Para o processo penal português, o muito atribulado verão de 2007 vem sendo essencialmente destacado pelas alterações profundas às regras sobre a publicidade do processo, sobre o regime de segredo de justiça, assim como sobre o regime das escutas. Muita tinta correu para se dizer que eram alterações motivadas pelos impactos que o chamado Processo Casa Pia estava a ter ou podia ter sobre o Partido Socialista e alguns dos seus militantes / membros. A verdade é que a uma maioria absoluta conquistada nas eleições de 2005, seguiu-se uma maioria relativa em que o PS, apesar de ter vencido (novamente) as eleições de 2009, perdeu mais de 20 lugares no parlamento.
Com uma maioria absoluta a terminar envolta em sucessivas polémicas e investigações criminais, públicas e publicitadas e um permanente cruzamento entre a política e a justiça, apesar de estarmos no inverno, muito do calor de 2007 tem-me vindo à memória, nessa que foi a última reforma de fundo da lei processual penal portuguesa. Com a mesma lei com que se tornou a publicidade do processo e da investigação criminal a regra e o segredo a exceção – algo que a prática continua a oferecer muita resistência, sobretudo num certo tipo de processos –, tornou-se também incontestável a admissibilidade de uma denúncia anónima dar lugar à abertura de uma investigação criminal e de um processo. Volvidas quase duas décadas, nada na letra da lei mudou. Mas será que aqui a prática acompanhou a lei?
A denúncia anónima só pode determinar a abertura de inquérito se dela se retirarem indícios da prática de crime ou se a própria denúncia anónima constituir crime. Sem tirar nem pôr, foi isto que se tornou lei em 2007 e que não mudou. E a prática também não – pelo menos aquela que eu tenho experienciado e que adoraria que fosse outra. O problema está no afastamento abissal entre o que a lei permite e o que a prática tem consentido sem grande resistência judiciária.
Na Polícia Judiciária, multiplicaram-se os inquéritos criminais iniciados com as designadas informações de serviço da lavra dos seus inspetores, coordenadores ou chefias, que apelando às fontes desta polícia a coberto do indispensável anonimato, apresentam um conjunto de considerações e conclusões sobre uma alegada atividade criminosa e os seus ditos suspeitos, sem que se diga ou distinga concretamente o que é transmissão das ditas fontes do que é a aquisição subsequente de conhecimentos feita diretamente pela polícia, ofuscando-se e substituindo o anonimato inicial pelas assinaturas dos agentes policiais e das autoridades de polícia criminal que, segundo afirmam, recebem as denúncias que após reencaminham ao Ministério Público (MP), com proposta de instauração formal de uma investigação e de um inquérito criminal. Dessa feita, em vez de receber de um qualquer anónimo, é o Estado que recebe do próprio Estado a denúncia de um crime. Como não investigar?
Já no MP, capturado pela mediatização da justiça e, cada vez mais, pela politização da justiça, a cada denúncia mais ou menos anónima recebida dá-se lugar à abertura formal de um inquérito. Com medo da própria sombra, tudo dá lugar à abertura de um inquérito. Pouco importa se das denúncias anónimas recebidas se extraem factos indiciários ou, por oposição, meras conclusões ou presunções; é irrelevante se dessas denúncias não se extraem à partida, com mínima solidez, linhas de investigação a seguir e provas a recolher. Abra-se o inquérito. Depois, logo se vê. Se não se descobrir isso, com certeza que se irá descobrir outra coisa qualquer. Há todo o tempo do mundo para investigar, até porque se cristalizou a ideia de que os prazos – para o MP, pelo menos – são só para orientar, não são para cumprir. Ainda para mais, a denúncia além de ter sido enviada ao MP, foi também para a pessoa A, para a televisão B e para o jornal C. É melhor mesmo abrir inquérito, antes que alguém se lembre de ir ver o que se fez ou se deixou de fazer. Bom, e se o que chega à mesa é uma informação de serviço da Polícia Judiciária, quem sou eu, MP, para questionar ou sindicar o que lá vem dito? Só pode ser fiável.
O problema é quando não é. E às vezes, não sei se muitas, se poucas, não é. E, precisamente, porque às vezes pode não ser, o MP não deve abrir inquéritos por tudo e por nada. Muito menos quando o que motiva isso são denúncias ou fontes anónimas. Sempre ávido a apregoar o princípio da legalidade para justificar a instauração de inquéritos e a sua publicitação, o MP apresenta-se, paradoxalmente e em simultâneo, o maior promotor da violação da legalidade, quando decide instaurar inquéritos criminais à margem de pressupostos legalmente estabelecidos há muito, partindo apenas do diz que disse anónimo e da forma mais ou menos persuasiva como determinadas conclusões antecedem os supostos indícios que as deviam sustentar.
Se o que tanto preocupa o MP para que atue por tudo e por nada é o receio da leitura mediática das suas ações e das suas omissões, não se sirva da legalidade só quando lhe convém. Não é para isso que serve o princípio da oportunidade. Oportunidade não é sinónimo de oportunismo. E se há momento em que o chavão à política o que é da política, à justiça o que é da justiça faz o mínimo ou algum sentido, é o momento em que esses anónimos e as suas denúncias vão bater à porta do MP. É aí que, cumprindo a lei, cabe ao MP separar o trigo do joio. E se da denúncia não se retiram indícios de crime, a lei só aponta uma solução, a destruição da denúncia, assim se deixando à política o que é da política, à justiça o que é da justiça.
Rui Costa Pereira, Advogado penalista e Associado Coordenador da MFA Legal
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