Outro dia meu filho caçula, de passagem pela cidade, reuniu alguns amigos lá em casa para assistir à partida final da Liga dos Campeões da Europa. Estavam também uma sobrinha minha e seu namorado. Antes de começar o jogo, quase todos fizeram pequenas apostas utilizando aplicativos. Coisa de R$ 10 dez ou R$ 20 em ofertas padronizadas disponíveis nas próprias plataformas.
Me chamou atenção que quase todas as apostas envolviam mais do que o resultado da partida, ou do primeiro tempo, ou da eventual prorrogação, ou quem marcaria gols. Punições com cartões amarelos, faltas e escanteios também compunham o cardápio. Eventos bem menos mais influenciáveis pela vontade individual dos atletas envolvidos na competição do que o resultado da partida.
Nada errado. A lei que regulamentou as apostas esportivas no Brasil (Lei 14.790, de 2023), prevê que pode ser objeto de apostas um “evento real de temática esportiva”, assim entendido o “evento, competição ou ato que inclui competições desportivas, torneios, jogos ou provas, individuais ou coletivos, excluídos aqueles que envolvem exclusivamente a participação de menores de 18 anos de idade, cujo resultado é desconhecido no momento da aposta e que são promovidos ou organizados”.
Não há restrição legal, portanto, para que as apostas envolvam “atos” ocorridos no campo de jogo, e mesmo atos individuais de certos jogadores. Mas essa possibilidade cria o risco evidente de que um jogador, ou um conjunto de jogadores, decidam ou aceitem praticar certos atos – ceder escanteios, praticar faltas merecedoras de cartões amarelo e outras inúmeras possibilidades.
Não é em todas as partidas que as empresas operadoras oferecem a possibilidade de apostas além do próprio resultado do jogo. Já em eventos com maior interesse do público – e, portanto, com grandes volumes de apostas –, quase todas o fazem. Esse parece ter sido o caso das partidas objeto da acusação formulada contra o atleta Lucas Paquetá, jogador do West Ham e da seleção brasileira.
Esse caso, entretanto, também é emblemático como demonstração da capacidade dos controles de integridade utilizados pelas empresas de apostas. Como o detalhe curioso, que pode ter aguçado o interesse no aprofundamento da investigação, de que a aposta suspeita foi realizada na Ilha de Paquetá, na cidade do Rio de Janeiro.
Não apenas essa coincidência é digna de nota. A aposta foi feita com o uso da plataforma de apostas Betway, uma das maiores do mundo, mas que não opera no Brasil. E essa empresa é exatamente a principal patrocinadora do West Ham, time de Paquetá, que perderá milhões de dólares caso seu jogador seja banido do futebol, como pode acontecer se as acusações de seu envolvimento com a aposta forem comprovadas.
A Betway, como muitas das grandes empresas que exploram apostas no mundo e no Brasil, é filiada à International Betting Integrity Association – IBIA, uma entidade privada de autorregulação, patrocinada pelas próprias empresas. A entidade realiza o monitoramento de apostas suspeitas e reporta as suspeitas com maior verossimilhança às autoridades esportivas. Foi a IBIA que detectou e reportou as apostas do caso Paquetá.
A técnica de organizar a supervisão das apostas (obrigatória, segundo a lei brasileira) em uma entidade autorreguladora como a IBIA, é muito boa, por várias razões. A primeira delas, claro, relaciona-se com os custos de manutenção das estruturas de compliance – fortemente baseada em sistemas de informática –, que são repartidos pelos agentes integrantes da indústria.
Além disso, contudo, o eventual conflito de interesses de uma empresa em denunciar a manipulação envolvendo seus sistemas não contaminará a entidade financiada pelo conjunto das empresas, a quem cabe evitar danos de imagem e punições pelos reguladores estatais, que poderiam prejudicar toda a indústria.
Em seu relatório de atividades de 2022 – o último disponível na Internet –, a IBIA informa ter reportado às autoridades 268 apostas que, depois de analisadas, foram consideradas muito suspeitas, em todo o mundo. Ao contrário do que se poderia imaginar, o futebol não é o líder nesse ranking. Não por acaso, foi o tênis – esporte praticado individualmente ou em duplas –, que gerou o maior número de alertas de suspeitas, com 38% dos casos.
É curioso notar, também, que na maioria dos países, incluindo o Brasil, a conduta imputada a um jogador que viole as regras do jogo para beneficiar apostadores não constitui crime. A perda material – decorrente do eventual banimento do esporte – é considerada suficiente para desincentivar a conduta indevida.
Alguém dirá que isso não é o suficiente, que só o temor da punição criminal seria eficiente. Mas isso é no mínimo duvidoso, especialmente em um país, como o Brasil, cujos Tribunais não tendo dado crédito nem mesmo a confissões criminais. Nesse cenário, o risco de que a ganância supere a correta avaliação de risco é maior. Basta ver a frequência com que executivos participam de fraudes empresariais, que em tese são passíveis de punição criminal.
A melhor ferramenta ainda é a aplicação efetiva de uma sanção adequada, e a autorregulação tem capacidade de fazê-lo, se os agentes de mercado acreditarem que isso é relevante para a manutenção de seus negócios. Por outro lado, se a percepção de impunidade prevalece, vale a pena arriscar, e vigora a máxima de Warren Buffett sobre as cinco palavras mais perigosas do mundo dos negócios: “Todo mundo está fazendo isso”.
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