Jornada de beleza
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Por Giovanna Heliodoro*

"Eu gosto muito de dizer quem eu sou a partir de onde vim. E, de onde eu venho, a gente sempre pede licença aos mais velhos. Eu sou filha de Marilene e Sérgio, um casal interracial que almejou muito ter uma criança. Mas quando vim ao mundo, eles se deram conta de que eu não era bem o que esperavam. Eu sou o sonho dos meus pais, que era o sonho dos meus avós e o sonho dos meu ancestrais, mas não sou parecida com o que idealizaram para mim, então, desde muito nova eu tive que suprir a expectativa das pessoas sobre o meu corpo.

Como sou filha única, a expectativa era muito grande pela minha chegada. Eu era o primeiro menino da família. Só que, na minha infância, essa expectativa foi traumatizante, pois tudo o que os meus pais queriam que eu fizesse não era muito bem com o que me identificava. Fui uma criança muito solitária por muitos momentos, não porque era colocada nessa posição, mas porque queria.

Por passar tanto tempo sozinha, comecei a entender que eu não era como os outros meninos da minha idade, mas não queria aceitar isso. Na minha pré-adolescência, eu passei a reproduzir tudo o que meu primo Guilherme fazia. Guilherme era o menino que os meninos da rua respeitavam e as meninas desejavam. Eu só estava tentando ser eu mesma, mas aquilo não era quem eu era.

Na escola, comecei a ler e estudar muito. Era a CDF e me destacava sendo uma pessoa inteligente; os colegas gostavam muito disso. Acho que internalizei esse pensamento, porque meus pais falavam quase todos os dias que não tínhamos dinheiro, a única herança que eu teria era a educação. Depois de um tempo, inclusive, percebi que as pessoas me usavam e, por isso, quis me tornar a ‘Giovanna Debochada’, que era engraçadinha, caricata, o chaveirinho das amigas.

Giovanna Heliodoro — Foto: Reprodução
Giovanna Heliodoro — Foto: Reprodução

Prazer, Giovanna

Eu sempre tive trauma de espelho, nunca gostei. Era até por uma questão tradicional em Minas Gerais, que cobrimos qualquer objeto que reflete imagem quando está tovejando, e criei esse medo. Entendi que o meu reflexo era uma possibilidade a partir do momento que entrei pro teatro. Lá eu podia ser uma princesa ou uma árvore, e era mágico para mim.

Comecei a me montar como drag quando criei uma personagem chamada Aláfia Sanchez. Rolava aos aos fins de semana, já que eu não podia fazê-lo na casa da minha mãe; ela nem me deixava usar roupas femininas. Eu pintava as unhas, colocava simbologias femininas e me sentia muito confortável com aquilo que eu não podia ser.

Tem um episódio muito marcante, que foi quando eu entendi que não era uma criança como as outras. Eu era muito pequena e minha avó estava cuidando de mim. Enquanto minha mãe foi ao médico, eu fiquei no guarda-roupas dela. Vesti várias roupas, amarrei a toalha na cabeça e aí minha mãe apareceu. Eu chorei, ela chorou e me fez jurar que eu nunca mais faria aquilo, nunca mais usaria roupa de mulher.

Ali eu me bloqueei, mas no teatro eu tive essa possibilidade de falar ‘posso voltar a ser assim’. Então, usava as aulas como desculpa para pegar as roupas da minha mãe. Eu usei a Aláfia para entender que eu era a Giovanna. Até que chegou ao ponto que eu já não me desmontava mais.

Entre as idas e vindas dessa jornada, foi só na faculdade de História que eu me assumi para o mundo e para a minha família. Eu falei em um tom de ‘estou na faculdade, estou estudando, faço estágio, mas eu não sou um menino, nunca fui um menino. Agora que eu cheguei nessa posição, vocês têm que me respeitar’. E é assim até hoje. Acho que eles entendem algo como ‘ela é trans, mas ela é estudada’.

Giovanna Heliodoro — Foto: Reprodução
Giovanna Heliodoro — Foto: Reprodução

É engraçado pensar que eu sempre tive muito medo de travesti, medo mesmo. Na região em que eu morava em Belo Horizonte, tinham muitos travestis. Eu confesso que só fui entender sobre a possibilidade de ser quem eu era, quando eu descobri o que era ser uma pessoa trans. Nem isso eu sabia e não era uma pauta comum. Eu lembro de pesquisar e pensar ‘isso tem muito a ver comigo, talvez eu seja isso’.

Hoje, eu me olho no espelho e não sinto medo. Tenho a certeza de que, se olhar para trás e lembrar daquela criancinha, que não sabia o que ela era e se excluía do universo para poder tentar se sentir mais confortável, sinto muito orgulho.

Eu me orgulho de quando me trancava no quarto para poder ouvir Kelly Key e Beyoncé, porque eu tinha medo do que as pessoas achariam.

Agora eu posso dançar, cantar, fazer o que eu quiser. Se fosse dizer algo para minha criança interior é: você pode ser você e está tudo bem em ser do jeito que é.

Eu me sinto confortável com o corpo que apresento para o mundo, não só fisicamente, mas enquanto pensamento. Descobri que a minha beleza está na minha essência. Desde o início, tudo estava na minha essência, não na minha cirurgia nem nos hormônios que eu tomei. Eu achei que, para ser mulher, teria que reproduzir tudo sobre uma mulher que nasceu com vagina. Mas, independentemente da forma com que eu me apresento para o mundo, tenho uma essência feminina e me encontro através dela.

*Em depoimento à jornalista Carolina Merino

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