Entrevista boa é aquela que revela tanto pelo que o entrevistado diz como pelo que cala. Lula deixou bem claro, na conversa que teve nesta manhã com os âncoras da Rádio CBN Milton Jung e Cassia Godoy, que tinha recados a dar. Mas também deixou pontas soltas que indicam uma enorme preocupação com o cenário que terá pela frente em 2026.
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O primeiro recado do presidente foi para o mercado financeiro, que vem submetendo Fernando Haddad a uma prova de resistência, com quedas na bolsa e altas recordes no dólar, baseada na dúvida legítima sobre a capacidade do ministro da Fazenda de cumprir o arcabouço fiscal que ele mesmo propôs.
O presidente se disse espantado com os quase R$ 600 bilhões em cortes de impostos que pesam nas contas públicas e foi enfático ao definir que é por meio desses subsídios que "os ricos se apoderam de uma parte do orçamento do país".
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Disse que é preciso acabar com eles, mas não deu nenhuma pista sobre como pretende fazer isso com um Congresso que tem derrubado seus vetos e medidas provisórias, ou ainda onde serão feitos os cortes e compensações necessários para equilibrar o Orçamento.
O governo Lula em imagens
Ao contrário: num exercício de retórica que já ficou manjado neste seu terceiro mandato, Lula logo escapou pela tangente e passou a empurrar toda a responsabilidade pelos nós da economia ao presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto – o que é bem mais fácil do que apontar o dedo para alguém de seu próprio governo.
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Caprichando no tom indignado e irritadiço, Lula acusou o presidente do BC de ter "rabo preso a compromissos políticos". Para o presidente da República, quem está ditando a agenda do BC é o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), um de seus potenciais desafiantes em 2026, que na semana passada homenageou Campos Neto com jantar e medalhas.
A empolgação com que o presidente do BC aceitou os mimos e se engajou no convescote paulista realmente dá força ao argumento de Lula. Mas não resolve a equação econômica que atormenta seu governo.
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PL do aborto
Em outro momento da entrevista, ao falar sobre a polêmica em torno do projeto que equipara as penas para o aborto às de homicídio, o presidente também demonstrou que compreendeu as críticas de sua própria base social, na esquerda e no Congresso, à reação tardia e titubeante dos primeiros momentos.
Numa guinada no tom do discurso, Lula foi duro. Disse que crianças estão sendo estupradas, criticando o projeto por obrigar uma menina a ter o filho de um estuprador, o "filho de um monstro". Respondeu, também, ao autor do projeto, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que o provocou dizendo que estava testando a disposição de Lula de se aproximar dos evangélicos.
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"Quem precisa de teste é ele. Eu quero saber se uma filha dele fosse estuprada, como é que ele ia se comportar".
Aí, também, o recado de Lula finalmente responde a uma demanda de seus aliados. Mas convenhamos que é bem mais fácil bater no projeto agora que ele já está a caminho da gaveta, depois da forte reação da opinião pública.
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O principal motivo dessas falas presidenciais estava implícito desde o começo, mas só ficou bem evidente no final: a preocupação com a força do bolsonarismo e a ameaça que ele representará em 2026.
Foi Lula quem notou, ao falar sobre a relação com o Congresso e a força da pauta de costumes, que a extrema direita brasileira, antes muito focada em redes sociais e fake news, está bem mais organizada no Parlamento.
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E mesmo se policiando para não mencionar o nome de Jair Bolsonaro – "estão pedindo para eu não citar o governo anterior" –, deixou bem claro que, se for para brigar com "trogloditas" e "fascistas", ele vai sim disputar a reeleição.
Não que alguém tivesse dúvida a esse respeito. Já faz tempo que o presidente abandonou a promessa, feita em 2022, de não tentar um quarto mandato. A questão é em que condições ele chegará a 2026. Na entrevista, Lula disse que seu governo está fazendo milagre e que os resultados ainda vão aparecer. O subtexto de sua fala, porém, demonstra que ele sabe o tamanho do risco que está correndo.