"Entrada ilegal ou proibida, sem convite” é um dos significados da palavra “intrusão” no dicionário Michaelis em português. E é daí que vem o nome dos chamados pensamentos intrusivos. O termo se refere àquelas ideias que vêm à mente dotadas de imagens e conteúdos desagradáveis.
Você está na cozinha e usa uma faca para cortar uma cebola. Com a faca em mãos, olha para sua mãe, que realiza uma tarefa ao seu lado. De forma involuntária, imagina o que aconteceria se você, de repente, a esfaqueasse. Eis um pensamento chamado de intrusivo. É provável que você se horrorize com a ideia e tente afastá-la o quanto antes, mesmo não acreditando que seria capaz de colocar a ação em prática.
Esse tipo de imagem pode surgir na mente e, por si só, não é indicativo de um transtorno. “Em muitos casos, os pensamentos podem não ter nenhum tipo de significado ou fazer sentido. São apenas pensamentos indesejados que se intrometem no meio de outros pensamentos”, comenta Antônio Geraldo, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em e-mail a GALILEU.
Uma pesquisa publicada em 2014 no periódico Science Direct — feita com estudantes universitários da África, Europa, Austrália, Ásia e Américas do Norte e do Sul — mostrou que mais de 90% dos participantes haviam apresentado pensamentos intrusivos durante os três meses anteriores ao estudo. A maioria deles era de caráter de dúvida, como pensar ter deixado a porta de casa aberta ou o ferro de passar ligado.
Nos Estados Unidos, estima-se que 6 milhões de pessoas sejam afetadas por essas “ideias invasoras”, de acordo com a Associação Americana de Ansiedade e Depressão (ADAA, na sigla em inglês). Os pensamentos indesejados podem ser dos mais diversos temas: violência, como machucar alguém próximo ou a si mesmo; sexual, o que pode envolver tabus ou imaginar cenas de sexo com familiares; e religiosa, que geralmente está relacionada a uma culpa e à necessidade de se confessar e pedir perdão como resposta.
“Pensamentos intrusivos indesejados podem ser muito explícitos, e muitas pessoas se sentem envergonhadas e preocupadas com eles, e por isso os mantêm em segredo”, escrevem dois especialistas da ADAA. Mas nem sempre essas manifestações são um problema.
“A gente só fala em uma doença ou de um transtorno quando eles realmente ocupam um tempo significativo e repercutem negativamente na vida do indivíduo”, pontua o psiquiatra Daniel Costa, do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).
Quando os pensamentos atrapalham a rotina
Nos casos em que os pensamentos intrusivos causam sofrimento ou incapacidade, eles podem indicar a presença de distúrbios como ansiedade, depressão ou até Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC).
Segundo Daniel Costa, toda e qualquer imagem gerada por pensamentos intrusivos pode adquirir um caráter compulsivo. No entanto, para que uma pessoa seja diagnosticada com TOC, por exemplo, deve haver não apenas a presença de obsessões, mas também que esses pensamentos ocupem no mínimo uma hora do dia do indivíduo e tenham impactos negativos em termos funcionais.
O TOC costuma ter sintomas precoces — que se manifestam entre a infância e o início da idade adulta —, como pensamentos ou impulsos repetitivos e involuntários. As compulsões, em geral, aliviam os desconfortos causados por tais obsessões.
Uma pessoa que está muito triste e deprimida também pode ter sua mente povoada por pensamentos indesejados, mas isso não necessariamente significa que ela tenha outro transtorno associado. “Ela pode ter pensamentos obsessivos que são melhor explicados pelo fato do humor dela estar deprimido”, diz Costa, que faz parte do programa de Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo (Protoc)*, um grupo de pesquisa e tratamento associado ao IPq.
A ciência também investiga hábitos que podem intensificar a presença desses pensamentos, sobretudo entre aqueles mais propensos a apresentá-los — caso de indivíduos com transtornos mentais. Um artigo publicado em 2020 na revista Clinical Psychological Science analisou os impactos da privação de sono nesses quadros.
Conduzida por pesquisadores da Universidade de York, na Inglaterra, a pesquisa avaliou a capacidade de os participantes controlarem os pensamentos intrusivos quando estavam descansados e quando não haviam dormido bem. Os resultados mostraram que a presença desses pensamentos aumentou em quase 50% quando os voluntários ficaram sem dormir.
