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Por Malu Pinheiro (@mariluisapp)

Era véspera da reunião de pauta da nossa revista impressa quando nenhuma das minhas ideias de reportagens me pareciam suficientes. Saúde mental, redes sociais, novos relacionamentos... Decidi perguntar a uma amiga se ela tinha alguma sugestão, algo que eu pudesse trazer para as páginas e que fosse relevante para o momento. "Não tenho, pede para o ChatGPT", respondeu. De fato, enquanto eu tentava ter uma ideia genial, a internet estava em polvorosa com uma nova tecnologia que oferece respostas imediatas para os usuários no formato de texto ou códigos de programação, simulando um bate-papo sobre qualquer assunto. Decidi testar. Expliquei que era jornalista e que precisava de uma ideia de pauta sobre comportamento. Ele prontamente respondeu: "Claro, aí vai uma lista de assuntos" – e o primeiro deles era "o futuro do mercado de trabalho com a chegada da inteligência artificial". Pronto, uma tela branca foi instaurada na minha mente, e cá estamos.

Que a inteligência artificial está no nosso dia a dia não é novidade, mas talvez o ChatGPT tenha escancarado essa tecnologia – e assustou muita gente. Do inglês "Chat Generative Pre-Trained Transformer", ou "Transformador Pré-treinado de Bate-papo Generativo", a ferramenta utiliza um banco de dados gigantesco para calcular as respostas mais prováveis sobre qualquer assunto, simulando uma conversa com textos coerentes, objetivos e gramaticalmente corretos.

"O começo da inteligência artificial foi na década de1970, mas, principalmente nos últimos anos, ela começou a ganhar novos contornos e a se desenvolver ainda mais. O corretor de escrita, por exemplo, já é algo consolidado, que está entre nós há bastante tempo. Autocorreções em aplicativos ou nas sugestões em buscadores na internet fazem parte de um processamento de linguagem natural que, por estatística, enxerga o termo mais comum a ser seguido depois de determinada palavra", introduz Cristina Godoy, advogada, professora da Universidade de São Paulo e pesquisadora principal do Centro para Inteligência Artificial (C4AI). "Antes, os avanços da inteligência artificial eram pontos muito distantes entre um salto e outro na pesquisa qualitativa. Agora, estamos em uma velocidade muito rápida – e a tendência é só acelerar", completa.

Muito desse avanço se deve à pandemia do coronavírus, quando fomos obrigados a ficar em casa e em computadores. "Os dados gerados nesse período são o que alimenta o desenvolvimento da inteligência artificial. Fizemos toda a nossa vida no ambiente digital, e isso permite que a gente tenha mais soluções em sua aplicação. O ChatGPT é só o início do que está por vir", afirma.

Inteligência artificial entrou no chat: como lidar com os benefícios e as problemáticas que envolvem a IA? — Foto: Pexels
Inteligência artificial entrou no chat: como lidar com os benefícios e as problemáticas que envolvem a IA? — Foto: Pexels

A dualidade

A Alexa, a Siri, o aspirador robô e até o desbloqueio facial do celular são exemplos que já estão em nossa rotina. De acordo com a McKinsey & Company, empresa de consultoria norte-americana, a adoção de IA é 2,5 vezes maior hoje quando comparada a 2017. E não é só. Segundo o artigo Ciclo de Hype para Inteligência Artificial, da consultoria Gartner, estima-se que a maioria das inovações relacionadas à IA ainda está no estágio inicial, no chamado "gatilho da inovação", com platôs a serem alcançados em até dez anos. Ou seja, estamos apenas no começo!

"Existe, sim, um assombro que a gente vê ao se deparar com uma ferramenta que responde prontamente a qualquer pergunta, mas o seu potencial é gigantesco", afirma Raquel Dommarco, especialista na WGSN, empresa dedicada à pesquisa de tendências de comportamento e consumo. De acordo com ela, as ferramentas de criação têm, com os recursos da inteligência artificial, muitas possibilidades para se acelerarem a partir de 2025 – e o ChatGPT ganhou um teor sensacionalista, principalmente no quesito mercado de trabalho. "A gente tem uma ferramenta incrível em nossas mãos, com alto potencial, e estamos fazendo com ela uma lista de profissões que irão desaparecer?", questiona. No topo dessa lista, que circulou amplamente nas redes sociais, está o tradutor. "Eu posso afirmar com absoluta certeza que nenhuma ferramenta consegue traduzir satisfatoriamente uma obra de Dostoiévski ou de Shakespeare. Para uma tradução de manual técnico, esses softwares já são utilizados, mas, para conteúdos profundos, sempre vamos precisar de um olhar humano e de uma pessoa falante da língua original", tranquiliza.

