The Winter is coming?
Rui Costa Pereira Advogado
13 de dezembro de 2023

The Winter is coming?

Com o aproximar deste inverno eleitoral e diante de uma maré de casos que abalaram as próprias instituições políticas, a vozearia populista judiciária já deu à costa. Com um desconforto tão claro sobre os temas de justiça, esperemos que a mesma justiça não seja a moeda de troca de quaisquer acordos ou compromissos mais à direita.

A memória do passado é das coisas de maior importância que me foram incutidas ainda em criança para melhor perceber determinados imperativos morais, de dever ser, de bem agir, o que queiramos chamar. No fundo, perceber o porquê de determinados acontecimentos graves ou simplesmente maus permite não apenas evitar que se repitam, como também moldar e definir um determinado dever ser que, independentemente de orientações políticas, filosóficas, religiosas, ideológicas, etc., impele qualquer um a agir bem. Parece simplista, mas é apenas simples.

Faço parte do género de jurista, de advogado, para quem, numa fração de segundo, a resposta ao dilema de ver um culpado em liberdade ou um inocente na prisão é, repetida ao infinito, todos os culpados em liberdade, se isso representar que nenhum inocente se vê privado da sua liberdade. A essência de um Estado que se diz (e acho que ainda se quer) assente na proteção da dignidade humana é assim afirmada na garantia de que temos um sono mais descansado na certeza de que um inocente não é injustiçado, do que na possibilidade de um culpado estar e ser livre entre todos nós.

Lembro-me e reflito cada vez mais sobre isto numa altura em que ecoa um discurso cada vez mais recorrente no meio judiciário, embrenhado numa suposta vox populi papagueada por alguns magistrados e procuradores (que, aqui e ali, já mereceu o abraço ou o colo de alguns advogados), que sob a máscara do combate à corrupção (essa coisa tão sexy de embandeirar) e da defesa da comunidade, esconde a defesa de interesses egoísticos, nos antípodas do altruísmo que apregoam. Terrorismo processual e excesso de garantias de defesa são as traves-mestras desse discurso. Um discurso que anda invariavelmente associado à ideia de que o meio político ou das grandes empresas se acham infestados de fenómenos de corrupção. Um discurso tão convenientemente propalado por operadores judiciários sobretudo desde que juízes e procuradores se viram envolvidos nesse tipo de fenómenos. Tudo sempre dissertado na base do achismo, do cheiro ou, para não parecer tão mal, nos ditos índices de perceção da corrupção. A objetividade, essa nem ver. Um discurso que é também cíclico (ou como as marés): nas alturas em que mais está em crise a competência de alguns operadores judiciários, onde se expõem as falhas da investigação e os seus enviesamentos, quando soçobram as grandes teses acusatórias, lá voltam a emergir o excesso de garantias e o terrorismo processual como justificação.

Voluntária ou inadvertidamente, este discurso tem contribuído de forma relevante ao crescimento de partidos como o Chega. Um partido cuja matriz ideológica assenta no populismo, no dito descontentamento popular e que depende da hábil retórica do seu Duce, que de modo eficaz cavalga na matéria-prima fornecida pelos ecos extremados por aqueles que tanto têm investido na profusão do descrédito das instituições políticas e na necessidade de reforço da eficácia da ação penal. Sempre em detrimento da preservação das garantias de defesa dos arguidos.

Como o decoro dessa magistratura ainda não se aniquilou totalmente na desgraça da violação da reserva e do recato que lhe era exigível, (ainda) falha no louvor das soluções extremadas para a justiça que partidos como o Chega não escondem pretender instituir. A título exemplificativo, no projeto de revisão constitucional que apresentou no Parlamento, o Chega quis abrir a porta à restrição do direito fundamental à privacidade, à garantia efetiva contra a obtenção abusiva de informações privadas, à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, sempre que essa restrição fosse motivada por "razões de segurança pública", fazendo corar qualquer saudosista da polícia internacional e de defesa do Estado; defendeu a permissão constitucional à prisão perpétua; a inversão do ónus de prova nos processos criminais respeitantes a titulares de cargos públicos; talvez inspirando-se em Joseph Goebbels, defendeu a estatização dos meios de comunicação social do setor público, por via da criação de "conselhos de informação, a integrar designadamente por representantes indicados pelos partidos políticos com assento na Assembleia da República"; a limitação da nomeação do Primeiro-Ministro apenas a "indivíduos portadores de nacionalidade portuguesa originária"; finalmente, sustentou a extinção de todos os limites materiais de revisão constitucional – o mesmo é dizer, permitir que um dia o Parlamento pudesse, por exemplo, alterar a forma republicana de governo, abolir a separação entre o Estado e as Igrejas, extinguir o reconhecimento de direitos fundamentais como o direito à vida, cessar a separação de poderes ou a independência dos tribunais. Voluntária ou inadvertidamente, é a isto que os populistas do judiciário estão a dar palco.

