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Nesta quinta, 9 de maio, “Diálogos com Ruth de Souza”, que revisita a história de um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira, faz sua estreia nos cinemas. A data não foi escolhida ao acaso e é cheia de significados: quase 80 anos atrás, mais especificamente no dia 8 de maio de 1945, Ruth vivia sua primeira estreia no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Com a peça “Imperador Jones”, de Eugene O'neil, a atriz brilhava ao lado da trupe do Teatro Experimental do Negro (TEN), o primeiro grupo de artistas negros a se apresentar naquele palco.

Com direção de Juliana Vicente, que também assinou títulos como “Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo” e “Cores e Botas”, o longa mescla imagens de arquivo, memórias da própria atriz - que chegou a participar do processo inicial do filme antes de seu falecimento em 28 de julho de 2019 - e, ainda, uma parte ficcional que recorre ao onírico para ligar as pontas da narrativa e, de certa, construir uma memória coletiva sobre mulheres pretas.

Juliana Vicente — Foto: Renato Nascimento
Juliana Vicente — Foto: Renato Nascimento

Nesta parte ficcional, o filme apresenta um cruzamento com o universo mitológico africano através do encontro com as Yabás, orixás femininas, em uma interpretação transcendental da vida de Ruth, interpretada pelas atrizes Dani Ornellas e Jhenyfer Lauren nas fases adulta e jovem, respectivamente. No elenco, estão também a artista visual Rosana Paulino, a mãe de santo Iya Wanda De Omolu, a cantora, compositora e atriz Lívia Laso, a atriz Mirrice De Castro e a cantora Luísa Dionísio. “A princípio, Ruth faria parte dessas cenas, mas aí ela faleceu antes e essas coisas tiveram que mudar - o que, de alguma maneira, também provocou um sentido no filme. Entraram essas mulheres que também são parte do legado da Ruth, que é uma mulher preta, e que também convergem para essa ancestralidade maior nossa; não só específica da personalidade da Ruth, mas como mulher preta em geral”, conta Juliana Vicente em entrevista exclusiva à Glamour.

A seguir, no papo completo, a cineasta entrega ainda mais. Conta como surgiu a ideia de fazer o longa, seu encontro com Ruth de Souza em 2009 e, dentre outros detalhes, também reflete sobre como está o cenário atual para artistas negros - porta que começou a se abrir com nomes como o da grande estrela do longa. “Ainda precisamos avançar muito por dentro das estruturas, que é onde, efetivamente, se consegue construir outros imaginários sobre nós mesmas e sobre o mundo”. Confira na íntegra:

Juliana Vicente — Foto: Renato Nascimento
Juliana Vicente — Foto: Renato Nascimento

1 - Como surgiu a ideia de fazer o filme sobre Ruth de Souza?

Quando fiz o meu primeiro filme, que é o "Cores e Botas", a Dani Ornellas e a Jhenyfer Lauren trabalharam comigo. a Dani me perguntou se eu sabia quem era a Ruth, que era amiga dela, E eu disse que sabia o nome, mas que não me vinha exatamente o rosto na cabeça. Daí ela me mostrou e, obviamente, eu vi que a conhecia. Não tem como não conhecer... É um rosto que a gente viu muito. Posteriormente, fui conhecê-la e, a partir dessa ponte feita pela Dani, a história começou.

2 - Como foi o processo de pesquisa para chegar ao resultado final do filme?

Na verdade, eu comecei diretamente conversando com ela muito antes de começar a pesquisa. Li a biografia sobre ela escrita por Maria Angela de Jesus logo quando comecei a pesquisar, e percebi que o que estava escrito ali era exatamente o que ela me contava. Fui procurando arquivos, dentro da Globo e em outros espaços - e a própria Ruth tinha um acervo muito grande que pudemos utilizar para entender um pouco mais sobre sua carreira. Daí, a grande coisa que aconteceu para mim foram as cartas da Rockfeller. Tivemos o insight de pedir e eles tinham toda a troca de cartas do período que Ruth passou nos Estados Unidos. Ninguém sabia que essa diva nossa tinha passado esse tempo estudando por lá...

"Diálogos com Ruth de Souza", de Juliana Vicente — Foto: Divulgação
"Diálogos com Ruth de Souza", de Juliana Vicente — Foto: Divulgação

3 - Qual o maior desafio que você enfrentou durante o processo?

