O novo governo federal, empossado no dia 1º de janeiro de 2023, nos surpreendeu pelo apoio que tem dado ao tema da reforma tributária, particularmente a uma ampla reforma da tributação do consumo (que envolve tributos como o ICMS, ISS, PIS, COFINS, IPI). A matéria assumiu status de pauta prioritária. Destoa claramente do governo passado, que empenhou esforços limitados para a aprovação de projetos pontuais e fatiados.
E este novo governo nos surpreendeu porque conduziu uma campanha eleitoral baseada em bordões tributários genéricos, de defesa da simplificação do sistema e de maior justiça fiscal pela oneração dos mais abastados (o famoso “tributar o andar de cima”). Até a vitória, não proporcionou detalhes nem aprofundamentos.
Depois da eleição, foram emitidos fortes sinais de interesse pelo tema, particularmente com a indicação de Bernard Appy para o cargo de secretário extraordinário para a Reforma Tributária do Ministério da Fazenda. Como é sabido, o economista foi diretor do Centro de Cidadania Fiscal (C.CiF), think tank responsável pela elaboração da proposta de reforma apresentada à Câmara dos Deputados pelo deputado Baleia Rossi na forma da famosa Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2019. Appy é um dos “pais” do projeto. Seria natural esperarmos que, ao ser chamado para o cargo de secretário extraordinário, tentaria impulsionar ao máximo a aprovação de uma reforma nos mesmos moldes.
Assim, com a característica empolgação de governos recém-empossados, logo declarou-se apoio aos projetos de reforma da tributação do consumo (notadamente, às PECs nº 45 e nº 110 de 2019, respectivamente nascidas na Câmara dos Deputados e no Senado).
Da parte do Congresso, também em 2023, foi criado um grupo de trabalho de 12 deputados federais com o propósito de apresentar um novo relatório de reforma até maio de 2023. Espera-se que esse novo relatório contemple a PEC 45/2019 e/ou a PEC 110/2019, mas ainda não sabemos em qual medida irá considerar uma e/ou outra.
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Todo este cenário me fez lembrar de texto publicado nesta coluna há quase um ano e meio, quando tratamos dos porquês de os tantos projetos de reforma tributária discutidos nas últimas décadas acabarem sempre naufragando (Por que a reforma tributária nunca acontece? Um ensaio em 5 pontos). Os cinco pontos lá explorados continuam, em minha modesta opinião, totalmente válidos e merecem ser relembrados com alguns números e fatos atualizados:
(i) Altíssima carga tributária: Nas últimas décadas, passamos por recorrentes aumentos em nossa carga tributária global, o que nos levou a uma altíssima tributação, se comparada à de outros países em equivalente grau de desenvolvimento. Em 1988, a carga tributária global brasileira correspondia a 22,43% do Produto Interno Bruto (PIB). Em 2022, foi estimada em 33,71% do PIB. Ou seja, de 1988 a 2022, sofremos um aumento de mais de dez pontos percentuais de PIB, atingindo nível de tributação equivalente à média dos países da OCDE, atualmente de 34,1%.
Promessas passadas, de que mudanças no sistema tributário não aumentariam a carga, foram descaradamente descumpridas. Com a atual necessidade de se equilibrar as contas públicas e as diversas promessas do governo federal de aumento de gastos, não espero de uma reforma agora aprovada nada mais nada menos do que efetivo aumento de nossa já insuportável tributação.
(ii) Tributação setorial: Ao longo dos anos, em meio ao progressivo aumento da carga tributária, diferentes setores da economia se viram forçados a negociar exceções e regimes especiais, de modo que nosso sistema tributário se tornou essencialmente setorial. Cada indústria, cada segmento da economia tem uma tributação distinta. Mais do que isso, cada empresa pode ter um sistema tributário para chamar de seu, como ensina Marcos Lisboa, ex-presidente do Insper.
