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Por Por Paula Jacob (@pjaycob); Fotos Renato Parada/Divulgação


Entrar ou não num aplicativo de relacionamentos? Essa pergunta move a protagonista de Copo Vazio (Todavia, R$ 62) a desvendar as possibilidades do amor em tempos de redes sociais. Incentivada pela família, Mirela acaba cedendo e ali, no espaço virtual, conhece Pedro. Eles marcam o primeiro date, eles se gostam, eles conversam, eles saem de novo, eles seguem conversando diariamente e… puff! Num passe de mágica, o desenvolvimento de um afeto cai no limbo (e no desespero). O nome, ghosting, não nos deixa mentir o quanto o desalento é real-oficial. "O distanciamento afetivo seria, supostamente, uma das formas de os homens continuarem no controle, e não se envolver, não cuidar do outro (ou da outra) muitas vezes incorre em falta de responsabilidade afetiva", conta à Glamour Natalia Timerman, autora de Copo Vazio.

O livro, escolhido para a leitura do mês de junho do Clube do Livro Glamour, tem na dor uma certa poesia. Isso porque a personagem principal é muito bem trabalhada, nas suas complexidades e incoerências. "Mirela tinha que ser verdadeira, e isso significava que eu não podia esconder nada, tinha que deixá-la ir ao fundo do poço e mostrar a sua vulnerabilidade." Instigante e viciante do começo ao fim, Copo Vazio é daquelas leituras arrebatadoras que trazem discussões importantes sobre como nos relacionamos atualmente e o que podemos fazer para (tentar) mudar o rumo das coisas. Detalhes sobre a escrita, o processo de inspiração e a literatura em tempos de redes, você confere na entrevista a seguir:


Este é o seu primeiro romance. Como foi explorar a sua escrita nesse outro formato?
Cada tema, ideia ou história pede para ser contada de uma maneira, e é isso o que, para mim, determina o gênero em que será escrita. A história de uma mulher real, que conheci no meu trabalho como psiquiatra num hospital penitenciário, precisou ser um livro de não-ficção, o “Desterros: histórias de um hospital-prisão”, e os contos de “Rachaduras” pretendiam alcançar, cada um, um tipo diferente de impacto, e eles foram escritos ao longo de muitos anos, em períodos diferentes da minha vida. “Copo vazio” também levou muito tempo para ser escrito, o que vejo hoje como a duração necessária de sua construção, seu amadurecimento. Aprofundar a protagonista demandava uma narrativa de mais fôlego, por isso o romance.

Natalia Timerman, psiquiatra, escritora e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP (Foto: Renato Parada/Divulgação) — Foto: Glamour
Natalia Timerman, psiquiatra, escritora e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP (Foto: Renato Parada/Divulgação) — Foto: Glamour

Mirela é uma personagem que ganha identificação quase imediata com as leitoras. O que você pensou ao construir essa protagonista? Quais camadas eram importantes para compor essa complexidade?
Mirela tinha que ser verdadeira dentro do universo ficcional que eu queria criar, e isso significa que eu não podia esconder nada, eu tinha que deixá-la ir ao fundo do poço, mostrar dela o que geralmente temos vergonha de mostrar: nossa vulnerabilidade, nossa fragilidade, nossos erros, nossos absurdos. Eu queria que ela fosse a convergência desses absurdos, que ela agisse mal segundo padrões e segundo o que ela mesma achava certo, que os labirintos de pensamento nos quais já me vi e aos quais tantas vezes tive acesso na escuta clínica ficassem à mostra e, assim, pudessem reverberar também em quem lê. O fato de “Copo Vazio” ser um romance composto de fragmentos temporais remete à fragmentação de nosso tempo e também à de Mirela, que se vê estilhaçada depois do abandono súbito de Pedro.

Além da questão da personalidade, Mirela também passa por situações que muitas mulheres enfrentam hoje em dia: o sofrimento pela falta de responsabilidade afetiva por parte, principalmente, dos homens. Por que você acha que isso acontece?
Ao longo do século 20, as mulheres foram ocupando espaços que antes eram quase exclusivamente masculinos: o trabalho, a política, o bar. Os homens exerceram e manifestaram durante séculos seus privilégios pela soberania nesses espaços, e quando os perderam para conquistas feministas ― que foram conquistas para a sociedade como um todo ― , seu exercício de poder se deslocou para a intimidade, ou seja, para as relações afetivas. O distanciamento afetivo seria, supostamente, uma das formas de os homens continuarem no controle, e não se envolver, não cuidar do outro (ou da outra) muitas vezes incorre em falta de responsabilidade afetiva. Gosto muito de como "A rosa mais vermelha desabrocha", quadrinhos de Liv Strömquist, aborda essas questões.

O que te inspirou a trazer uma questão tão contemporânea dos relacionamentos para Copo Vazio?
Eu queria contar uma história, uma história de amor ― ou de desamor, que são as histórias boas de serem contadas ―, e isso já foi feito tantas vezes na história da literatura que o que eu podia oferecer era justamente o tempo de hoje. É quase impossível falar de relacionamentos que acontecem na contemporaneidade sem trazer as redes sociais, os aplicativos, a internet e o consequente binômio hiperconexão-solidão.

