• Texto: Roger Marzochi | Edição: Luiza Monteiro
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O ator Demerson D’alvaro representou Exu no desfile da Acadêmicos do Grande Rio, no Carnaval de 2022 no Rio de Janeiro. A escola venceu no grupo especial. (Foto: Getty Images)

O ator Demerson D’alvaro representou Exu no desfile da Acadêmicos do Grande Rio, no Carnaval de 2022 no Rio de Janeiro. A escola venceu no grupo especial. (Foto: Getty Images)

Era uma vez um bebê que, de tão faminto ao nascer, sugou todo o leite de sua mãe até secá-lo. Ainda com fome, o menino devorou a mulher que o trouxe ao mundo. Como castigo, foi sentenciado a viver eternamente esfomeado. Essa é uma das várias mitologias sobre Exu, orixá iorubá cultuado no Brasil por religiões de matriz africana como Candomblé, Tambor de Mina e Batuque Gaúcho. A fome do filho de Iemanjá, irmão de Ogum e Oxóssi, também é explicada em outro mito, no qual ele é expulso pelo rei devido a sua índole de causar confusão. Esquecido pelo reino, ele prega toda sorte de estripulias até ser reverenciado com comidas e bebidas.

Essa figura é uma espécie de correio celeste, responsável pela comunicação entre os vivos e os outros orixás, assim como foi Hermes para os gregos e Mercúrio para os romanos. Mas Exu só leva a mensagem se receber primeiro oferendas. Embora seja o orixá da fertilidade masculina, ele aceita outros pedidos e também transmite as preces dos fiéis a outras divindades. Quer conhecer um amor ou engravidar? Peça ajuda a Oxum; quer justiça? Peça a Ogum; quer se curar de uma doença? Recorra a Obaluaê. Mas, em todos esses casos, o mensageiro será Exu, o orixá do movimento.

A homenagem a Exu e a vitória com o enredo foram consideradas históricas e um sinal de esperança contra a intolerância religiosa (Foto: Getty Images)

A homenagem a Exu e a vitória com o enredo foram consideradas históricas e um sinal de esperança contra a intolerância religiosa (Foto: Getty Images)

E foi com muito movimento que ele foi reverenciado no Carnaval de 2022. Em abril, a Sapucaí abriu alas para Exu: com o enredo Fala, Majeté! Sete chaves de Exu, a Acadêmicos do Grande Rio desfilou no Rio de Janeiro e conquistou a vitória inédita no grupo especial. O objetivo dos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora era desmistificar o espírito como uma entidade do mal.

Há muito tempo a representação de Exu é deturpada em sociedades cristãs. “Ele fazia coisas muito proibidas para os católicos. Eles achavam que era o diabo”, conta o sociólogo Reginaldo Prandi, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e autor de mais de 30 livros, como Mitologia dos Orixás (Companhia das Letras, 2000). Entre os aspectos considerados pecaminosos pela Igreja estava o fato de que Exu precisa receber oferendas para atender a preces, além de ser responsável pela ereção masculina na relação sexual. “Desde os séculos 13 e 14, Exu começou a ser comparado com o diabo judaico-cristão e manteve essa fama até hoje”, explica Prandi.

Com a vitória da Grande Rio, há quem veja esperança no combate a essas ideias. “Diversos personagens ligados à afro-religiosidade são narrados ano a ano, mas Exu é o mais vilanizado, nunca foi protagonista de um grande desfile. No discurso da intolerância, Exu é a encarnação do mal. E, sem dúvida, esse enredo foi o mais corajoso e ousado”, avalia Gabriel Henrique Pinheiro, coordenador da LUPA Carnaval, Liga Universitária de Pesquisadores e Artistas de Carnaval da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Um afronte à intolerância é também o fato de que quem representou a entidade foi o ator Demerson D’alvaro, que tem mãe evangélica, avó candomblecista, prima budista e afilhado e sobrinho testemunhas de jeová. “Oito escolas de samba no Rio trataram da questão racial ou indígena. E quem ganha é quem traz o Exu. É alguma coisa nos anunciando novas eras”, diz o babalaô Ivanir dos Santos, um dos criadores da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, que ocorreu em 2008 no Rio para unir líderes de várias religiões contra a intolerância. A realidade, porém, é outra: o preconceito contra diversas crenças segue vivo, e crescendo, no Brasil

Preconceito em alta

Religiões afro- -brasileiras, como Candomblé e Umbanda, estão entre as que mais sofrem violência no país (Foto: Getty Images)

Religiões afro- -brasileiras, como Candomblé e Umbanda, estão entre as que mais sofrem violência no país (Foto: Getty Images)

“Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” Eis o que diz o artigo 1º da Lei 9.459, de 13 de maio de 1997. Quem executar, induzir ou incitar essas práticas pode ser
condenado a pena de um a três anos de prisão, além de multa. Ainda assim, esses crimes acontecem no país.

