em Cabo Delgado, área de forte presença das milícias. Ao contrário dos outros cenários, onde ataques contra forças de segurança e combates internos são prevalentes, em Moçambique os principais alvos são os civis.