É possível impulsionar a criatividade e utilizar a IA para potencializar o nosso trabalho, argumenta Raquel, para que ele seja menos mecânico e mais ágil, e não, como dizem, "trocar humanos por máquinas" – até porque temos questões éticas em ascensão. Qual seria a resposta dos consumidores se soubessem que as empresas tiveram demissões em massa por conta da inteligência artificial? Ou se estiverem lendo informações jornalísticas produzidas 100% por máquinas? "Existe uma resposta social e um impacto negativo em uma sociedade que está mais articulada para este debate", alerta a especialista em tendências.

Por outro lado, a forma como as questões estão se desdobrando, principalmente em relação ao ChatGPT, é preocupante. "Enquanto as pessoas estão discutindo, e utilizando, a ferramenta, elas estão também fornecendo dados, muitas vezes pessoais, para ela. Por exemplo, um advogado que pede revisão de uma petição de divórcio para o ChatGPT está informando dados do seu cliente sem consentimento. Não sabemos como a inteligência artificial foi treinada para receber conteúdos sensíveis", pondera Cristina.

Vale também lembrar que o ChatGPT foi financiado pela Microsoft, desenvolvido pela empresa OpenAI, criada por Elon Musk e Sam Altman, e aberto ao público em novembro de 2022. Até o início de março de 2023, reunia mais de 120 milhões de usuários ativos. "Um mês depois que a Microsoft conquistou a maior parte da empresa, ela demitiu toda a sua equipe de monitoramento ético. Isso sim é preocupante", alerta a professora. E, enquanto um dos princípios elementares da ética é a transparência, aqui nós não a temos. "É nisso que se deve insistir agora. Quando se é gratuito, somos nós que estamos gerando valor aos serviços com nossos dados. E o que eles estão fazendo com eles? Nós não sabemos."

Fernando Osório, professor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação na USP e coordenador de extensão do Centro para Inteligência Artificial (C4AI), também alerta para a mesma problemática: "Nós estamos sendo cobaias do ChatGPT enquanto eles aperfeiçoam a ferramenta". O professor explica que a ferramenta não tem exatidão e pode dar informações falsas. Por ser "pré- treinado", existe uma data em que se congelou o conhecimento onde ele busca as respostas prováveis. "O ChatGPT que está aberto, por exemplo, é de 2021. Está desatualizado. E ele é um gerador de texto do tipo 'autocompletar'. Ou seja, completa suas respostas com aquilo que mais aparece em textos que usou para o seu aprendizado. Se você escreve 'parabéns para você', ele te retorna com 'nesta data querida'. As pessoas mais desavisadas acreditam que estão conversando com algo muito próximo a um ser humano, e ele não é!”, reforça.

Inteligência artificial entrou no chat: como lidar com os benefícios e as problemáticas que envolvem a IA? — Foto: Pexels
Inteligência artificial entrou no chat: como lidar com os benefícios e as problemáticas que envolvem a IA? — Foto: Pexels

O futuro

O que assombrou muita gente – inclusive a mim, quando pedi a sugestão de pauta para o ChatGPT há semanas – é, sim, outro risco: o seu impacto no mercado de trabalho. Principalmente porque, pela primeira vez na história, a revolução que está por vir irá atingir a mão de obra qualificada. "É um papel político do Estado pensar em soluções para a sociedade a fim de evitar uma massa de desemprego, em preparar seus cidadãos a partir dessa inteligência artificial de maneira que possam se inserir no mercado de trabalho com outra qualificação", pontua Cristina. Está dentro dessa seara da governança também evitar que o interesse econômico das empresas se sobreponha ao bem comum.

Até porque não dá para esquecer que o recurso é, como seu próprio nome diz, artificial. "Toda tecnologia pode ser assimilada, mas é preciso um ser humano por trás para fazer isso", alerta Raquel. Existem atividades que exigem empatia, conhecimento e vivência, e não apenas informações e dados. "Muitas funções continuarão exigindo a capacidade de contextualizar situações para a tomada de decisão, e isso depende do ser humano", diz Cristina.