Enquanto autora e também enquanto psiquiatra, o que comportamentos como o ghosting refletem sobre as afetividades de hoje?
Ghosting, benching, breadcrumbing, orbiting são termos que aprendi depois de ter escrito o livro, mas que certamente estão presentes nele porque se manifestam em nossa sociedade hoje, ainda que não sejam exclusivos de nossa época. A internet e seus desdobramentos proporcionam enorme multiplicidade de encontros, mas que são, muitas vezes, superficiais, além de favorecerem a impressão de que as pessoas por detrás daqueles tantos perfis são descartáveis. E não são, por isso podem sofrer do outro lado da tela. Outro fenômeno que vemos hoje em dia, aliás, também potencializado pelas redes sociais, é o discurso de que não se pode sofrer, de que as histórias têm que ser rapidamente superadas, de que ser vulnerável é sinônimo de fracasso. Se é assim, somos todos fracassados, porque ser humano é ser vulnerável por constituição: somos frágeis, somos incompletos, dependemos de outras pessoas todos os dias de nossa passagem sobre a terra, do nascimento à morte, sem exceção.

O livro "Copo Vazio" é a leitura do mês de junho do Clube do Livro Glamour (Foto: Arte: Leticia Oliveira) — Foto: Glamour
O livro "Copo Vazio" é a leitura do mês de junho do Clube do Livro Glamour (Foto: Arte: Leticia Oliveira) — Foto: Glamour

Existe cura para isso? (risos)
Para a nossa dependência, não (risos); mas para a nossa dificuldade de aceitar o que somos e seremos inevitavelmente, ou seja, frágeis, sim: um bom começo é evitar brigar com os próprios sentimentos. Um dos componentes de sofrer por amor hoje em dia, por exemplo, é a culpa e a vergonha pelo próprio pesar. Agora, para a vulnerabilidade perante esses comportamentos que a internet potencializa tanto, como o ghosting, penso ser importante ampliar o tempo offline, embora eu saiba como isso é difícil.

O conhecimento da parte psicanalítica te auxiliou no processo de escrita da história e também dos personagens?
A escuta psicoterapêutica e a literatura têm muito em comum: não é à toa que Freud se debruçou em livros de ficção para pensar muito de sua teoria psicanalítica. A percepção, na clínica, da recorrência do avassalamento que Mirela vive fortaleceu minha vontade de escrever “Copo Vazio”, e ter acesso à intimidade das pessoas por meio de suas palavras me ajudou a compô-la como personagem. Eu não queria que o livro fosse a aplicação ficcional de conceitos psicanalíticos ou de outras abordagens de terapia, até porque isso certamente tiraria seu vigor, mas tudo o que lemos, vivemos e somos acaba aparecendo de alguma maneira no que escrevemos.

Natalia Timerman é autora de três livros: "Desterros – histórias de um hospital prisão" (2017), "Rachaduras" (2019 e finalista do Prêmio Jabuti) e "Copo Vazio" (2021) (Foto: Renato Parada/Divulgação) — Foto: Glamour
Natalia Timerman é autora de três livros: "Desterros – histórias de um hospital prisão" (2017), "Rachaduras" (2019 e finalista do Prêmio Jabuti) e "Copo Vazio" (2021) (Foto: Renato Parada/Divulgação) — Foto: Glamour

Qual foi o maior desafio para escrever o livro?
O maior desafio foi lidar com as recusas que o livro sofreu: antes de ser aceito para publicação, ele foi recusado duas vezes. Eu precisei ser insistente como Mirela foi, precisei ser incapaz de desistir dele assim como ela se viu incapaz de desistir de Pedro.

Você pode contar um pouco sobre a sua trajetória profissional e como foi entrar no universo da literatura?
Minha vontade de ser escritora vem de muito antes de eu pensar em ser psiquiatra ou mesmo médica: desde criança, desde que me entendo por gente, eu sempre amei os livros. Acabei cursando medicina por influência do meu pai, que era médico (e que também tinha um apreço imenso pelos livros), mas, mesmo gostando muito da psiquiatria, eu tinha, até começar a escrever, a sensação de que faltava algo, de que ainda não tinha chegado no lugar onde eu queria estar. Porque, para mim, a literatura é isso: a sensação de chegar em casa.

Apesar das redes sociais trazerem um ponto negativo na história de Copo Vazio, você acha que elas podem ser benéficas para o mercado editorial hoje?
As redes sociais são multiplicadoras importantes da vontade de ler: há excelentes canais e perfis que discutem livros, há leituras compartilhadas, há toda uma comunidade de leitores que se conecta e amplifica a literatura. Isso é muito bonito, isso é ótimo, ainda que o ato mesmo de ler e escrever aconteça fundamentalmente na solidão ― o que não o diminui, muito pelo contrário. A literatura é dos melhores lugares de encontro consigo mesmo através do outro: é dos melhores lugares de encontro com o outro que existe em si mesmo.

Tem algum conselho para quem gostaria de se aventurar na escrita?
Tudo vale a pena ser escrito, tudo é suficientemente digno de virar uma história. A literatura é o lugar onde tudo pode caber.

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