Mais uma vez, parecemos confiar na Justiça criminal como panaceia para resolver os problemas sociais. A bola da vez é o coronavírus.
Os ministérios da Justiça e da Saúde editaram uma portaria conjunta indicando que o descumprimento de eventuais determinações sanitárias de prevenção à Covid-19 sujeitará os infratores a responsabilização civil, administrativa e criminal. Os ministérios mencionam os crimes de desobediência e infração de medida sanitária preventiva, que poderiam acontecer, por exemplo, quando uma autoridade der uma ordem para a pessoa sair de um local de permanência proibida, ou, ainda, quando alguém deixar de cumprir uma determinação de manter-se em casa em determinado horário.
A pergunta que fica é como será possível assegurar o cumprimento dessas medidas. Como a ideia é evitar a transmissão da doença e não prender mais pessoas, dizer que determinada conduta é crime é insuficiente e apenas submete mais indivíduos e a população carcerária a riscos de contaminação.
Os ministérios parecem ter notado esse problema e, desde logo, estabeleceram que a polícia não submeterá à prisão o agente que, flagrado, passe a cumprir as medidas sanitárias vigentes e assine um termo se comprometendo a comparecer aos atos do processo. Ressalvando a possível polêmica jurídica sobre se é legal uma portaria regulamentar normas processuais, a necessidade de fiscalizar o eventual descumprimento remanesce. Ameaçar alguém de prisão, na reincidência, resolverá o problema? Será que existem respostas, fora do direito penal, para incentivar as pessoas a colaborar com a coletividade?
Artigo publicado nesta Folha indica caminhos de como Taiwan foi bem-sucedida em lidar com o coronavírus. O texto menciona o controle de preços de produtos de higiene, medidas de assistência social e monitoramento da localização dos possíveis infectados por aplicativo de telefone celular. No descumprimento, é aplicada multa. Se o Ministério da Saúde já tem um aplicativo para divulgar notícias a respeito do assunto, não será o momento de pensar em soluções jurídicas e tecnológicas para implantar esse monitoramento?
Se não deu certo quando o ex-presidente Rodrigues Alves (1848-1919) quis medidas de prevenção sanitária por meio da polícia, muitas vidas, por outro lado, foram salvas por mudanças de hábitos que não dependeram da prisão de ninguém. Motoristas passaram a dirigir com cinto de segurança por conta do aumento na fiscalização. A maior frequência das blitze mudou um comportamento de pessoas que passaram a não conduzir automóveis alcoolizados, muito embora há muito essa conduta já fosse criminalizada.
Embora a autora e o autor ressalvem que para o controle da pandemia não basta transplantar soluções estrangeiras, é possível perceber que a aposta em efeitos dissuasórios decorrentes da criminalização é míope. Ela obscurece várias soluções igualmente ou mais eficazes para incentivar o comportamento colaborativo. Já passou da hora de desconfiar da sempre presente ideia de que a edição de novos crimes ou de ameaças de prisão vá produzir alguma mudança concreta no comportamento das pessoas.
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