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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Na Grécia, um filho fura os próprios olhos após descobrir que matara o pai e se deitara com a mãe. Na Pérsia, um pai chora sem parar quando percebe ter matado o filho em combate. Em “A mulher ruiva”, romance recém-lançado no Brasil, o escritor turco Orhan Pamuk compara estas duas tragédias — a de Édipo e a de Rostam (o pai) e Sohrab (o filho) — para debater um tema que perpassa toda a sua obra: a identidade turca, dividida entre o Ocidente e o Oriente.

No romance, quem reflete sobre Édipo, Rostam e Sohran é o narrador, Cem Çelik, filho de um farmacêutico marxista que abandona a família. Para sustentar a si mesmo e à mãe, Cem passa a ajudar um cavador de poços, conhecedor do Corão e de mitos orientais, e que logo se torna uma figura paterna. É nessa época que ele conhece a mulher ruiva do título. Já adulto e frustrado por não ter filhos, Cem passa a questionar sua relação com o pai ausente e rememorar os ensinamentos do pai postiço, o poceiro. É quando ele descobre a história de Rostam e Sohran e se pergunta: a Turquia teria conseguido se modernizar sem romper com suas raízes orientais?

Vencedor do Nobel de Literatura em 2006, Pamuk é um filho da Turquia secular, erguida no início do século XX sobre os escombros do Império Otomano. Já enfrentou dois processos políticos: por chamar atenção para os genocídios de armênios e curdos e por supostamente ridicularizar Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938), o fundador da República da Turquia, em seu último romance, “Noites da peste”, inédito no Brasil.

Em entrevista ao GLOBO, de um balneário a poucas horas de Istambul, Pamuk falou sobre sua relação tensa com a tradição, comentou sua fama de profeta e lamentou a deterioração da democracia turca sob Recep Tayyip Erdogan, presidente nacionalista e autoritário que se reelegeu em maio. O escritor, porém, não perde o bom humor:

— A Turquia está melhorando. Antes eu andava com três guarda-costas e agora tenho um só (risos).

Por que a história de Rostam e Sohrab chamou sua atenção?

Pela simetria com “Édipo rei”. Na Grécia, o filho mata o pai. É o triunfo do individualismo. Na Pérsia, o pai mata o filho. É a tradição contra o novo. Há muitas pinturas de Rostam chorando após matar o filho. Isso é típico da minha parte do mundo: primeiro se mata, depois se chora. Primeiro, mandam a oposição e os artistas para a cadeia, depois dizem que estão arrependidos.

Existe complexo de Sohrab?

Existe complexo de Rostam. Ele é o assassino da história. O complexo de Rostam é uma angústia que leva a destruir o novo, a criatividade das novas gerações. É a tentativa de deter a primavera. Eu já queria comparar essa história com “Édipo” e à medida que Erdogan ficava mais e mais autoritário, achei que havia chegado a hora de escrever.

A mulher ruiva diz: “Neste país, todos temos muitos pais. A pátria, Alá, o Exército, a Máfia”. Foi assim com você?

Tive um pai libertário e ausente, que lia o tempo todo. Meu livro “Meu nome é vermelho”, sobre um pai que desaparece e uma mãe que tenta controlar os filhos, é bem autobiográfico. Meu pai nunca gritou comigo ou me bateu. Nunca tive medo que ele me desaprovasse. Vários dos meus amigos não levaram a vida de que gostariam por medo, porque queriam ser bons meninos para ter a aprovação do pai. Tradição é isso, é esse tipo de repressão. Eu tenho uma filha e tento não ser muito repressivo. Quero ser um pai liberal, de esquerda. E aceito as consequências disso. Todos os filhos dos meus amigos de esquerda são de direita! Nunca vi filho de esquerdista que estivesse à esquerda do próprio pai (risos)!

O narrador reclama que, de tão ocidentalizados, os turcos esqueceram seus antigos poetas e mitos, ao contrário dos iranianos...

Sim, mas o Irã é uma teocracia islâmica.

Exatamente. Conciliar a tradição e modernidade era uma opção para a Turquia?

O único país que conseguiu fazer isso foi o Japão, tão invejado pelos intelectuais turcos. A combinação japonesa de capitalismo com ética tradicional resultou em uma vida cotidiana que é muito pouco igualitária ou libertária. Embora tenham conseguido preservar a arte e a arquitetura tradicionais.

Em seus romances, você lamenta que a modernidade capitalista tenha destruído a arquitetura da Istambul antiga.

E é um capitalismo de péssimo gosto, sem noção de estilo. O capitalismo é inevitável, mas não dava para ser bonito? Não sou um crítico dos arranha-céus, mas do mau gosto.