No primeiro semestre de 2019, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) registrou um crescimento de 56% nas denúncias de intolerância religiosa — a maioria contra crenças de matriz africana e espíritas. De acordo com o Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do MDH, só em 2021 ocorreram 682 violações à liberdade religiosa, um crescimento de 15% em relação a 2020. De janeiro a maio de 2022, já foram identificados 311 episódios. No ano passado, os principais estados onde houve denúncias foram Rio de Janeiro (162), São Paulo (127), Rio Grande do Sul (56), Minas Gerais (53) e Bahia (51).

O Observatório de Liberdade Religiosa, do Centro de Articulações de Populações Marginalizadas (Ceap), no Rio de Janeiro, organizou em um pré-relatório denúncias de casos de intolerância no estado em 2021. Os relatos chegam à Comissão de Combate à Intolerância Religiosa por meio de relatos na internet, notícias das agências dos movimentos sociais, lideranças religiosas ou das próprias vítimas. Os episódios vão de injúria e ameaças a depredação de terreiros, por exemplo. Em mais da metade dos casos, os agressores se identificaram como evangélicos.

As crenças indígenas também sofrem com a violência religiosa, que foi denunciada em março por Tatiane Sanches, do povo Guarani Kaiowá, na 49ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Pelo menos sete casas de reza foram incendiadas em 2021 no Mato Grosso do Sul, conforme relatado na Aty Guasu, a Grande Assembleia dos povos Kaiowá e Guarani. “A cada dia, igrejas evangélicas fundamentalistas invadem nossos territórios, deixando um rastro de extermínio cultural”, acusou Sanches. “Queimar uma casa de reza representa uma violência tão profunda que atinge nosso corpo, mente e alma.

Intolerância contra crenças indígenas e muçulmanos também é parte da realidade no Brasil (Foto: Getty Images)

Intolerância contra crenças indígenas e muçulmanos também é parte da realidade no Brasil (Foto: Getty Images)

Muçulmanos são outras vítimas do preconceito. O Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (Gracias), do campus de Ribeirão Preto da USP, está preparando o primeiro relatório sobre islamofobia no Brasil, mostrando violações graves à liberdade religiosa no país. “Os casos de ataques ocorrem, na maioria das vezes, contra mulheres, relatando episódios de violência e intolerância”, destaca o pedagogo Felipe Freitas de Souza, membro do Gracias que estuda em seu doutorado a islamofobia na internet. “Judeus e negros não são os únicos que sofrem racismo. A intolerância religiosa contra muçulmanos também tem um componente racista.” Mas, afinal, de onde vem tanto ódio? É o que pesquisadores buscam entender.

Ciência contra o fundamentalismo

O crescimento do fundamentalismo religioso e da intolerância, que são dois fenômenos sociais interconectados, está atraindo cada vez mais a atenção de estudiosos das áreas de ciências sociais. “É um banho de água fria. O que está em jogo são conquistas democráticas, o que está sendo tensionado é a própria democracia”, lamenta o historiador André Chevitarese, coordenador do Laboratório de História das Experiências Religiosas da UFRJ e autor do livro Fundamentalismo religioso cristão (Klíne, 2021). “Quando uma criança, um adolescente, homem ou mulher são atacados por estarem de branco, ou quando uma casa religiosa é incendiada ou tem bens sagrados vilipendiados, é uma questão contra a democracia.”

O laboratório liderado por Chevitarese busca entender, a partir de pesquisas, as raízes da intolerância religiosa, que remonta há séculos. E há outros especialistas brasileiros intrigados com essa história. É o caso da historiadora Vanicleia Silva-Santos, curadora associada da Coleção de Arte Africana do Penn Museum, da Universidade da Pensilvânia (EUA), e orientadora de mestrado e doutorado em História na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora em História da África e suas diásporas, Silva-Santos já publicou diversos livros dedicados ao tema. Em O Marfim Africano como Insígnia de Poder, com previsão de lançamento para junho, ela encontrou 40 mil processos nos tribunais da Inquisição em Portugal entre 1636 até 1822, com acusações contra judeus, além de muçulmanos de Portugal, da África e do Brasil que realizavam cultos contrários à Igreja Católica.

