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Por Redação Glamour


Jéssyka Maia de Souza, conhecida como Suuhgetsu, é intérprete de libras para gamers. Apaixonada pelo universo desde que se entende por gente, a advogada decidiu juntar a paixão pelos jogos e ajudar a comunidade surda ao narrar as partidas de vídeogames em libras.

Jéssyka Maia de Souza, conhecida como Suuhgetsu (Foto: Reprodução Instagram) — Foto: Glamour
Jéssyka Maia de Souza, conhecida como Suuhgetsu (Foto: Reprodução Instagram) — Foto: Glamour

Em entrevista à Glamour Brasil, a integrante da Academia de Piltover, programa de relacionamento da Riot com criadores de conteúdo, detalha como é o projeto, como surgiu a ideia e analisa a diversidade e o machismo no mundo dos games.

Glamour Brasil: Conta pra gente de onde surgiu sua paixão por games?

Suuhgetsu: Sou gamer desde que me lembro. Tenho contato com tecnologia e jogos desde muito cedo. Meu pai é analista de sistemas, já tivemos lan house. Lembro de brincar com placas mãe que não funcionavam mais, usando elas de cidade. Meu pai me ensinou logo cedo a montar e consertar computadores, tanto que com 12 anos eu já fazia manutenção. Eu mesmo montava meus computadores, escolhia as peças. Sou da época de CS 1.6, The Sims 1. Pac Man, The Dreamcast. Sempre fui muito de estudar, ficar em casa, pesquisando e jogando. Lembro de uma vez que eu estava jogando tanto que meu pai disse que ficaria de castigo, não poderia ficar em casa, teria que sair, me divertir na casa de amigos. Eu morava em um prédio, dentro da vila militar. Então eu desci, fiquei no pátio e meu celular achou um pico de internet no wifi. Subi escondida, peguei meu notebook e desci, quando liguei pegava dois risquinhos do wifi, consegui quatro riscos de baixo da arvore, avisei meus amigos. Fazíamos piquenique e acampamos de baixo da árvore. Meu pai achava que eu estava curtindo a aventura de dormir em barraca. Até que um dia ele pegou a gente, três notebooks, uma extensão gigante na tomada do prédio e wifi de alguém que não botou senha, Ragnarok a noite toda. Ai ele desistiu e mandou a gente subir para jogar em casa.

Quando você decidiu que queria trabalhar com games e quando conseguiu viver disso?

Decidi trabalhar entre 2018/2019. Quando comecei em 2017, achei que seria mais um hobby. Tive alguns problemas de saúde que não me deixaram evoluir mais. Sempre prezei pelo regimento da profissão, que a FEBRAPILS (Federação Brasileira das Associações dos profissionais tradutores e interpretes e Guia-interpretes de Língua de Sinais) fez. Nosso trabalho é tabelado. Por exemplo, o valor médio que devemos cobrar, quantos interpretes devem ser escalado. A profissão já é muito complicada nas áreas “mais comuns” como educação, saúde. Ter uma “nova área” área de atuação, como campeonatos e live de jogos, não seria fácil. Dentro do cenário, eu fui a primeira a trazer essa proposta e a profissão em sí. Então, já sabia que seria um caminho difícil a trilhar. Acessibilidade é um direito e um dever, tanto privado quanto público, mas infelizmente é tido como “um favor” ou algo “só necessário quando tem público”.

Minha formação em direito é a grande base da minha vida. Eu sempre fui muito de o que é certo é certo o que é errado é errado. Vejo muitas pessoas que tem vergonha de cobrar os seus direitos. Depois que entendi que o errado é quem não dá o direito e não quem cobra, eu decidi que não ia mais ter vergonha. E, vamos combinar, quem não sonha em trabalhar com jogos? Sonho adolescente. Achamos que é fácil e que vamos passar o dia todo jogando. Só que não.

Mas aprendi que quando fazemos o que gostamos, nós não trabalhamos. Eu realmente gosto de Libras. Gosto de interpretar e gosto muito de falar também. Então, poder trazer o conhecimento que eu tenho sobre as coisas que eu estudo. Sou intérprete de libras da Universidade Federal, que é minha renda principal.

Começar a viver de jogos começou em 2020/2021, quando fui contratada pela Rensga e contratada pela Nyvi Stephan e pelo Yoda. Quando nossos influenciadores reconheceram a importância da acessibilidade, muitos outros começaram a descobrir a importância também. Alguns só foram no hype, infelizmente, mas acontece. Acredito que demorou por ser algo totalmente novo. Fui a pioneira no meio, literalmente. Hoje, algumas empresas já estão contratando intérpretes especializados no esports.

