O aproximar da meia-idade da justiça processual penal: breve contributo para refletir sobre pontuais correções legais
Rui Costa Pereira Advogado
01 de junho

O aproximar da meia-idade da justiça processual penal: breve contributo para refletir sobre pontuais correções legais

Atrevo-me a pensar nalgumas expressões do princípio do contraditório que, porventura, não viria nenhum mal ao mundo se tivessem os seus dias contados

No ano em que atingiu os 37 anos de existência, o Código de Processo Penal português (CPP) aproxima-se a passos largos da sua meia-idade, altura ideal, diria, de se submeter a um check-up e, talvez, de procurar cortar algumas gorduras, mais não fosse em jeito de tentativa de evitar qualquer coisa mais próxima das chamadas crises da meia-idade.

O Governo em funções e, em particular, o Ministério da Justiça, tem manifestado e demonstrado um propósito de pacificar todo o setor, num diálogo constante com os seus agentes, mas, sobretudo, evidenciando a consciência de que pensar em reformar A Justiça é algo que tem tanto de precipitado como de ilógico sem que antes se avalie, identifique e se corrija o que está mal. Tarefa(s) que, por si só, parece(m) inatingível(eis) no tempo de uma legislatura, quando pensamos no peso e na dimensão de alguns desses problemas há demasiado tempo órfãos de uma resposta e de uma reparação efetivas:

- Começar por atender às mais que legítimas exigências dos funcionários judiciais é o imperativo maior, pois que sem eles não há aparelho judiciário que funcione, em termos de se poder afirmar garantido para todos os cidadãos o direito fundamental de acederem à justiça e de nela encontrarem uma tutela efetiva e útil (sobretudo em tempo) para todos os seus demais direitos, liberdades e garantias;

- Dotar as magistraturas judiciais e do Ministério Público de efetiva autonomia financeira e de condições orçamentais mínimas para que estas, com inteira autonomia e autorresponsabilização, organizem, giram e disciplinem o exercício das suas atribuições e competências, para que o possam fazer com mínimos de dignidade;

- Acelerar o processo de digitalização do funcionamento da justiça, apostando cada vez mais em ferramentas operativas desenvolvidas no contexto do desenvolvimento crescente da inteligência artificial, ao mesmo tempo que adaptam e corrigem procedimentos e processos obsoletos à realidade do tempo presente (basta pensar, por exemplo, nas notificações editais previstas no processo penal, que continuam a privilegiar que esta se faça, primeiro, "mediante a afixação de um edital na porta da última residência do notificando e outro nos lugares para o efeito destinados pela respetiva junta de freguesia" e, só após, com recurso a meios digitais, ou da inexistência da regra de notificações eletrónicas nas fases anteriores do julgamento no processo penal);

- Atualizar as tabelas de honorários dos advogados inscritos no sistema de acesso ao direito para valores que dignifiquem o exercício do mandato forense, mas que também atraiam para esse sistema todos os advogados, para que este não seja um modelo em que o patrocínio forense seja apenas feito por advogados que exerçam com dependência exclusiva do sistema, mas por todos, na certeza que é na independência que emerge a otimização do serviço a prestar aos cidadãos.

E o que há a emendar neste aproximar da meia-idade do CPP de modo a evitar uma crise mais ou menos trágica?

Começando por recordar que o Parlamento que autorizou o Governo a edificar o CPP pretendeu a "[c]onstrução de um sistema processual que permita alcançar, na máxima medida possível e no mais curto prazo, as finalidades de realização da justiça, de preservação dos direitos fundamentais das pessoas e de paz social" e a "[s]implificação, desburocratização e aceleração da tramitação processual compatíveis com a realização das finalidades assinaladas, evitando-se todavia a criação de novos formalismos inúteis", volvidos 37 anos, tais metas apresentam-se mais atuais do que nunca.

Não caindo nunca num discurso populista, tão falso e dissociado da realidade e da evolução dos tempos, como é o do apregoado (por alguns) excesso de garantias – havendo, aqui e ali, isso sim, abuso do exercício de algumas garantias –, atrevo-me a pensar nalgumas expressões do princípio do contraditório que, porventura, não viria nenhum mal ao mundo se tivessem os seus dias contados, ousando dar algumas pistas para procurar acelerar efetivamente a marcha do processo penal:

- No seu modelo inicial, o CPP previa como prazo supletivo não os atuais 10 dias, mas antes, 5 dias; atento o desenvolvimento tecnológico e digital dos últimos quase 40 anos, não me chocaria um retorno ao prazo supletivo de 5 dias – pensando nos requerimentos extraordinariamente complexos que se fazem em 3 dias, para arguir irregularidades processuais, vejo como possível um modelo em que questões substancialmente menos complexas se exerçam e se pratiquem em tempo (ainda assim) superior;

