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Dating em Lisboa. “Num dia de lua cheia e marés vivas acabei por ter um date com um nadador-salvador fascista”

Foto: IMDB / Jojo Rabbit
21 de junho de 2024 Maria Pestana

Morro de medo de ondas gigantes. Sonho muitas vezes com ondas enormes que invadem a praia, com a água do mar a subir alagando ruas. A minha psicóloga não dá muita importância. Já pensei ir a um psicanalista para ter uma abordagem mais freudiana do assunto, mas depois recordo-me que existem gavetas que é melhor nem abrir. Uma pessoa abre e está sujeita a meter-se num barco metafórico com destino a mares ainda mais negros. O Google diz que sonhar com ondas gigantes representa um período de turbulências na vida, problemas que estão por chegar, mas como acabo sempre por conseguir escapar e ficar sã e salva, tudo irá ficar bem. Esta introdução serve para explicar não só a história da minha vida, mas porque, num dia de lua cheia e marés vivas, acabei involuntariamente por ter um date com um nadador-salvador que passou de cortês a fascista.

Sou daquelas pessoas que sabe que a lua influência o estado do mar, em particular, a partir de agosto. Por isso, tendo a precaver-me e ver o estado do mar antes de sair de casa. Nesse dia, mesmo assim, decidi arriscar. Cheguei à praia cedo, como é habitual em mim. Gosto de chegar antes da maioria das pessoas. Escolher com calma o local onde vou colocar a toalha e dedicar um dia aos banhos de sol, mar e leitura. Nesse dia, entristeci ao pôr o pé na areia e perceber que estava molhada. O mar, ainda em maré baixa, subia já com ondas revoltas. Estendi a tolha e decidi ir tomar um banho de imediato. A água estava baixa ainda, mas turva, agressiva. Puxava e as ondas surgiam com força. Ao mergulhar embati com o joelho numa rocha, não imaginava que doía tanto quanto o cotovelo. Ninguém fala de dor de joelho. Sai da água gelada e com um joelho a escorrer sangue. Sentei-me na toalha, observei o joelho ensanguentado, uma mistura de água avermelhada escorria já pela perna, peguei num lenço de papel e comecei a pressionar para estancar o sangue. Senti-me aborrecida. Sabia que dali a pouco tempo não poderia mais ir ao mar.

Ao ver-me magoada, o nadador-salvador perguntou se estava bem. Respondi que sim, que era só um ligeiro golpe. "A bandeira está amarela. A água vai subir muito hoje, não vai?", perguntei. "Se for como ontem, vamos ficar sem praia", respondeu-me, enquanto se baixava para me observar o joelho. Tocou-me ao de leve na perna e perguntou se queria um penso. Agradeci, mas não. Um penso ia estragar o meu bronzeado, mais valia deixar ao ar. Interrogou-me se frequentava muito aquela praia, respondi que sim. "Engraçado, nunca tinha reparado em ti!". Nada como uma donzela em apuros para dar nas vistas, pensei. Os homens adoram dar-se a galanteios de herói. Perguntei a que horas se dava o pico da maré cheia e comentei que era uma chatice quando o mar estava assim, porque não poderia ficar o resto do dia na praia. Estavam perto de 35 graus, um calor infernal, e um mar dos diabos. Depois de um bom bocado à conversa, e de me sentir já tonta com o calor, desabafei que tinha medo de ir ao mar quando as ondas estavam grandes. "Se quiseres, vou contigo", ofereceu-se. E foi assim que perante uma praia já lotada fui levada de mão dada até ao mar pelo próprio nadador-salvador. Segui todas as indicações, nadei quando me disse para nadar, mergulhei quando me disse para mergulhar, mas cada onda embatia em mim com mais força, enquanto ele imóvel nem saia do mesmo sítio. A dada altura, fui varrida por uma onda enorme que quase me levou até ao areal. Quando me olhei, tinha o soutien do biquíni descomposto e um mamilo de fora. Levantei os olhos, ele observava-me. Achei que tinha ficado paga a ida ao mar.

Depois desse banho, que apesar dos contratempos, me soube pela vida, continuámos a conversar. Ele era muito mais novo do que eu, tinha 23 anos, ainda frequentava a faculdade, mas como era entroncado parecia ligeiramente mais velho. Somente a forma como falava e as ideias meio vazias denunciavam a sua imaturidade. Almoçámos em conjunto, eu a minha salada, ele a marmita que a mãe lhe enviava diariamente. Apercebi-me que mal observava o mar, mas assumi que o colega tomava conta da situação. De qualquer modo, com a bandeira amarela e o mar tão revolto, quase ninguém se aventurava a entrar na água. Depois de almoço, demos um novo mergulho. A água tinha já subido imenso, embatia quase no paredão. Eu já não tinha a toalha estendida. Coloquei a cesta alta, sentei-me sobre uma pedra e fiquei a aguardar que a maré baixasse. Entretanto, ele teve de tratar de alguns afazeres, mas retomava sempre para continuar a conversa e dar mais uns galanteios. Contra as expetativas iniciais aquele estava, afinal, a ser um dia de praia agradável.

A companhia daquele nadador-salvador, embora não fosse exímia, era suportável em prol de um bem maior. O problema surgiu quando a conversa resvalou, já não me recordo como, para o tema do racismo. Já tinha percebido por alguns comentários seus que tinha tendências xenófobas, mas fui desvalorizando. Quando começou a falar sobre ideias de um tal partido nacional de extrema-direita calei-me. Não por consentir, mas por sentir que só faz sentido debater com quem está aberto a isso. "De repente, ficaste calada…", notou. "Fiquei. Nem vou comentar o resto, mas enquanto mulher acho abominável que defendas tal partido e tais ideias". O caldo estava entornado e ainda eram quatro da tarde. O sol escaldava e os banhos iam-se acabar. "Ora bolas, logo agora que queria ir dar mais um mergulho", disse a mim mesma. Respondeu-me de forma atabalhoada, tentou defender-se, mas nada mais havia a fazer.

O sol escaldava mesmo. Eu ansiava por ir mais uma vez a banhos. A maré já começava a descer. Fixei o mar, contei as ondas e corri sozinha na sua direção. Dei um mergulho rápido, esperei que o mar me devolvesse à costa e voltei ao pontão, onde tinha as minhas coisas e onde o nadador-salvador me observava num misto de derrota e espanto. Antes mergulhar num mar revolto e enfrentar o medo a permanecer na areia com a ignorância. Anseio viver sempre assim, em democracia e com liberdade de expressão, segundo os ideais de mulheres lutadoras como as nossas três Marias, por exemplo, que editaram As novas cartas portuguesas, em 1972, e abriram caminho para que crónicas como esta possam hoje ser escritas e lidas sem reprovação. Em época de eleições legislativas, e com as celebrações do Dia da Mulher à porta, termino este texto com um excerto de uma entrevista a Maria Teresa Horta (Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa foram as outras duas Marias), cuja biografia chega agora às livrarias: "Numa mulher, ser-se inteligente e interessante, forte, opinativa e indomável, era sinal de rebeldia, para não dizer coisas piores." Pois que sejamos todas rebeldes!

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