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Histórias de Amor Moderno: “A minha virgindade foi-se mantendo intacta, mas não creio que Deus aprovasse aquilo que andávamos a fazer”

“O Afonso levantou-me a mão, coisa que nunca antes fizera. E o Jean pôs-se à minha frente, protegendo-me.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: Ivo Lopes Araújo / A Cidade Onde Envelheço
22 de junho de 2024 Maria Olívia Sebastião

"Um brasileiro." É assim que a generalidade das pessoas se referem ao homem que é o meu companheiro. Ando com "um brasileiro", como se não houvesse mais para além dessa dimensão - que é uma dimensão complexa, diga-se, embora venha disfarçada de descrição factual e simples. Quando te dizem que andas com "um brasileiro" é como se te acusassem de qualquer coisa. E ao tirarem o nome à pessoa, ao impedirem-no de aceder à sua identidade específica, estão a dizer-te que andas com um desses brasileiros, um genérico estereotipado cuja imagem guardam na cabeça.

Nem todos se referem assim ao Jean. A minha mãe chama-o pelo nome, "como está o Jean?", pergunta de vez em quando. O meu pai e o meu irmão também não dizem "um brasileiro". Preferem "o brasileiro", como em "então, Marta, o brasileiro hoje não vem?" A minha cunhada, felizmente, tem mais sensibilidade. Quando não o trata pelo nome, e normalmente fá-lo, mostra algum carinho, alguma afeição, chama-lhe "o teu amor", "o teu querido", às vezes "o teu gato". Embora estas pequenas coisas pareçam detalhes sem importância, a verdade é que me reconfortam e aconchegam. Desde que assumi a minha relação com o Jean, a minha vida não tem sido fácil e vejo-me com frequência como um alvo, exposta aos olhares, às críticas, aos comentários. Fico surpreendida como, em 2024, ainda estamos neste ponto.

Conheci o Jean graças ao meu ex-namorado. Esta é uma maneira de pôr as coisas que pode levar a equívocos, pelo que explico melhor. O Jean e o Afonso não eram amigos. Na verdade, nem sequer se conheciam. Mas foi por causa do Afonso e daquilo em que ele se transformou que acabei por conhecer o Jean.

O Afonso pertencia à mesma igreja que eu. Éramos os dois da Igreja Congregacional de Lisboa e foi por isso que nos tornámos próximos, ainda miúdos. Começámos a namorar, com todo o protocolo e observando as mais fundamentais regras de castidade, tínhamos 15 anos. E acredito que a origem dos nossos problemas foi termos crescido. Por um lado, com o aumento das pulsões sexuais e o amadurecimento dos instintos carnais, torna-se muito mais difícil respeitar a virgindade a que nos tínhamos comprometido. Com o tempo, torna-se insuportável e ficamos num dilema: ou cedemos aos prazeres luxuriosos, falhando aos olhos de Deus, ou encontramos maneiras alternativas de satisfazer os desejos. Como não queríamos, de modo algum, desapontar Nosso Senhor, e muito menos correr o risco de sermos motivo de falatório e condenação entre a congregação, optámos pela criatividade na hora de dar aos corpos o que os corpos pediam. A minha virgindade foi-se mantendo intacta, mas não creio que mesmo assim Deus aprovasse aquilo que andávamos a fazer.

Porém, pior do que ser posto diante de uma bifurcação moral criada pelos desejos sexuais e pelas questões da fé, crescer fez com que fôssemos percebendo e encarando a igreja de maneiras distintas. Para o Afonso, os ensinamentos e os encontros, as orações e as leituras, eram a grande, a maior, talvez mesmo a única fonte de conhecimento. Para mim, começaram a parecer discursos e mandamentos cada vez mais descabidos e fundamentalistas, até porque nem sempre batiam certo com a realidade com que lidamos fora dali. Aos poucos, fui notando certos tiques e trejeitos que me desagradavam, um espírito tacanho e fechado com que não me identificava, e sobretudo uma atitude em relação ao próximo - e eu acreditava que, no Cristianismo, a relação com o próximo devia ser de compreensão, aceitação, compaixão e solidariedade - que passava por separar, dividir, discriminar. Não me parecia correto que fosse a própria Igreja a incentivar esse tipo de postura.

Ao mesmo tempo que eu começava a questionar a Igreja, e até a equacionar um afastamento definitivo dela, o Afonso parecia cada vez mais entusiasmado com certos princípios. Sem rodeios, estava a tornar-se um patriota exacerbado, os traços de nacionalismo começavam a ficar cada vez mais visíveis. Quando decidi cortar de vez e abandonar a Igreja, ele era mais fervoroso do que nunca. Foi nessa altura que, para tudo e mais alguma coisa, o modelo feminino que o Afonso considerava era aquela deputada do Ventura, uma Rita-qualquer-coisa, que dizia horroridades acerca das mulheres e do seu papel na sociedade e no mundo enquanto falava para elas. Como também ela fazia parte da Igreja, as outras mulheres deixavam-se contaminar por aquele tipo de pensamento, enquanto os homens, claro, a adoravam por ser assim. O Afonso era um desses homens.

