Os programas eleitorais para a justiça (em particular, a penal): possíveis consensos e algumas questões laterais
Rui Costa Pereira Advogado
02 de março

Os programas eleitorais para a justiça (em particular, a penal): possíveis consensos e algumas questões laterais

A circunstância de os programas do PS e da AD serem os únicos que se referem diretamente ao propósito de acabar com os megaprocessos e de serem também os únicos a expressar a intenção de "clarificar" a estrutura do Ministério Público, deverá ser lido como uma intenção de alteração estrutural ou são propostas circunstanciais?

Há dois textos – já depois da Operação Influencer, mas antes do Processo da Madeira – escrevia que "[o] passado recente mostra-nos como os grandes partidos do regime (PS e PSD) estão absolutamente paralisados na conceção e implementação de reformas, mais ou menos profundas, que diversas áreas da máquina da justiça carecem". A partir daí, passava para a crítica para a incapacidade de se fazerem essas reformas e, depois, para a expressão do receio da influência negativa dos casos judiciais nas alterações que pudessem vir a ser preconizadas. Agora que são conhecidos os programas eleitorais de todos os partidos com assento parlamentar e porque sou daqueles que preferem sempre encarar o copo meio-cheio, venho manifestar o meu otimismo quanto a alguns aspetos. Quanto a outros, normais interrogações.

E há mais que um tema – porque são dois … – onde todos os partidos e os programas que apresentaram parecem, em certa medida, convergir: por um lado, a carreira dos oficiais de justiça, por outro lado, o regime de acesso ao direito, temas onde todos falam na necessidade de mudanças, apesar de não coincidirem nas propostas concretas.

Relativamente ao primeiro desses temas,

  • o PS afirma que irá "[r]ever e valorizar as carreiras dos oficiais de Justiça, (…) garantir a adequada formação inicial e valorizar os respetivos conteúdos funcionais";
  • a AD, num jeito muito próximo, afirma pretender "[e]ncetar um processo de revisão e valorização das carreiras profissionais dos Oficiais de Justiça";
  • o Chega, referindo-se a medidas concretas, propõe-se, por exemplo, a "[p]reencher os lugares vagos na carreira dos oficiais de justiça", "[p]roceder ao recrutamento de emergência de 300 efectivos (…) para as comarcas com maiores carências", concretizar a "[r]evalorização remuneratória de todo o pessoal da carreira de funcionário judicial" e, também, "[p]agar as horas extraordinárias";
  • a Iniciativa Liberal, de modo próximo aos programas do PS e da AD, refere, essencialmente, que "é importante garantir que os oficiais de justiça tenham a sua carreira revista, implementando a qualificação dos funcionários judiciais como uma prioridade do sistema judicial";
  • o PCP propõe "o reconhecimento aos funcionários de justiça do seu trabalho e do papel decisivo no funcionamento da Justiça, dotando a classe de um estatuto profissional digno, incluindo em termos remuneratórios, de condições de trabalho e de progressão na carreira";
  • o Bloco de Esquerda, também em termos mais concretizáveis e de certo modo próximos do Chega, propõe "a inclusão do suplemento de recuperação processual nos 14 meses de vencimento, com efeitos a 1 de janeiro de 2021; a abertura de concursos para acesso a todas as categorias; o preenchimento integral dos lugares vagos e da regulamentação do acesso ao regime de pré-aposentação";
  • o PAN apresenta uma proposta praticamente coincidente à do Bloco de Esquerda, propondo, também, "a transição de todos/as os/as oficiais de justiça para carreira de nível 3" e "a implementação de um regime específico de avaliação";
  • E o Livre defende a revisão "[d]os regimes salariais e [d]a progressão nas carreiras dos funcionários de justiça".

Ou seja, ao nível deste tema, PS, AD, Iniciativa Liberal, PCP e Livre assumem propostas de sentido mais genérico e programático, enquanto Chega, Bloco de Esquerda e PAN apresentam medidas concretas para a melhoria das condições destes trabalhadores.