Ilustração em um muro de Teerã do mito de Rostam e Sohrab, um dos pontos de partida do livro de Orhan Pamuk — Foto: Reprodução/ Wikimedia
Ilustração em um muro de Teerã do mito de Rostam e Sohrab, um dos pontos de partida do livro de Orhan Pamuk — Foto: Reprodução/ Wikimedia

Você é um turco ocidentalizado. Como lida com a tradição?

Não dá para abraçar toda a tradição, que, em si, não é igualitária ou secular, mas militarista e pouco democrática. Havia haréns no Império Otomano. Devemos respeitar essa parte da nossa tradição? Escritores de uma geração anterior à minha desprezavam tudo o que era otomano. Já eu gosto das miniaturas, da arquitetura. Também dá para salvar a música, a comida, alguma pintura, a poesia, as alegorias do sufismo islâmico.

Há quem diga que o secularismo turco foi tão radical que alienou os religiosos e os jogou no colo de Erdogan.

Isso é parcialmente verdade. Os secularistas envolveram tanto o Exército na política, dando golpes para se livrar de tipos como Erdogan e desprezando o voto popular, que ganharam a antipatia dos eleitores e botaram o liberalismo como um todo a perder. Mas isso não quer dizer que os turcos estejam muito felizes com Erdogan. Veja a amizade dele com Putin, por exemplo.

Qual o estado da democracia turca sob Erdogan?

A Turquia não é mais uma democracia plena. É uma democracia eleitoral limitada. Uma democracia plena respeita os direitos das mulheres e das minorias e garante oportunidades iguais nas eleições. As últimas eleições só foram limpas na contagem dos votos. Erdogan abusou de seu poder, colocou fotos suas em todos os prédios do governo, prendeu opositores, pressionou o Judiciário. Não há liberdade de expressão. Erdogan força os jornais a inventarem mentiras sobre a oposição. E assim ele ganha eleições. É uma vergonha!

Acredita que seu papel como escritor e intelectual público mudou com a escalada autoritária na Turquia?

Erdogan controla tanto os jornais que ninguém mais quer lê-los. Ainda tenho espaço nos sites da oposição e na imprensa estrangeira. Há alguns anos, Erdogan me chamou de terrorista, mas voltou atrás. Já fui processado duas vezes. Se continuar falando, talvez venha mais um processo e mais comoção internacional, que não serve para mudar a opinião de quase ninguém. Sou um best-seller na Turquia, mas meus leitores não mudam de ideia só porque eu disse alguma coisa. Falei tantas vezes para não votarem em Erdogan e mesmo assim ele ganhou (risos)!

Você se sente seguro? Desde o primeiro processo, você anda com guarda-costas.

A Turquia está melhorando. Antes eu andava com três guarda-costas e agora tenho um só (risos).

Em 2021, você lançou o romance “Noites da peste”, ainda inédito no Brasil...

Quando lancei “Neve”, disseram que eu havia profetizado o 11 de Setembro (Osama bin Laden aparece no livro). Durante divulgação de “Noites da peste” na Europa, falaram que eu havia previsto a pandemia e perguntaram qual seria a minha próxima profecia. Brinquei que ia escrever um romance sobre um terremoto em Istambul. E em fevereiro, um terremotos atingiu a Turquia (e deixou mais de 50 mil mortos). Fiquei muito deprimido. Mas não foi profecia, foi estatística. Todos os cientistas sabiam que poderia haver um terremoto como aquele na Turquia.

Você começou a escrever “Noites da peste” antes da Covid-19. Isso te preparou para enfrentar a pandemia?

Quando começou a quarentena, meus amigos disseram: “Você é muito sortudo! Ganhou publicidade de graça para o seu livro!” Não foi bem assim. Minha tia foi uma das primeiras pessoas a morrer de Covid na Turquia. Eu não queria que pensassem que escrevi o livro rápido só para atrair interesse das pessoas. Mas depois editores do mundo todo começaram a me pedir para terminar o livro logo (risos). Antes, meus amigos me falavam: “Quem vai ler um livro sobre uma epidemia? Quem se importa com quarentena?” De certa forma, eu passei a vida toda em quarentena, escrevendo meus romances. Não conte para ninguém, mas tenho boas memórias do isolamento.

Capa de "A mulher ruiva", romance do Nobel de Literatura turco Orhan Pamuk — Foto: Reprodução
Capa de "A mulher ruiva", romance do Nobel de Literatura turco Orhan Pamuk — Foto: Reprodução

Serviço:

‘A mulher ruiva’

Autor: Orhan Pamuk. Tradutor: Luciano Vieira Machado. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 280. Preço: R$ 74,90.

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