• Natacha Cortêz
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Perfil_Simone Sibilio (Foto: Pamella Moreno)

Perfil_Simone Sibilio (Foto: Pamella Moreno)

Simone Sibilio coleciona “dias inesquecíveis”. Este texto é sobre alguns deles. A começar pela madrugada de 12 de março de 2019, uma terça-feira em que ela e sua então dupla, a promotora Letícia Petriz, passaram insones, apenas alimentadas por café, e prenderam Ronie Lessa e Élcio de Queiroz, apontados como executores de Marielle Franco e Anderson Gomes. Ronie, policial militar reformado, é acusado de ter feito os 13 disparos contra o carro onde estavam a vereadora do PSOL-RJ e seu motorista. Já Élcio, expulso da Polícia Militar (PM), é acusado de ter dirigido o Cobalt prata de onde saíram os tiros que mataram os dois.

Com as prisões, deixou-se de perguntar: “Quem matou Marielle e Anderson?” para perguntar: “Quem mandou matar Marielle e Anderson? E por quê?”.

Amanhecia quando Monica Benício, a viúva de Marielle, atendeu o celular. Era pouco mais de 5 da manhã e havia minutos que Simone e Letícia, juntamente com uma equipe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, tinham conseguido pegar os acusados, ambos já em rota de fuga e munidos de milhares de reais. “Eu sei, horário ingrato para ligar para alguém. Mas eu precisava dar a informação em primeira mão, antes que a imprensa divulgasse. É um cuidado que sempre tive com as famílias [das vítimas]. Monica tinha que ouvir de mim. Letícia ligou para Anielle, a irmã. A gente devia isso a elas”, recorda Simone, que foi direta na mensagem.

Monica estava em outra cidade, “Brasília, acho. Talvez indo para o aeroporto”, conta Simone. “Eu disse: ‘Desculpa a hora; estou ligando para contar que as pessoas que denunciamos acabaram de ser presas. Por uma questão de sigilo, eu não podia ter contado antes’. Foi um dia exaustivo. Mas valeu a pena, porque levou algum alento para aquelas famílias que estavam sem respostas.”

Simone, de 49 anos, e Letícia, que não revela a idade, se conheceram em Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense. A primeira era membro da promotoria do júri, enquanto a segunda atuava em uma promotoria criminal. “Acho que isso foi em 2013”, conta Letícia, que assumiu o caso Marielle substituindo Homero das Neves, que deixou o processo depois de ser promovido a procurador de Justiça. “Dado o contexto do crime”, assim que encabeçou a investigação, Letícia solicitou as competências do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), braço do Ministério Público com atuação na maior parte dos estados brasileiros.

“Em regra, para cada caso que o Gaeco pega, há um relator designado. Como já conhecia Simone e confiava no trabalho dela, pedi que atuássemos juntas.” As duas promotoras, então, entraram no caso Marielle em setembro de 2018, permaneceram por quase três anos no processo e se retiraram em 10 de julho de 2021, causando nas famílias das vítimas “uma porrada”.

Na época, a educadora Anielle Franco, diretora do Instituto Marielle Franco e irmã da vereadora morta, disse em entrevistas que todos estavam abalados com a notícia. “Achávamos que as coisas estavam caminhando com as doutoras, que são duas pessoas em quem a gente tinha confiança. Foi um soco no estômago.”

Conforme nota do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) para a imprensa, Simone e Letícia “optaram voluntariamente por não mais atuar na força-tarefa que investiga o caso Marielle Franco e Anderson Gomes”. Segundo apuração do Jornal Nacional, exibida na semana da saída das promotoras, elas teriam deixado as investigações por receio e insatisfação com “interferências externas”. No Twitter, Anielle escreveu: “Agora eu quero saber que interferências são essas! Quem mandou matar minha irmã!?”.

“Eu e Letícia estávamos em cargos de confiança do procurador- geral. Quando num cargo de confiança não há mais confiança..."

Simone Sibilio


De acordo com Simone, que aqui fala pela primeira vez desde o seu pedido de exoneração, “o rompimento foi sofrido e independeu da nossa vontade”. Ela continua: “Gostaríamos de ter ficado até o fim. Esse é o desejo de todo profissional quanto atua num crime desse. Em momento algum ficamos cansadas. Foram circunstâncias alheias à nossa vontade que fizeram com que a gente tomasse essa decisão.”

Simone ainda afirma que os detalhes da deliberação foram documentados e entregues ao MP. E que deixar o caso, assim como os êxitos enquanto estiveram à frente dele, foi algo “feito em equipe”. Ela emenda dizendo que a palavra “risco” [de morte] não existe em seu vocabulário – mesmo andando com escolta desde o primeiro dia de investigação dos assassinatos. Que não foi por medo nem por vaidade, frisa, que as duas pediram a exoneração. “Se fosse por holofote, teríamos ficado e saído por aí dando entrevistas.” Por último, depois de avisar que esta será sua última fala sobre deixar o caso, diz: “Veja, eu e Letícia estávamos em cargos de confiança do procurador- geral. Quando num cargo de confiança não há mais confiança...”.