Relativamente ao tema do acesso ao direito,

  • o PS refere o propósito de "rever o modelo de acesso ao direito e à justiça, seja ao nível da instituição de um sistema de apoio judiciário abrangente e eficaz nas suas diversas modalidades mais, seja ao nível do valor das custas judiciais";
  • a AD, de modo mais cirúrgico, compromete-se a "[p]romover a reforma do Regulamento das Custas Judiciais", o que parece começar pela própria designação do diploma;
  • as propostas do Chega passam por "[a]ctualizar a tabela de honorários do acesso ao Direito, assegurar o pagamento de despesas no âmbito da representação de beneficiários deste sistema e ainda um sistema de pagamento progressivo", por "[r]ever a Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais, ampliando a sua abrangência e, assim, assegurando maior número de beneficiários" e por "[r]ever Regulamento das Custas Processuais, designadamente as tabelas anexas, no sentido tornar a justiça mais acessível";
  • a Iniciativa Liberal também se propõe a rever o Regulamento das Custas Processuais, adequando-o à "realidade financeira de Portugal e dos portugueses", apresentando também no seu programa a pretensão de rever o Sistema de Acesso ao Direito, "nomeadamente os limiares máximos de acesso a modalidades de apoio judiciário;
  • o PCP centra as suas propostas no papel dos advogados inscritos no Sistema de Acesso ao Direito, defendendo, em destaque, "o aumento e actualização anual do valor das remunerações devidas aos advogados no âmbito do acesso ao direito e apoio judiciário", ao mesmo tempo em que, porém, equaciona a "criação de um serviço público para a defesa oficiosa e o patrocínio judiciário", algo que, amiúde, é tido como incompatível com aquele primeiro vetor;
  • o Bloco de Esquerda também propõe atualizar a tabela de honorários dos profissionais inscritos no Sistema de Acesso ao Direito, mas destaca-se ao defender a criação de um (novo) "Serviço Nacional de Justiça", onde inclui também a redução das taxas de justiça e o alargamento dos critérios de atribuição do apoio judiciário;
  • o PAN foca as suas propostas ao nível das alterações do regime das custas judiciais;
  • E o Livre apresenta uma proposta muito próxima do PCP, propondo-se a melhorar "o Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais, revendo a tabela de honorários de advocacia, instituindo sistemas de pagamento a tempo e horas e implementando um sistema de avaliação do serviço prestados por advogados nomeados. revendo e dignificando o sistema de nomeação dos advogados oficiosos que prestam apoio jurídico aos cidadãos", sem descurar, também, entre outras medidas, a "revisão do Regulamento das Custas Processuais".

Há, portanto, a este nível, um consenso claro na necessidade de se diminuírem os custos burocráticos da justiça, através da diminuição dos valores a pagar a título de custas judiciais, sem prejuízo das flutuações naturais da intensidade de compromisso nesse sentido, ou dos próprios modelos para atingir essa meta.

Estaremos todos, pois, em condições, de exigir aos atores políticos da próxima legislatura, alterações a este nível, quaisquer que sejam.

Apresentados os consensos, deixo alguns aspetos que me parecem merecer destaque:

  • A insistência de muitos dos programas numa medida que há muito vem sendo reclamada – e também prometida – de divulgação generalizada das decisões dos tribunais, incluindo os de primeira instância, com a particularidade de o programa do Livre incluir e ampliar essa divulgação até às decisões de encerramento do inquérito pelo Ministério Público;
  • A circunstância de o programa da AD estar muito próximo de algumas ideias curiosamente defendidas muito mais à sua esquerda, pelo Bloco de Esquerda, PAN e Livre, numa lógica penitenciária mais humanista, de reforço das medidas alternativas à situação de reclusão;
  • Algo que também ocorre ao nível de uma proposta unificação dos Tribunais comuns e dos Tribunais administrativos, sendo claros nesse sentido os programas da AD e do Livre;
  • O chamado recurso de amparo para o Tribunal Constitucional – onde, grosso modo, os cidadãos poderiam passar a poder recorrer diretamente para aquele Tribunal de decisões que considerassem diretamente lesivas dos seus direitos fundamentais – surgir nos programas do PS, Iniciativa Liberal e PAN;
  • A interessante medida incluída no programa da Iniciativa Liberal, de passar a ser permitido o ingresso direto nas magistraturas a juristas de reconhecido mérito, algo que, no quadro atual, só é possível, e num número bastante limitado, ao nível da nomeação de juízes para o Supremo Tribunal de Justiça;
  • A proposta exclusiva do programa da AD, no sentido de ser revisto o regime geral das contraordenações e de serem harmonizados os diversos regimes setoriais, algo que, há muito, agentes desses processos vêm defendendo; e
  • A curiosidade de o Chega estar ao lado do PCP e do Bloco de Esquerda na defesa de um reforço de meios para o DCIAP, ao mesmo tempo que PS e AD nada referem a esse nível.

E com esta última curiosidade, termino também com uma interrogação:

A circunstância de os programas do PS e da AD serem os únicos que se referem diretamente ao propósito de acabar com os megaprocessos e de serem também os únicos a expressar a intenção de "clarificar" a estrutura do Ministério Público, deverá ser lido como uma intenção de alteração estrutural ou são propostas circunstanciais?

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