Quando você passou a unir libras e jogos?

Em 2017, quando estava jogando com um professor surdo. Eu estava pensando também sobre o que eu faria de TCC na graduação de Letras Libras. Já sou formada em direito e meu TCC foi sobre direito à educação da pessoa surda. E aí, de forma resumida, durante uma partida do jogo League of Legens, percebi interações auditivas que ele não interagia, como a ultimate (poder máximo ou o mais forte) dos personagens, como o Sion. Quem joga sabe quando ele ativa o poder por que dá um “grito de guerra” ou as caixas do Corki que você ouve de qualquer lugar do mapa, elas deixam o personagem mais forte. Comecei a procurar dentro dos jogos as interações sonoras que tinham ou não interações visuais. Ou seja, o que fazia barulho e tinha ou não uma imagem. Foi assim que pensei “esse vai ser o tema do meu TCC”.

Visto isso fui atrás da comunidade surda gamer, onde na minha inocência, achei que seria um grupo pequeno, mas o grupo do Facebook era gigante, cheio de interação, sobre tudo do mundo gamer, peças de pc, jogos mobile. Encontrei o Deaf League esports, que era um campeonato de surdo, muito estruturado, com premiação, outras edições e outros jogos além de LoL. Fiquei super empolgada: LoL, campeonato, comunidade surda, libras e eu. Tudo junto, tudo o que eu estava vivendo. Propus uma parceria como intérprete de libras, e aí, que tudo mudou para mim. Graças ao Vaenov eu pude descobrir o que me fazia bem. Comecei a transmitir os campeonatos na Twitch e virei streamer assim. A galera curtia muito assistir e depois jogar. Também narrei as partidas, ainda tenho vídeos no YouTube. Ali que notei a falta de sinais e de conteúdos sobre o jogo, o que me fez ser criadora de conteúdo.

Iniciei o projeto de sinais de LoL em Libras, abríamos uma live no Face e íamos combinando sinais para na hora de narrar ficar mais fácil e menos cansativo. Comecei a ver que não tinham conteúdos acessíveis, então traduzi os conteúdos da Riot. Meu primeiro vídeo foi o Acampamento Yordle, que viralizou e fez a Nái, Community Manager na Riot Games, me notar e me convidar para Academia de Piltover, programa para os criadores de conteúdo parceiros da Riot Games. Dessa forma, fui crescendo no cenário trazendo acessibilidade e mais do que isso, explicando sobre acessibilidade.

Fui contratada por uma organização de esports chamada Rensga, que é a primeira organização a ter uma interprete de libras e legendista oficialmente na Staff e presente em todos os conteúdos audiovisuais, e até hoje, a única. Entrei pra organizações como Sakuras esports (organização focada no público feminino) e Rise academia (disponibiliza cursos de libras), na qual sou diretora de departamento de acessibilidade, assim como Wakanda Streamers (Rede de apoio para pessoas pretes) , AbleGames (Acessibilidade para videogames, como controles adaptados), também sou parceira do projeto Fierce (foco de incentivar a comunidade LGBTQIA+ dentro dos games e eSports) . Um pouco em cada lugar sempre levando meu conhecimento pra tornar o cenário mais acessível. Trabalhei com Nyvi Estephan, Yoda, Daniels, Bengala atômica (canal mais inclusivo que eu conheço), MachadinhoBr, Falkiner, Bah Gutierrez...

Como você vê a diversidade no universo dos games?

A representatividade da diversidade é algo extremamente necessária para o mundo no geral. O mundo em si é diverso e quando temos pessoas ditas “padrões” em todos os lugares de influência e liderança gera um ambiente tóxico e que não aceita pessoas diferentes. Muitas vezes fazem com que essas pessoas achem que são mais do que as outras. Por isso iniciativas como Sakuras Esports, Wakanda Streamers, Projeto Fierce, PcDStreamers (hastag criasda pelo MachadinhoBR em prol dos streamers com deficiência) e o meu próprio projeto Libras no Esports são extremamente necessárias para mostrar que nós estamos aqui, sim.