“Este estudo oferece uma visão importante sobre o impacto do sono na saúde mental. Além do transtorno de estresse pós-traumático e da depressão, nossas descobertas podem ter implicações para o entendimento de outros problemas ligados a distúrbios do sono, como o transtorno obsessivo-compulsivo e a esquizofrenia”, disse em comunicado Scott Cairney, autor sênior da pesquisa.
“Será que eu sou capaz de fazer isso?”
Diariamente, milhares de pensamentos passam pela nossa cabeça e não respondemos a todos eles. Porém, uma das expressões mais utilizadas quando se fala sobre pensamentos intrusivos nas redes sociais, em especial no TikTok, é “meus pensamentos intrusivos venceram”. Nessa trend (ou “tendência”), o que as pessoas querem dizer, na prática, é que elas realizaram de forma impulsiva uma ideia estranha que surgiu.
A maioria dos casos, no entanto, se reduz a isso: ações inesperadas e estranhas que não chegam a ser desconfortáveis ou perturbadoras, e não configuram uma obsessão para quem as realiza.
“Esse é um tema meio tabu ainda na sociedade como um todo, então, por um lado, é muito bom ter mais informação, as pessoas falarem mais sobre isso. Por outro, gera esses efeitos colaterais no sentido de que as pessoas tendem a entender toda e qualquer manifestação como algo da linha patológica e se autodiagnosticar”, comenta o psiquiatra do IPq.
O pensamento intrusivo não reflete necessariamente um desejo ou vontade. Pesquisadores da Universidade da Colúmbia Britânica (UBC), no Canadá, investigaram a presença dessas ideias entre mulheres no pós-parto. Segundo os autores, é comum que muitas tenham pensamentos intrusivos associados a causar algum dano ao próprio bebê.
Publicada em 2022 no periódico Journal of Clinical Psychiatry, a pesquisa analisou 763 puérperas na Colúmbia Britânica. Dessas, 388 responderam a questionários e entrevistas sobre "pensamentos intrusivos indesejados" ligados a danos relacionados ao filho, TOC e agressão materna em relação ao bebê.
Entre as 151 mulheres que manifestaram esses pensamentos de dano intencional, quatro relataram comportamento agressivo em relação ao seu bebê — resultando em uma prevalência estimada em 2,6%.
"O que sabemos é que quando os pensamentos são indesejados e intrusivos, a mãe não está mais em risco de prejudicar seu bebê do que as mulheres que estão apenas relatando pensamentos acidentais de prejudicá-los, porque esses pensamentos são realmente normais e acontecem o tempo todo", disse Nichole Fairbrother, professora associada do departamento de Psiquiatria da UBC, em nota.
No caso do diagnóstico de TOC, Costa explica que os pacientes tendem a apresentar um fenômeno chamado fusão entre pensamento e ação. “A pessoa fica na dúvida se pode realmente representar um risco de vir a agir em função desse pensamento.” Mas, claro, isso para quem tem o diagnóstico. Se você sente que essas ideias têm prejudicado sua vida, procure um profissional em saúde mental.
Como identificar um pensamento intrusivo?
Um artigo no portal Harvard Health Publishing, da Escola de Medicina da Universidade Harvard, nos EUA, sugere como identificar pensamentos intrusivos:
- O pensamento é incomum para você: um pensamento intrusivo geralmente é muito diferente dos seus pensamentos típicos. Por exemplo, pode ser inesperadamente violento.
- O pensamento é perturbador: se um pensamento é perturbador e é algo que você quer tirar da sua mente, pode ser um pensamento intrusivo.
- O pensamento parece difícil de controlar: os pensamentos intrusivos muitas vezes são repetitivos e não desaparecem.
Segundo o artigo de Harvard, as dicas para afastar essas ideias são:
- Identifique o pensamento como intrusivo. Pense para si mesmo: "Isso é apenas um pensamento intrusivo; não é como eu penso, não é no que acredito, e não é o que quero fazer."
- Não brigue com ele. Quando tiver um pensamento intrusivo, apenas aceite-o. Não tente fazê-lo desaparecer.
- Não se julgue. Saiba que ter um pensamento estranho ou perturbador não indica, necessariamente, que há algo errado com você.