Ora, a partir das últimas sondagens, não surpreende a hipótese do Chega triplicar o número de deputados eleitos, tornando-se assim, e mesmo que só matematicamente, aliciante às demais forças partidárias da direita como um instrumento que permita sustentar no Parlamento um novo Governo ou evitar uma nova geringonça. E tudo a acontecer ao mesmo tempo que é patente a deterioração moral e ética das instituições políticas e da administração pública, assim como a crescente alergia que provocam os lugares públicos e políticos aos melhores quadros, fruto de uma preocupante confusão entre o que é (e deve ser) o escrutínio dos agentes públicos do mero voyeurismo, mediatismo e do agigantar de algumas questiúnculas a bem de mais uma acha para a fogueira do populismo, esse moralmente invertebrado coletor de votos.

O passado recente mostra-nos como os grandes partidos do regime (PS e PSD) estão absolutamente paralisados na conceção e implementação de reformas, mais ou menos profundas, que diversas áreas da máquina da justiça carecem. Não é uma coisa só de agora. "Ao mexer na justiça só estão a querer proteger os seus". Foi o que se disse em 2007 quando se alteraram as regras do processo penal sobre o segredo de justiça e as escutas telefónicas, enquanto pairava o processo Casa Pia. Pouco importa se justa se injustamente. É sobretudo desde aí que o medo desse rótulo e dessa acusação fizeram com que PS e PSD se não atrevessem a mexidas de fundo no Processo Penal.

Com o aproximar deste inverno eleitoral e diante de uma maré de casos que abalaram as próprias instituições políticas, a vozearia populista judiciária já deu à costa. Com um desconforto tão claro sobre os temas de justiça, esperemos que a mesma justiça não seja a moeda de troca de quaisquer acordos ou compromissos mais à direita. Mas já agora, que também não legitime alterações mais ou menos cirúrgicas à lei, a reboque apenas de casos e de processos pendentes. Sem nenhum Jon Snow ou Arya Stark para nos salvarem, é caso para dizer: the night is dark and full of terrors… 

Rui Costa Pereira, Advogado penalista e Associado Coordenador da MFA Legal

Mais crónicas do autor
06 de julho

Eu escuto, tu escutas, ele escuta, nós escutamos, vós escutais, mas eles não escutam

É apenas na fase de investigação criminal que alguém pode ser escutado; a escuta só pode ser autorizada se existirem razões para a ter como indispensável para apurar a verdade ou que, sem a mesma, esta não seria alcançável.

01 de junho

O aproximar da meia-idade da justiça processual penal: breve contributo para refletir sobre pontuais correções legais

Atrevo-me a pensar nalgumas expressões do princípio do contraditório que, porventura, não viria nenhum mal ao mundo se tivessem os seus dias contados

04 de maio

A Procuradora-Geral da República no Parlamento

O SMMP conseguiu sozinho sobrepor-se aos poderes do Estado, sobrepor-se à própria PGR, para os quais era inquestionável a inexistência de uma ideia de autonomia interna dos magistrados do MP, que lhes assegurasse um exercício da ação penal absolutamente isento de controlo hierárquico.

06 de abril

Pela dignidade do cargo de Primeiro-Ministro

Pressupor que o julgamento do Primeiro-Ministro pelo STJ exige a permanência no cargo é, então, aceitar como absolutamente utópica a aplicação prática desta regra.

02 de março

Os programas eleitorais para a justiça (em particular, a penal): possíveis consensos e algumas questões laterais

A circunstância de os programas do PS e da AD serem os únicos que se referem diretamente ao propósito de acabar com os megaprocessos e de serem também os únicos a expressar a intenção de "clarificar" a estrutura do Ministério Público, deverá ser lido como uma intenção de alteração estrutural ou são propostas circunstanciais?

Mostrar mais crónicas