A saída da dupla se deu na esteira da retirada do delegado Moyses Santana, que investigava o crime na Delegacia de Homicídios e que foi substituído, em 5 de julho, por Henrique Damasceno, o quarto delegado a assumir o caso.

Perfil_Simone Sibilio (Foto: Pamella Moreno)

(Ilustração: Pamella Moreno)

Dias depois, foi noticiada a delação premiada de Júlia Lotufo, viúva do ex-capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) Adriano da Nóbrega. Ele foi um dos fundadores do Escritório do Crime, “uma quadrilha de mercenários que matam por encomenda”, e comandante da milícia de Rio das Pedras e da Muzema, na Zona Oeste do Rio. Também era suspeito de participar de um suposto esquema de desvio de salários do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. A mãe e a ex-mulher de Adriano chegaram a ser nomeadas no gabinete e recebiam, cada uma, o salário de R$ 6.490,35.

Júlia está em prisão domiciliar e mantinha contato com três delegados da Polícia Civil e com a Coordenadoria de Investigação de Agentes com Foro (Ciaf), do Ministério Público. Segundo apuração do G1, Simone e Letícia não participaram dos dois primeiros encontros da delação, apesar das suspeitas envolvendo o Escritório do Crime na morte de Marielle e Anderson. Em um momento posterior, elas ouviram Júlia e, ainda segundo o G1, consideraram as informações sobre o caso Marielle superficiais e sem provas. Decidiram, então, não aceitar a delação, que, ainda assim, continuou a ser analisada pelo MP.

Por outro lado, há a suspeita de vazamento de informações sobre o caso, o que coloca em risco o sigilo do inquérito. O último ato da dupla de promotoras foi a denúncia do delegado da Polícia Civil Maurício Demétrio, preso em junho por suspeita de comandar um esquema que exigia propina de lojistas que vendiam roupas falsificadas. No entanto, Simone e Letícia ainda descobriram que Maurício teria recebido informações do caso Marielle, o que gerou a denúncia por crime de violação de sigilo. Tais informações estavam no e-mail de um ex-policial civil, suspeito de ligação com a contravenção e também investigado pelo assassinato da vereadora e do motorista.

Zero um
Simone tem sede “quase inexplicável” por justiça. Foi esse arrebatamento – e uma força de vontade fora da curva – que a levou ao Ministério Público aos 30 anos. Nascida em São João de Meriti, também município da Baixada Fluminense, foi a única da família que fez faculdade.

Caçula de três filhos de uma faxineira e de um comerciante, teve uma infância pobre, o que a fez optar pela Academia de Polícia Militar aos 18 anos. “Tinha a possibilidade de estudar e receber um soldo. E era regime de internato. Então, além de não dar despesa para a minha família, tinha aula o dia inteiro.”

Na Escola de Formação de Oficiais – como era chamada na época –, colocou seu nome e rosto no mural dos melhores. Ingressou na turma de 1991, com 117 alunos, sendo 17 mulheres, e foi a “zero um” (primeira da turma) e “aluna padrão” nos três anos de curso. Simone foi a primeira mulher a ser “padrão” naquela escola.

Foi também a primeira a ser guarda-bandeira, levando o estandarte da instituição nos desfiles oficiais. Contou com a solidariedade e o apoio de um coronel que não a preteriu por ser mulher, “Ferraz, o nome dele”. “Não era fácil para as mulheres. Tinha a questão do estudo intenso e da competição natural, e tinha o convívio com os meninos – se por um lado era salutar, tinha as questões machistas do dia a dia, que talvez tenham ajudado a forjar o nosso caráter.”

Da Academia, Simone seguiu para o seu primeiro Batalhão, escolhendo como posto a cidade de Petrópolis, onde foi a primeira policial feminina. “Eu dava entrevista nas rádios e era parada na rua”, lembra. Três anos depois, partiu para o 21º Batalhão, na Baixada Fluminense, e conseguiu ficar, enfim, perto de casa. Lá instalada, recebeu o convite do governador Marcello Alencar para fazer a segurança da primeira-dama, Lucélia. O ano era 1995. “Minha vida mudou depois que fui parar ali. Inclusive foi por causa desse trabalho que conheci meu marido e consegui cursar direito.” Como Simone, Fernando Villas Bôas era oficial do gabinete militar do governo.