Ao negociar benefícios fiscais individualmente com Estados e Municípios, algumas empresas conseguem se diferenciar inclusive dos pares. Essa tendência de negociação individualizada pode ter aliviado o peso do tributo para alguns, mas só aumentou a carga dos demais e atribuiu mais complexidade ao sistema em geral. Aqueles que foram agraciados com conquistas individuais não aceitam renunciar a elas e passar a sofrer a alta tributação dos menos favorecidos.
Nosso sistema político assegura a perpetuidade das negociações de cargas tributárias setorialmente ou, quiçá, individualmente. Muito mais fácil resolver os problemas de alguns, pontualmente, do que resolver o problema do País como um todo.
(iii) Falta de confiança no Poder Público: Ninguém confia na ideia de que o Poder Público gastará bem o dinheiro, se vier a ocorrer aumento ou realocação de carga. O Estado brasileiro tem se tornado cada vez maior e mais caro, sem melhorar a qualidade do que proporciona ao cidadão. Gasta-se muito e gasta-se mal. Vivemos uma das piores crises da nossa história, com absoluta escassez de recursos públicos, inclusive para os programas sociais mais básicos.
Ainda assim, ouvimos estarrecidos declarações de que se pretende aumentar a descontrolada gastança, voltar a “investir” em países vizinhos... Este tipo de postura intensifica a sensação de que o nosso Estado não é confiável e não merece receber mais recursos enquanto não se fizer uma efetiva reforma administrativa.
(iv) Falta de confiança entre os Entes da Federação: União, Estados e Municípios parecem não confiar uns nos outros. Em verdade, há desconfiança inclusive entre Entes da Federação do mesmo tipo. É o preço de uma tributação de três camadas, muito mais complexa do que o sistema adotado por diversos outros países. Este desalinhamento Federativo emperra ainda mais qualquer projeto de reforma.
(v) Caos econômico e político: No caos econômico e político, não se confia na promessa de que uma reforma tributária proporcionará crescimento econômico que compensará eventual aumento ou realocação de carga. No caos econômico e político, ninguém quer correr o risco de passar por mudança que irá piorar ainda mais um cenário já ruim. É por isso que, como também ensina Marcos Lisboa, todos querem reforma tributária, mas só para os outros...
Como já falei no passado, em essência, as reformas tributárias acabam empacando em função da mistura de tudo aquilo que nos levou ao pesadelo atual, temperado com muita, muita falta de confiança.
E com toda essa bagagem histórica e emocional, é difícil pedir aos contribuintes, aos empresários, aos empreendedores que deem um salto no escuro, acreditem em boas intenções e arquem com uma maior carga tributária sob a promessa de um futuro melhor.
Para o novo governo, fica a esperança de que tenha sabedoria para evitar cair na armadilha do excesso de confiança ou no pecado da inocência quanto aos inúmeros desafios para uma efetiva reforma tributária, pois a busca por um projeto muito purista e radical certamente eliminará quaisquer chances de aprovação.
Por outro lado, ao não ter suficiente base no Congresso, há a tendência de que o novo governo tenha que aceitar relevantes flexibilizações que acomodem pleitos setoriais ou questões federativas. Há ainda o risco de que façam delegações exageradas à legislação infraconstitucional (lei complementar) para se evitar imediatas polêmicas e facilitar a aprovação de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição).
Se isto ocorrer, essas acomodações deixarão eventuais reformas mais aguadas e tendentes a não terem os efeitos desejados. Nesses moldes, um projeto de reforma seria mero remendo que, em alguns anos, nos devolveria ao caos que vivemos (se não a um caos ainda pior).
Isto tudo sem considerar os efeitos que as discussões judiciais inevitavelmente terão sobre o novo sistema. Sem uma efetiva reforma do contencioso tributário, não adianta desenhar as regras tributárias mais lindas do mundo. No final do dia, todas elas irão parar em nossos tribunais, com o real risco de desconstrução, fazendo o pesadelo recomeçar e se intensificar...
Oremos.
Ana Carolina Monguilod é sócia do i2a Advogados e Mestre (LL.M) em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Leiden (Holanda).
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