Sua pesquisa mostra também que o sincretismo religioso dos escravos brasileiros, com frequência retratado de forma romântica, foi alvo de muita violência. Quando os padres contaram aos negros a história na qual Santo Antônio conversou com um morto para inocentar seu pai, que fora acusado de matar o homem, os escravizados fizeram uma relação com os orixás, pois o santo poderia se comunicar com o outro mundo. Muitos foram presos ou mortos quando a Igreja descobriu que utilizavam a imagem cristã em suas cerimônias. “Aquilo era uma maneira que encontraram de se comunicar com os espíritos na África Central na diáspora. O Santo Antônio era uma forma de ressignificar o aprendizado da colonização”, analisa a docente da UFMG.

E assim como a ciência era uma ameaça à Igreja na Idade Média, no início do século 20 a história se repetiu. A também historiadora Tayná Louise de Maria, do programa de pós-graduação em História Comparada da UFRJ e integrante do Laboratório de Experiências Religiosas, estuda desde a graduação o fenômeno do fundamentalismo. Em projeto de iniciação científica, ela investigou o Monkey Trial, ou Julgamento do Macaco, como ficou conhecido o processo ocorrido em 1925 no estado do Tennessee, nos Estados Unidos, contra o professor John Thomas Scopes.

Ele foi acusado de infringir a Lei Butler, daquele mesmo ano, que proibia escolas públicas de negarem o criacionismo e ensinarem a teoria evolucionista de Charles Darwin. “Esse julgamento marca a primeira fase do movimento fundamentalista”, pontua de Maria. A historiadora analisou, em 36 jornais brasileiros, as notícias do julgamento — o primeiro transmitido pelo rádio e com destaque na imprensa nacional estadunidense — e o consequente indiciamento do professor. Para sua surpresa, todos os veículos do Brasil considerados na pesquisa foram favoráveis a Scopes. Influenciada pela separação entre Igreja e Estado, que marcou a primeira Constituição da República, a imprensa do país tinha orientação positivista.

"Quando uma casa religiosa é incendiada ou tem bens sagrados vilipendiados, é uma questão contra a democracia”"

André Chevitarese, historiador e coordenador do Laboratório de História das Experiências Religiosas da UFRJ

No mestrado, Tayná continuou investigando o fundamentalismo religioso. Seu foco, porém, foram a Assembleia Geral Presbiteriana, ocorrida em 1910 nos Estados Unidos, e a série de livros lançados a partir de 1905 com artigos combatendo a ciência. Essas obras ficaram conhecidas como The Fundamentals (“Os Fundamentos”, em tradução livre) e deram origem à denominação “fundamentalista religioso”. Já a Assembleia estabeleceu crenças que todo cristão deveria seguir: a Bíblia não contém erros, Jesus nasceu de uma mulher virgem, Jesus era alguém sem pecado, Jesus ressuscitou e Jesus vai voltar.

A pesquisadora avaliou a influência desses eventos na Igreja Católica brasileira na década de 1920. Ela encontrou ecos na figura do arcebispo do Rio de Janeiro Dom Leme — que era contra a laicidade do Estado e a favor de que a Igreja retomasse o poder que havia antes da República — e no deputado Plínio Marques. O político defendia que o governo adotasse o catolicismo como religião oficial, além do ensino religioso nas escolas. “Eu concluí que, além do movimento fundamentalista ir contra qualquer ideia moderna, ciência, teoria do conhecimento, liberdade religiosa, ele é também camaleônico”, relata Tayná. A referência ao réptil que muda de cor se refere ao fato de que os fundamentalistas não lutam contra um único inimigo. “Ao mesmo tempo que em alguns lugares [o fundamentalismo] foi contra a ciência, no Brasil foi contra a laicidade”, explica a historiadora, que no doutorado está estudando a ação fundamentalista de evangélicos e católicos da Segunda Guerra Mundial até os anos 2000. “[Nesse período,] O principal inimigo passa a ser o comunismo e o humanismo secular.”