Eu me enquadro como minoria. Sou uma mulher preta e luto ao lado das outras minorias, porque nós temos que dar as mãos e estabelecer nosso lugar de direito. Somos capazes e merecedores. Tem gente que diz: “mas porque fazer campeonato feminino? Não é melhor misto?”. Você já viu a dificuldade que é um time feminino conseguir marcar um treino com time masculinos? Os caras simplesmente não querem jogar por algum motivo, alguns marcam “treino de mentira”, marcam sem intenção real de jogar, só para na hora não aparecer.

Tivemos um caso famoso onde os caras simplesmente baniram cinco suportes, para dizer que mulher só joga de suporte, é desrespeitoso ao máximo. Não dá para ter um campeonato misto quando a parte masculina não reconhece a feminina como alguém a sua altura. Quando temos pessoas trans, minha nossa senhora, a falta de respeito, falta de empatia e falta de educação aflora. Quando temos Pcds, não tem acessibilidade e não tem, novamente, empatia, respeito e educação. Então sim, precisamos fomentar e preparar as pessoas para o mercado. Infelizmente temos que começar assim, porque “a grande maioria” não aceita a diversidade.

E o machismo dentro dele?

No cenário dos jogos é algo culturalmente tóxico porque menino cresce jogando vídeo game e menina cresce brincando de boneca. Então, meninos já tem acesso muito antes do que as meninas e de forma muito natural. Muitas pessoas acham que eu comecei a jogar por causa de namorado e não, sempre fui gamer. Muitas vezes ter que provar que eu jogo porque quero e não porque quero impressionar alguém pode ser cansativo. Diretamente comigo, não me lembro de ter algo relacionado a machismo porque normalmente eu jogo com os chats desativados e meu nick “suuhgetsu” é confundido sempre com “suigetsu”. Então, a galera já pressupõe que sou menino. Escrevendo isso percebo que é um machismo estrutural: não sofro porque pressupõem que sou homem. No Valorant, sempre fico receosa porque vejo muitas meninas que sofrem com machismo dentro dos jogos. Muitas amigas minhas já sofreram. Antes de abrir o voice, eu mando um “sou ruim, foi mal galera”, “estou aprendendo a jogar”. Eu de fato sou ruim, mas precisar explicar isso para não levar algum hate é péssimo. E depois que a galera fala “ah, ok sem problemas”, eu abro o voice.

Outra coisa que acontece também é acharem que eu sou um menino criança. Escrevendo isso lembrei de um fato que aconteceu no LoL. Um cara que, inclusive era conhecido meu, ficou irritado porque não dei atenção para ele e mandou um “vai lavar uma louça”. Contei para todos os nossos amigos em comum, mandei print e a galera se afastou dele. Quando eu subi de elo, do gold I pro platina V, ele começou a dizer que eu não jogava em live porque era alguém na minha conta. Disse que ia me denunciar para eu sair da academia de piltover. Só que eu estava tendo aulas com um amigo que é coach, que me ensinou a jogar de Phanteon top de ignite, o que me fez ganhar a md5. O cara surtou completamente, tanto que eu comecei a fazer live jogando de phanteon top de ignite para provar para ele que era eu. Tinha até esquecido dessa história de tão sem noção que o cara foi. Ele ainda veio pedir um código de skin porque era aniversario dele. Bloqueei.

Quais as dificuldades que você enfrenta?

A maior dificuldade que encontrei foi apoio das pessoas do próprio meio. Muitos dizem "que fofo, que legal", mas não apoiam de fato. Os lugares que tive mais apoio foram nas organizações que ainda estou. Prezo muito pelos meus valores, não fico em locais que estão pelo hype ou que querem promover a “falsa inclusão”. Já tive contato com muitas empresas que apenas me iludiram. Prometem, fazem reuniões e, no fim, os vídeos continuam sem acessibilidade. Não é algo caro, não é algo difícil, não é algo que não tem profissionais. É falta de vontade e de empatia. A comunidade PcD dentro dos jogos é enorme. Muitos dizem “mas não tem público”. Público tem. O que não tem é acessibilidade e bom senso. A sociedade já exclui as pessoas com deficiência e consequentemente os profissionais da área. Então, nós que estamos nessa comunidade, já partimos da ideia de que o local não vai ser acessível. A galera basicamente não participa, mas quando tem, pode ter certeza que vai ter público.

Temos mais de 200 surdos que jogam LoL. Temos quase nove times de surdos que treinam para campeonatos, porém não temos campeonatos inclusivos e acessíveis, de forma que entendem a necessidade de cada um.

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