O maior foi entender a vida acontecendo, porque foram surgindo algumas limitações físicas para a Ruth, e tivemos que lidar e nos adaptar. Fora isso, teve o próprio desafio de conseguir fazer com que ela saísse desse discurso cristalizado e abrisse para a gente um pouco mais do que sentia, pensava, sonhava… Enfim, esses lugares que eram um pouco mais subjetivos e que ela, acostumada a contar a própria história por muito tempo, acabava já tendo um discurso pré-concebido. Foi um desafio tentar chegar em novas coisas com ela, mas fomos encontrando dispositivos para isso - como as cartais e, por exemplo, o arquivo dela interpretando a Carolina Maria de Jesus. Ruth nunca tinha assistido a esse programa; vimos juntas pela primeira vez e foi legal porque ali ela concluiu que foi sua melhor interpretação.

4 - Embora a Ruth de Souza já fosse alguém que você admirasse, descobriu algum detalhe que te surpreendeu ainda mais?

Eu não sabia tanta coisa assim sobre a Ruth, então tudo foi uma grande descoberta e me surpreendeu. Mas eu acho que, quando fui entendendo mais o humor dela e também sua percepção sobre o ambiente em que estava, para além do discurso, foi o momento em que me apaixonei mais. Foi entender essa camada do que ela estava pensando para além do “sorrie e acene”. Me apaziguou o coração ver que ela sabia que sua carreira era um grande feito.

5 - Você teve a oportunidade de conhecer a Ruth em 2009. Você apontaria alguma coisa desse encontro que, de certa forma, te deu uma luz para a execução do filme? Até mesmo um detalhe em específico que influenciou no modo como você conduziu alguma parte da história?

Não é todo mundo que tem um tapete vermelho que sai da portaria e chega até a própria porta, né? Acho que isso já fala muito sobre ela e sobre o tamanho dela, além de como ela se via e deveria ser vista. Isso foi um detalhe que, logo de cara, me chamou muita atenção nesse primeiro encontro.

6 - A parte ficcional do filme torna tudo ainda mais interessante e traz um dinamismo a mais entre a narrativa com materiais de arquivo. De onde veio a inspiração para essa escolha? E o que você destacaria nessa parte?

Eu sentia que tinha uma lacuna entre o nosso diálogo - e, talvez, o único lugar possível de fazer esse diálogo era de uma outra maneira que eu ainda não sabia qual era. Até que me apresentaram essa música da Virginia Rodrigues, Yaya Zumba, com a Ruth recitando um poema e com uma saudação para a Nanã no fim. A partir disso, comecei a pensar sobre isso, mas também tive um sonho em específico que me levou para esse espaço do onírico, e eu entendi que possivelmente era uma sinalização de que eu deveria seguir esse caminho. A princípio, Ruth faria parte dessas cenas, mas aí ela faleceu antes e essas coisas tiveram que mudar - o que, de alguma maneira, também provocou um sentido no filme. Entraram essas mulheres que também são parte do legado da Ruth, que é uma mulher preta, e que também convergem para essa ancestralidade maior nossa; não só específica da personalidade da Ruth, mas como mulher preta em geral.

7 - Ruth de Souza foi uma verdadeira pioneira e abriu caminhos para muitas outras artistas negras. Como uma mulher negra no meio da arte também, como vê esse cenário hoje? O que ainda precisa ser mudado?

Eu acho que a gente avançou muito em representatividade, mas ainda precisamosavançar muito por dentro das estruturas, que é onde, efetivamente, se consegue construir outros imaginários sobre nós mesmas e sobre o mundo. Então, eu entendo que a gente tem pequenos avanços, mas ainda está muito aquém do que poderia e deveria.

"Diálogos com Ruth de Souza", de Juliana Vicente — Foto: Divulgação
"Diálogos com Ruth de Souza", de Juliana Vicente — Foto: Divulgação

8 - Pegando o gancho do filme, em que as memórias são quase protagonistas, o que você aponta de mais importante nessa relação de lembrança e arte?

Mesmo quando é uma narrativa ficcional, ela ocorre a partir do que a gente tem de memória e de repertório. No sentido específico do filme da Ruth, e também tudo o que gente está construindo de narrativa preta, acho que também é um esforço de construir uma memória coletiva. Como não temos memórias específicas dos nossos ancestrais, tudo o que falamos de pessoas mais velhas que a gente é como se estivéssemos falando um pouco sobre nós mesmos, sobre a nossa história. É uma maneira da gente tentar reconstruir um pouco da nossa história quando contamos a história de um mais velho nosso. Então, acho que, nesse sentido, a arte tem esse papel de fazer com que a gente consiga também reconstruir não só historicamente, mas também afetivamente e emocionalmente.

Juliana Vicente — Foto: Renato Nascimento
Juliana Vicente — Foto: Renato Nascimento

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