- Quando alguém requer a sua constituição como assistente, a lei reconhece ao Ministério Público e ao arguido a possibilidade de se pronunciarem sobre esse requerimento. À falta de indicação expressa da lei de qual o prazo para tanto, aplica-se o prazo supletivo de 10 dias. A prática tem-me demonstrado que mesmo quando raramente é exercido este contraditório, os juízes tendem a tratar a constituição como assistente de jeito tabelar. Transferindo o contraditório sobre a constituição como assistente para um eventual recurso da decisão que o admita, desoneraríamos o processo de mais notificações (pense-se na quantidade a fazer em processos com dezenas de arguidos) e de tempo as mais das vezes desnecessário;

- Se um sujeito processual, por justo impedimento, tiver de praticar um ato processual para lá do prazo legalmente fixado para o efeito, antes de decidir conceder essa possibilidade, a autoridade judiciária deve ouvir os demais sujeitos processuais interessados, o que pode ser feito, também, no prazo de 10 dias, novamente por falta de indicação expressa na lei do prazo para tanto. Também aqui, e pelas mesmas razões anteriores, seria de transferir o contraditório sobre a decisão de extensão do prazo para um eventual recurso da decisão que a conceda;

- Se o visado de uma apreensão requerer ao juiz o seu levantamento, a lei prevê a obrigação de o Ministério Público ser notificado para, em 10 dias, deduzir oposição. Sendo certo que a parte substancial das apreensões feitas no processo penal são promovidas pelo Ministério Público, este terá / deverá ter tido, nesse momento, a capacidade de justificar a apreensão. Transferir o contraditório do Ministério Público para o eventual recurso da decisão que levante a apreensão é mecanismo que contribui para o acelerar da decisão definitiva sobre a apreensão;

- Os documentos e os pareceres técnicos e de jurisconsultos, por exemplo, devem ser juntos, o mais tardar, até ao encerramento da audiência. Se foram apresentados no seu decurso, a lei reconhece o direito de se contraditar a apresentação desses elementos, num limite até 8 dias. O exercício deste contraditório assume importância na organização da defesa dos arguidos, que não deverão, à partida, ser surpreendidos a meio do julgamento com a apresentação de meios de prova pela acusação que, também à partida, poderiam/deveriam ter sido apresentados em momento anterior. A prática, porém, demonstra, além de outras, duas coisas: seja qual for o exercício de contraditório feito, se o tribunal considerar que o elemento apresentado é relevante para descoberta da verdade, o mesmo será sempre junto; muitas vezes este contraditório é abusivamente utilizado pelas defesas, e não pela acusação, como instrumento de protelar o encerramento da audiência. A pensar essencialmente nestas situações, transferir o contraditório sobre a decisão de admissão do documento/parecer apresentado para um eventual recurso da decisão final de mérito do processo, representaria uma correção pontual no processo que, também, a meu ver, contribuiria relevantemente para impedir práticas abusivas. No limite, mantendo-se a contraditoriedade, assegurar que a apresentação extemporânea de documentos no decurso do julgamento não tenha um efeito suspensivo da sua marcha;

- Por fim, todo e qualquer recurso apresentado no processo penal prevê a possibilidade de os sujeitos processuais afetados pela sua interposição responderem, no mesmo prazo em que o recurso é apresentado, àquilo que do mesmo for feito constar. No entanto, em 1998, acrescentou-se à marcha dos recursos um instituto, salvo melhor opinião, as mais das vezes inútil e tantas vezes não relevado por quem, no final, cabe decidir o recurso: o parecer do Ministério Público, após a subida do recurso ao tribunal superior, ao qual se reconhece o direito de resposta em 10 dias. O parecer é instituto que deveria ser abolido, na medida em que este, muito raramente, aporta ao processo algo verdadeiramente novo em relação ao que nele consta até esse momento, sendo um fator de relevante entorpecimento na marcha processual, já que nem sempre surge logo após a distribuição do recurso (como deveria), as mais das vezes constitui uma mera repetição do que é dito pelo magistrado interveniente no tribunal anterior (e portanto, um ato inútil) e em tantas outras ocasiões não é imediatamente notificado para o exercício da resposta que acaba por, tantas vezes, também não ser apresentada (acrescentando mais e muitos dias à marcha processual).

Estas são algumas situações onde, só com as mesmas, pelo menos, mais de 53 dias eram retirados à marcha do processo, afetando tanto a acusação como a defesa, sem que daí se possa falar num atentado às garantias de defesa. São, aliás, ideias que partem de quem faz vida ajudar os outros a exercerem essas mesmas garantias. Há, com certeza, muitas outras situações a identificar. Sem falsos dramatismos ou excessivos e emotivos rasgar de vestes à mínima sugestão de alteração do estado de coisas existente, é tempo de todos os operadores da justiça refletirem seriamente a bem do interesse de todos e não de apenas cada um por si.

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