Mesmo com a distinção entre Estado e religião e a aceitação da liberdade de culto, as religiões afro-brasileiras continuaram a ser perseguidas. Em sua tese Marchar não é caminhar, defendida no doutorado em História Comparada pela UFRJ, Ivanir dos Santos aponta que o reconhecimento pelo Estado brasileiro começou ocorrer no fim da década de 1970, sobretudo pela atuação do “Papa Negro da Umbanda”, como ficou conhecido o escritor e pai-de-santo Tancredo da Silva Pinto. Com grande habilidade política, o líder fundou confederações umbandistas em diversos estados e atuou, durante a ditadura militar, para que os cultos afro-brasileiros fossem regulamentados. Mas foi só em 1988, com a nova Constituição, que essas religiões foram plenamente aceitas em termos constitucionais.

A luta continua

Só em 1988 as religiões afro-brasileiras foram plenamente aceitas em termos constitucionais. (Foto: Getty Images)

Só em 1988 as religiões afro-brasileiras foram plenamente aceitas em termos constitucionais. (Foto: Getty Images)

Na segunda metade do século passado, as igrejas pentecostais e neopentecostais ganharam força por aqui e tomaram as religiões de matriz africana como inimigas. Exu era o maior dos vilões, com frequência comparado ao diabo. “No catolicismo, o diabo é sempre vencido. Mas os evangélicos dão muita atenção ao diabo: todo mal que acontece eles acham que é obra dele. Ninguém é pecador, mas sim vítima do diabo. E esse diabo não é genérico, etéreo, distante, como é para os católicos; é um diabo que pode ser visto na sua frente, nas entidades da Umbanda e do Candomblé”, opina Reginaldo Prandi.

Na visão do historiador Rogério Souza, que está estudando em seu doutorado também na UFRJ a identidade do negro dentro de comunidades evangélicas, a identificação das entidades de religiões afro-brasileiras com o diabo, principalmente o Exu, ocorre tanto por questões históricas quanto pela característica do espírito na Umbanda. No Candomblé, Exu é orixá; na Umbanda, ele é expresso em espíritos de indivíduos que tiveram uma vida marginalizada, como prostitutas, ladrões e pessoas que vivem nas ruas, e que após a morte buscam ajudar a humanidade.

Com autorização dos líderes religiosos, Souza conduz seu estudo na igreja batista Nossa Igreja Brasileira, no centro do Rio, e na Assembleia de Deus Rubens Vaz, no Complexo da Maré. Nesta, notase um forte discurso de demonização das religiões afro-brasileiras; já no centro batista, o pastor tem vínculos com o movimento negro, mas refuta suas raízes históricas, apesar de respeitar as religiões de origem africana.

Buscando mudar a visão marginalizada dessas religiões, o babalorixá Erisvaldo Santos, doutor em história pela UFMG e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), pesquisa a participação de profissionais de alta formação e acadêmicos em cargos de sacerdotes no Candomblé. “Ao contrário do que esperavam os racistas, o acesso aos altos níveis de escolaridade não afastou negros e negras do Candomblé. Há muitos brancos dentro do Candomblé com altos níveis de escolaridade e exercendo liderança, porque é uma tradição aberta, não é uma tradição para negros, é de negros para o mundo”, afirma Santos, que é membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da UFOP

“A intolerância é fruto da ignorância do outro. Quando você desconhece o outro e não se identifica com ele, essa ignorância acaba se transformando em medo e terror"

Reginaldo Prandi, sociólogo e professor emérito da USP

E assim, aos poucos, mitos e preconceitos vão sendo desbancados pela academia. O título da Grande Rio trouxe mais visibilidade a essas discussões, mas ainda há imensos desafios à frente. “A intolerância é fruto da ignorância do outro. Quando você desconhece o outro e não se identifica com ele, essa ignorância acaba se transformando em medo e temor. E com isso desenvolve grande preconceito, que pode ser usado politicamente”, comenta Reginaldo Prandi. Que o destaque de Exu no Carnaval seja a expressão de uma mensagem de tolerância às mais diferentes formas de religiosidade — e à democracia.

Praticar, induzir ou incitar o preconceito religioso é um crime previsto por lei no país. (Foto: Getty Images)

Praticar, induzir ou incitar o preconceito religioso é um crime previsto por lei no país. (Foto: Getty Images)