Quando abandonei a Igreja, discutimos. Não só porque o Afonso se opunha à minha saída, mas principalmente porque eu lhe disse que agora já podíamos fazer aquilo que tanto desejávamos há tanto tempo, em vez de andarmos a insistir em alternativas sexuais que não eram, de todo, as mais agradáveis para mim. Disse-lhe que já não me importava o quanto valia a minha virgindade aos olhos de Deus, uma vez que isso era uma questão que nos tinham enfiado na cabeça lá na Igreja e que não me parecia ter qualquer importância. Em vez de refletir sobre o que eu disse - apontar para as estrelas, olharem-nos para o dedo, é tão típico -, respondeu-me apenas "mas achas que só a tua virgindade é que importa? Então e a minha?" Confrontei-o com o que andávamos a fazer às escondidas há já mais de sete anos e perguntei-lhe se ainda se considerava virgem depois de todas aquelas práticas. Ignorou. "Se queres fazer essas coisas, temos de nos casar primeiro." Disse isto e virou-me costas.

Estávamos nesta fase de tensão e desgaste quando aconteceu o episódio que mudou tudo. Tínhamos ido jantar com amigos, era uma festa de aniversário num restaurante nas docas de Alcântara. As conversas à mesa acerca de sexo, castidade e casamento despertaram no Afonso a zanga e o rancor que ele tinha guardado das nossas discussões anteriores. Raivoso, levantou-se da mesa e foi lá para fora. Eu percebi que ele estava incomodado e irado. Depois de alguns segundos, em que achei boa ideia deixá-lo sozinho, acabei por ir atrás dele. Encontrei-o perto do rio, junto a uns caixotes do lixo. Perguntei-lhe o que fazia ali e ele nem me respondeu: pegou nos caixotes e desatou a despejá-los pelo chão e a pontapeá-los, como um louco. Um rapaz que passava perto aproximou-se de nós e disse, com pronúncia brasileira, "pô, cara, que é que ‘cê ‘tá fazendo? Vai destruir isso tudo". O Afonso respondeu-lhe mal, ficou ainda mais irado e agressivo. Mandou-o para a terra dele. O rapaz, que era o Jean, tentou serená-lo, enquanto se defendia, explicando que, sendo ou não esta a terra dele - "e que, por acaso, até é, pois se é aqui que eu moro, que eu trabalho, que eu pago meus impostos" -, quem estava a fazer mal era o Afonso, danificando sem razão aqueles caixotes.

O Afonso virou-se ao Jean, claro, chamou-lhe tudo, enfatizando sempre o facto de ser brasileiro. Quando o agarrou - "mas desde quando é que um brasileiro de merda me diz o que devo ou não fazer na minha terra? Ahn?" -, meti-me entre os dois, tentei separá-los, evitar que a situação acabasse mal. E então o Afonso levantou-me a mão, coisa que nunca antes fizera. E o Jean pôs-se à minha frente, protegendo-me. Apanhou ele por mim, mandou-me sair dali. Assustada, afastei-me. Ele lá conseguiu livrar-se do Afonso e fugiu. E eu, não sei por que instinto, não sei o que me conduziu - talvez o Deus certo me tenha ajudado e guiado -, fugi também, corri atrás do Jean.

Obviamente, não começámos a namorar ali, naquele dia. Simplesmente, fugimos os dois. Eu, do Afonso, da Igreja, de uma relação tóxica, de toda aquela hipocrisia e de um grupo de pessoas que se iam tornando cada vez mais intolerantes, mais intransigentes e mais fechados sobre si mesmos; o Jean, também do Afonso e simbolicamente de todos os destratos, abusos, insultos e ameaças com que lidava com demasiada frequência. Corremos para fora dali até que decidimos parar e nos apresentámos um ao outro, com algum embaraço. Senti que o Jean era gentil e carinhoso.

Passados alguns dias, o Jean mandou-me mensagem pelo Instagram. Gostava de me conhecer melhor, dizia. E eu gostei que não fosse de grandes enredos, agradava-me aquela transparência. Então fomos sair numa tarde de sábado. E houve entre nós uma química que não sei explicar, além de uma sensação de gratidão mútua - ele ficou ao meu lado quando eu precisei e eu defendi-o quando ele esteve em apuros. O passeio da tarde prolongou-se para jantar e o jantar estendeu-se noite dentro. Dormimos juntos. Ficou surpreendido quando percebeu que eu nunca tinha feito amor, não daquela maneira. Foi delicado e cuidadoso, mas também apaixonado e quente. Foi maravilhoso.

Estamos juntos há quase um ano. E estou grávida de quatro meses. Tenho dentro de mim sentimentos misturados. Por um lado, sinto uma felicidade gigantesca por saber que vou ser mãe de um bebé nascido do amor, filho de um homem bom, com quem quero passar o resto dos meus dias. Por outro, sinto algum receio do que virá a seguir. Como irá o mundo reagir a esta criança, filha da nossa mistura? Será que vai sofrer, vai ser agredida e insultada? Só porque o pai não é português de nascença? Só porque o tom da pele não vai ser tão branco quanto aquelas pessoas acham que devia ser? Mais do que afligir-me, estes pensamentos deixam-me triste. E nós merecíamos estar felizes.

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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