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Guilherme F. C. F. de Almeida

A lei que proíbe a pesquisa

Pensada para áreas da saúde, ela prejudica estudos em ciências socias

Guilherme F. C. F. de Almeida

Mestre e doutor em direito (PUC-Rio), é professor do Insper

Em 29 de maio de 2024, foi publicada a lei 14.874/24, que "dispõe sobre a pesquisa com seres humanos (...)". A lei, inicialmente proposta para regular somente pesquisas clínicas, foi ampliada de modo a abranger "pesquisas com seres humanos em todas as áreas do conhecimento, no que couber, e conforme regulamento".

Contudo, a mudança de escopo não se refletiu no conteúdo da lei, que reproduz a linguagem e o teor de regulações pensadas para as ciências da saúde, incluindo capítulos que tratam de temas como o armazenamento de material biológico humano. Certamente por conta desse foco, a lei estabeleceu, em seu art. 20, que " É vedada a remuneração do participante ou a concessão de qualquer tipo de vantagem por sua participação em pesquisa", prevendo um conjunto fechado de exceções, todas relacionadas a ensaios clínicos.

Ao regular a pesquisa em todas as áreas pensando nas ciências da saúde, o legislador proibiu boa parte da ciência social contemporânea. Foi compensando participantes financeiramente por seu tempo que pesquisadores encontraram evidências de que o uso de redes sociais leva à polarização política, de que atribuições de intencionalidade são afetadas por juízos morais, de que seres humanos não tomam decisões econômicas de modo racional, entre vários outros fenômenos de interesse para as ciências sociais.

Nessas pesquisas não há administração de medicação ou intervenção médica e, com frequência, não são sequer coletados dados pessoais identificáveis. Os riscos são mínimos e os benefícios são claros.

A partir da entrada em vigor da lei, as pesquisas mencionadas acima não poderão mais ser desenvolvidas no Brasil. A pesquisa nacional, já em desvantagem financeira em relação àquela produzida no Norte Global, perde acesso a um método válido, seguro e altamente efetivo. Quem quiser contribuir para a comunidade científica internacional no ritmo e com a qualidade de seus colegas estrangeiros provavelmente terá que buscar posições em universidades fora do país.

Felizmente, a solução não é difícil. O parágrafo único do artigo 63 especificou o papel do regulamento, que "disporá sobre eventuais especificidades das pesquisas em ciências humanas e sociais, com vistas ao progresso da ciência e à devida aplicação dessa lei".

Cabe agora ao governo estabelecer regras que não proíbam grande parte das ciências sociais. O ideal seria que pesquisas de baixo risco (como aquelas que não envolvem interferência no corpo humano ou exposição a material capaz de causar dano psicológico significativo) fossem excepcionadas do escopo da lei, seguindo um conjunto de regras diferentes, inclusive quanto à compensação financeira de participantes.

Enquanto a regulação não vier, segue a ameaça de que certos tipos importantes de pesquisa serão proibidos no Brasil.

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