“Ainda há juízes em Berlim”, teria dito o moleiro ao rei da Prússia que queria derrubar seu moinho. A carta de renúncia de José Luciano Duarte Penido do conselho da Vale, que denuncia uma insidiosa pressão feita pelo governo federal e amigos no setor privado para intervir na mineradora, é um fato raro que traz algum alento no cenário de faroeste do mercado de capitais. Se a frase célebre acima não servir para juízes, ao menos sabemos agora que ainda há conselheiros no Brasil.
Como revelou na terça-feira (12) o jornalista do Valor, Francisco Góes, Penido fez críticas contundentes à maneira como vem sendo conduzido o processo sucessório da mineradora. Na carta, Penido, que estava no colegiado desde 2019, diz que esse processo “vem sendo conduzido de forma manipulada, não atende ao melhor interesse da empresa, e sofre evidente e nefasta influência política”.
Não há como relativizar o peso e a gravidade de uma mensagem como essa. Renúncias de conselheiros geralmente não provocam ruídos e as divergências, quando existem, costumam ficar entre os envolvidos. Sair atirando definitivamente não é o comportamento padrão.
Do ponto de vista de governança, é um alerta sem precedentes. Há pelo menos duas décadas, entidades como o Instituo Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) tentam, com relativo sucesso, profissionalizar cada vez mais os conselhos e fazer com que as empresas coloquem no alto da lista de prioridades os interesses de todos os seus acionistas.
A carta de Penido mostra que há conselheiros dispostos a defender princípios, mas também expõe de forma cristalina um ambiente empresarial muito vulnerável a agentes externos. Essa situação não causa nenhuma surpresa. A novidade é alguém de dentro vir a público denunciar.
Penido estava no colegiado da Vale desde 2019, chegou a presidir o conselho de administração da empresa e é um executivo com longa experiência em mineração e siderurgia. Ele foi um dos dois conselheiros independentes que votaram contra o processo sucessório da forma como foi aprovado na sexta-feira (8), que esticou o mandato do atual presidente, Eduardo Bartolomeo, até dezembro. A reunião do conselho de administração se estendeu por cerca de oito horas.
O troca no comando da segunda maior mineradora de ferro do mundo ganhou mais destaque no fim do ano passado, mas notícias que já vinham circulando, davam Guido Mantega como candidato do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, ao cargo.
Essa intervenção do governo tumultuou um processo que tinha tudo para ser mais tranquilo, como a possibilidade inclusive da recondução de Bartolomeo.
O emissário de Lula nessa negociação com a empresa teria sido o presidente do fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil (Previ), João Fukunaga, conselheiro da Vale. Além de Fukunaga, que fez carreira no Sindicato dos Bancários de São Paulo, a Previ, que é um dos maiores acionistas da mineradora, tem mais um membro no conselho, Daniel Stieler, presidente do colegiado.
A informação sobre a indicação de Mantega nunca foi oficialmente confirmada, mas o mercado e acionistas reagiram muito mal ao nome do ex-ministro, que esteve no comando do conselho da Petrobras até 2014, quando estourou o escândalo do petrolão.
Em meados de fevereiro, numa reunião extraordinária, a Previ, fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, e a Bradespar, empresa de participações do Bradesco, foram favoráveis à abertura de um processo competitivo. A Cosan, do empresário Rubens Ometto e que tendia a apoiar a recondução de Bartolomeo, se absteve de votar, segundo apuraram Góes e da jornalista Mônica Scaramuzzo. A votação terminou empatada.
A Bradespar seria favorável à recondução de Bartolomeo, mas teria mudado de ideia.
Na semana seguinte, a Vale recebeu ofícios do órgão ambiental do Pará sobre a suspensão de licenças ambientais de duas minas no Pará, um “decisão técnica”, segundo a Secretaria de Meio Ambiente do Estado. Já pessoas dentro da Vale viram um viés político e consideraram as decisões “frágeis tecnicamente”.
Enquanto o estamento burocrático abria fogo, Lula disparava impropérios contra a empresa sempre que tinha oportunidade. Recentemente, ele disse que a Vale “não é dona do Brasil”. Não é, ninguém imaginou que fosse. O mandatário só precisa entender que os donos da Vale são os seus acionistas, não o governo.