Em 1999, com o fim da gestão Marcello Alencar, ela deixou o cargo no gabinete e engravidou; já o marido prestou concurso para ser delegado. Depois da licença-maternidade, Simone também prestou concurso para delegada e fica um ano no cargo. “Eu queria algo a mais para a minha vida. Queria ser promotora.” Quando passou na prova da promotoria, o companheiro morreu por causa de uma picada de carrapato, que causou Rickettsiose, ou febre maculosa. “É como se ele estivesse esperando a minha vida se organizar para eu seguir em frente sozinha.”

Em 2007, Simone publicou a dissertação de mestrado de Fernando, que ele nunca pôde defender em banca, em forma de livro com o título Crime Organizado e Repressão Policial no Estado do Rio de Janeiro: Uma Visão Crítica. Hoje, ela está casada com um almirante da Marinha, que conheceu em um curso que fez na Escola Superior de Guerra. Ele vive em São Paulo, enquanto ela mora no Rio de Janeiro.

Perfil_Simone Sibilio (Foto: Pamella Moreno)

(Ilustração: Pamella Moreno)

Do luto, a promotora fez trabalho. “Me dediquei integralmente, o MP passou a ser minha vida. Se perguntar para a minha filha, ela vai dizer o mesmo.” Criou um protocolo de atuação no órgão: assim que um novo processo chegava, ela entrava em contato com os familiares. “Pedia que viessem ao meu gabinete e me apresentassem a vítima. Não aquela que estava no processo, mas como era de fato a pessoa. Isso faz toda a diferença no tribunal do júri.”

Foi dessa forma com os parentes de Marielle e Anderson, com quem ela e Letícia se encontravam quase mensalmente. Foi assim com os familiares das vítimas do Escritório do Crime (quatro denunciados), dos Intocáveis (13 denunciados) e da Gárgula (que culminou na prisão de Júlia Lotufo, em 2021), as três operações de maior repercussão em que Simone atuou como coordenadora do Gaeco, entre 2019 e 2020 . Diga­se de passagem, ela foi a primeira, e única, mulher a ocupar o cargo até então. “A vida das famílias enlutadas passa a girar em torno do caso. E o promotor é a única esperança que têm. Não tenho como fazer voltar a pessoa que perderam, mas tenho como fazer justiça.”

“A doutora Simone e a doutora Letícia eram um canal direto e de confiança pra família. Sempre firmes e nos passando segurança. Eram notórios o comprometimento e o profissionalismo que tinham e têm. Todo mundo sentiu a saída delas”, nos diz Anielle, por Whats­App.

Perguntamos ainda se a saída das promotoras afetou a confiança da família na solução dos assassinatos. “Nos desestruturou um pouco, mas infelizmente temos que seguir com o que temos, sem jamais perder as esperanças. Não temos outra opção. Se perdermos a esperança, não lutaremos mais”, responde. Sobre o promotor atual, Anielle diz que ainda não esteve com ele.

"Sempre tenho esperança nas instituições, mas elas também são movidas por interesses políticos e tropeços. A instituição falhou em não conseguir garantir a manutenção das promotoras. Quem perde é a democracia e o Rio de Janeiro"

Marcelo Freixo


O deputado federal Marcelo Freixo (PSOL­RJ), amigo próximo de Marielle, também falou conosco sobre a saída das promotoras. Para ele, “é um enorme prejuízo para a investigação”. “As duas estavam desde o primeiro momento no caso, conhecem cada página do inquérito, acompanharam de perto os sucessivos delegados que passaram pela Delegacia de Homicídios, tinham amplo conhecimento dos depoimentos e das linhas de investigação. É grave o afastamento. Ainda mais de uma maneira tão nebulosa, com a chegada de uma delação premiada estranha, [feita] por caminhos que não os legais e institucionais.”

Marcelo vai além e esclarece que, com sua posição, não está desqualificando o trabalho do promotor que as substituiu, mas que “se trata de um caso conhecido no mundo, e que são mais de três anos sem respostas sobre a autoria dos crimes”. “A gente está falando de uma vereadora brutalmente assassinada e até agora não sabemos a razão, nem o mandante. Sempre tenho esperança nas instituições, mas elas também são movidas por interesses políticos e tropeços. A instituição falhou em não conseguir garantir a manutenção das promotoras. Quem perde é a democracia e o Rio de Janeiro”, finaliza.

Depois do caso Marielle, Simone voltou no fim de setembro para sua promotoria, o 2º Tribunal do Júri da Capital. “Para mim, Tribunal do Júri é vida. É a chance de semear alguma esperança depois da morte, de sossegar um pouco o coração de quem fica”, ela diz. E admite um desejo: quer que este perfil possa inspirar outras mulheres que, como ela, aspiram atuar em setores tradicionalmente ocupados por homens. “Podemos estar em qualquer lugar que a gente queira, né? Defendo essa ideia.” Por fim, nos deixa o provérbio bíblico 4:18, que cita sempre em todos os seus júris: “A vereda dos justos é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito”. “É a minha busca como promotora.”