Semana passada veio a público a carta de renúncia de José Luciano Duarte Penido, conselheiro de administração independente da Vale, uma das maiores companhias abertas brasileiras. A carta afirma que “o atual processo sucessório do CEO da Vale vem sendo conduzido de forma manipulada, não atende ao melhor interesse da empresa, e sofre evidente e nefasta influência política”.
O conselheiro também sustenta que, no Conselho da Vale, “se formou uma maioria cimentada por interesses específicos de alguns acionistas lá representados, por alguns com agendas bastante pessoais e por outros com evidentes conflitos de interesse”, e que o “processo tem sido operado por frequentes, detalhados e tendenciosos vazamentos a imprensa, em claro descompromisso com a confidencialidade”.
Por isso tudo, e dizendo não mais acreditar “na honestidade de propósitos de acionistas relevantes da empresa no objetivo de elevar a governança corporativa da Vale a padrão internacional de uma Corporation”, Penido entendeu que sua atuação como conselheiro independente se tornara “totalmente ineficaz, desagradável e frustrante”, e renunciou ao mandato para o qual fora eleito – que terminaria apenas em abril de 2025.
É quase impossível, para quem está fora da companhia, especular sobre todas as críticas feitas pelo conselheiro. Mas a referência à “nefasta influência política” na Vale parece ter como principal destinatário o Palácio do Planalto, cuja tentativa de interferir na administração da companhia, especialmente pela indicação de Guido Mantega como CEO ou presidente do Conselho, foi fartamente noticiada.
A Vale, como se sabe, foi privatizada há quase 30 anos. Só que a Previ – o fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil – ainda é o maior acionista individual da companhia, com quase 9% do capital. Sua influência direta, e a indireta do governo – que nomeia seus gestores –, seria, portanto, de se esperar, quando se trata de um investimento tão relevante. O problema, portanto, não está na influência, mas na forma pela qual ela é exercida.
A atuação da Previ no atual governo, como acionista de companhias privadas, tem incluído atos sem conexão com o “melhor interesse” das empresas de que é sócia. Foi o caso da nomeação de dois ministros de Estado – Carlos Lupi e Anielle Franco – para o Conselho de Administração da Tupy. Ao servir de base para o lançamento de candidaturas no interesse do governo, a Previ ignora o interesse das companhias em que investe, de cuja lucratividade depende seu patrimônio, que na verdade é de seus beneficiários.
Essa postura do governo Lula revela sua incapacidade de aprender com os erros do passado – que em parte resultaram da má governança de estatais. Mas revela, principalmente, seu desprezo pelos eleitores que votaram nele, e não em Jair Bolsonaro, no segundo turno das eleições de 2022.
Eleitores de Simone Tebet e de outros candidatos, que asseguraram a Lula sua magra vitória, e agora são obrigados a conviver com um presidente incapaz de cumprir a Lei das Estatais e de conter seu desejo de poder total.
Nesse campo, aliás, a culpa não é só de Lula. A demora do Supremo Tribunal Federal em reexaminar a liminar proferida há mais de um ano por Ricardo Lewandowski, permitirá que, com base em decisão de um único juiz, suspendendo uma lei aprovada pelo Congresso Nacional, o governo eleja, nas assembleias de acionistas que acontecerão até o fim de abril, conselheiros de companhias estatais para novos e longos mandatos.
O conselheiro renunciante da Vale menciona, também, os “frequentes, detalhados e tendenciosos vazamentos a imprensa, em claro descompromisso com a confidencialidade”. Ele tem razão: a prática se tornou rotineira nas batalhas corporativas e políticas no Brasil. Mas não só entre acionistas e administradores de companhias. Por aqui, o dever de sigilo também caiu em desuso entre as polícias e ao Ministério Público.
Contudo, do ponto de vista da governança corporativa das companhias brasileiras, há outra importante questão levantada a partir da saída do conselheiro da Vale. E é o uso da renúncia como forma de atuação de um conselheiro independente, mesmo que esse conselheiro perceba sua atuação como “totalmente ineficaz, desagradável e frustrante”.
Conselheiros são eleitos para um mandato, durante o qual só podem ser destituídos pela assembleia de acionistas. A lei protege esse mandato, porque sabe que a atuação independente e no interesse da companhia pode contrariar outros interesses. Além disso, os votos dos conselheiros são tornados públicos – oficialmente, não por vazamento –, de modo a que todos os acionistas possam saber o que está acontecendo, inclusive quando faltar “honestidade de propósitos” a alguns acionistas ou a outros conselheiros.
A resistência e a manifestação justificada e detalhada de votos contrários por conselheiros é, assim, um instrumento poderoso para trazer luz a conflitos de interesse. E, também, para evitar que se consumem, dado o constrangimento que sua publicidade causaria. Isso, aliás, se aplica igualmente a dirigentes de agências reguladoras com mandato e até a ministros militares – sabemos agora –, que mesmo demissíveis, podem usar o constrangimento e o ruído que sua demissão causaria para evitar golpes de Estado.
Ninguém discute que sofrer pressões é penoso. E nem sempre há condições pessoais de resistir durante todo o tempo. Razões particulares também podem justificar a decisão de deixar um cargo. A renúncia, em suma, nada tem de ilícita e sua publicidade, ainda mais a renúncia justificada, também pode criar constrangimento e evitar danos.
Mas quem quer que se aventure a um mandato de conselheiro de administração deve, como regra, resistir à pressão e justificar seus votos contrários aos da maioria. A publicidade dos votos é obrigatória, e essa mera possibilidade é muitas vezes capaz de frear práticas nocivas. A célebre frase de Louis Brandeis, sobre ser a luz do sol o melhor desinfetante, não impede que ela seja, também, muitas vezes, um excelente inseticida.
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