Se, por um lado, a inteligência artificial pode fazer conexões de dados que nós, humanos, não conseguimos, por outro, nós somos responsáveis pela capacidade de contextualização. "A IA já é usada para diagnóstico médico, mas somos nós capazes de analisar o histórico do paciente, por exemplo. A revisão humana vai ser de extrema importância, e em várias áreas", ressalta Cristina.

Em compensação, a professora concorda que muitas profissões se tornarão obsoletas. "No setor público, por exemplo, algumas atividades deterioram o físico e são desgastantes. De fato, é uma área que vai economizar gastos reduzindo seus funcionários – e não acho isso ruim. Porém, seria função do Estado preparar essa população para um outro tipo de trabalho. As pesquisas estão evoluindo e os seus impactos já surgem em diversos segmentos. O Brasil, geralmente, fica entre os primeiros colocados da América Latina na pesquisa em inteligência artificial, mas o que estamos fazendo em relação a essa mão de obra?", reflete. Fernando lembra profissões antigas, como ascensorista e telefonista, que não existem mais. "O elevador evoluiu, e a pessoa que o comandava manualmente foi colocada de escanteio. Não existiria internet se ainda fosse necessário alguém para unir dois cabos em uma conexão. Muitos empregos deixaram de existir? Sim. Foi ruim? Não. Hoje, o mundo se move em função da conectividade", pondera.

O professor, inclusive, prefere não falar em desemprego, mas em deslocamento gerado pela automação. "A inteligência artificial não vai destruir profissões (momentaneamente, talvez), mas vai deslocar as atividades. Se, por um lado, os geradores de imagem ameaçam os designers gráficos, por outro, o humano continuará necessário para intermediar a demanda e o software", diz Fernando. Isso porque essas ferramentas não são proativas, não há inteligência inata por trás delas.

Então, como lidar com a Inteligência Artificial?

"Esse avanço da inteligência artificial traz benefícios e prejuízos. Na verdade, é a história que irá dizer o que vai prevalecer", pontua Cristina. A professora lembra que, quando pensamos nas notícias falsas, a inteligência artificial pode atuar dos dois lados. "Temos os robôs que potencializam essas informações, mas também os softwares que identificam contas automatizadas e as encerram", explica.

O ponto, então, é entender que a inteligência artificial é um instrumento que temos em mãos para facilitar a nossa vida, mas que ainda precisa de muitos ajustes. "Hoje, fala-se de uma IA confiável e voltada para o bem. E isso nós não temos", diz Cristina. Mais do que debater quais profissões irão desaparecer em dez anos, precisaríamos discutir uma regulação para sua atuação. "É preciso uma governança dessa ferramenta, até para entender quais são os riscos aceitáveis pela sociedade. Depois, então, caminhar para uma regulação ética e jurídica para que seja uma IA confiável. Por ora, ela não é", ressalta.

Fernando afirma que o controle que existe hoje em dia no ChatGPT, por exemplo, ainda é muito inicial. "Ele foi instruído a não ensinar a fazer uma bomba ou cometer crimes em geral, mas na internet existem maneiras de burlar essa tal cibersegurança. Eu já cheguei em um estágio de conversa na qual ele faz apologia ao uso de drogas. No Brasil, isso é um crime", diz. Para o professor, algo precisa ser feito – e não necessariamente paralisar os estudos. "É preciso difundir a informação de que o ChatGPT tem muita limitação e não é um buscador, como o Google. Ele é um gerador de texto sem base com a realidade concreta", alerta.

Com controle e, principalmente, transparência, seria possível entender se um aluno plagiou um texto ou se a máquina deu uma informação falsa, por exemplo – e, para quem chegou ao nível do ChatGPT, essa auditoria não é difícil de se desenvolver. "Daí, é o Estado que decide quem tem o controle dessas informações, mas esse seria o primeiro passo para um futuro seguro. Transparência, auditoria e responsabilização é o conjunto de ações que a sociedade precisa para sobreviver a essas tecnologias", finaliza Fernando.

E, para tudo isso, é preciso pessoas reais por trás, é claro. "De nada adianta uma tecnologia nova sem que exista um humano para direcioná-la. As possibilidades são muito grandes e boas – e será o nosso crivo ético e moral que vai decidir quais serão as melhores aplicações para ela", alerta Raquel. "Somente se houver esse equilíbrio vamos conseguir potencializar os benefícios dessa tecnologia em prol do conforto social", pontua Cristina. A longo prazo, será a harmonia entre o ser humano e a inteligência artificial que deve prevalecer. Assim espero.

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