Denise Fraga
 
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Minha avó era costureira. Se havia uma coisa que eu gostava de fazer era ir à loja de tecidos com ela. Me embrenhava, pequena, por entre os corredores apertados daquela floresta de estampas, me perdendo nos desenhos. Às vezes, minha avó pedia ao modelista da loja que desenhasse. Eu vibrava com a mágica daqueles três minutos de traços rápidos definindo um vestido. Um dia o modelo era para mim.

Foto ilustrativa: Menina foi abusada quando estava com 4 anos — Foto: Getty Images
Foto ilustrativa: Menina foi abusada quando estava com 4 anos — Foto: Getty Images

O vendedor colocou o tecido na frente do meu corpo, mostrando pra minha avó como a estampa me cairia bem. Senti as costas da mão dele no meu seio, se é que se poderia chamar assim aquelas pequenas protuberâncias que denunciavam os meus 11 anos. Gelei. Minha avó, alegre, conversava com o homem. Pensei que poderia ser coisa da minha cabeça. Mas, de novo, ele esticou o tecido na minha frente, roçando o bico do meu pequeno mamilo. Bem ali, na frente dela.

Fiquei com uma sensação de sujeira no peito por um bom tempo. Nunca contei para a minha avó. Nem para a minha mãe. Só me dei conta dessa vivência de abuso quando, há pouco tempo, a compartilhei com uma amiga. A palavra abuso anda nas bocas. Corremos até o risco de exagerar. Todas e todos nós lembramos na vida de alguma sensação de abuso.

Mas o fato é que temos a chance de perceber tardiamente como naturalizamos crimes de que fomos vítimas no nosso passado. O incômodo que sinto ao descrever a cena na loja de tecidos me permite imaginar o horror experimentado por tantas crianças por este Brasil afora vítimas de abuso sexual que, já adultas, continuam a carregar traumas, muitas vezes, em silêncio.

É um assunto difícil, bem sabemos. Mas comecei a pesquisar. Estou em cartaz com uma peça em que conto uma história de abuso sexual infantil, e algumas pessoas que a assistem me esperam no saguão do teatro para me relatar suas assombrosas experiências de criança. Uma história puxa a outra. Mais: o relato de uma história dá coragem para a outra, enfim, ser contada.

“Todas e todos nós lembramos na vida de alguma sensação de abuso”
— Denise Fraga

Conheci, então, Luciana Temer, diretora do Instituto Liberta, cujo objetivo é alertar, por meio de relatos, a importância de colocarmos luz sobre um fenômeno que determina muitos distúrbios comportamentais no nosso país. Só em 2022, foram feitos 40.659 boletins de ocorrência de estupros de menores de 13 anos. Nesses casos, 71,5% foram praticados por familiares. Em pesquisa do DataFolha, 32% dos entrevistados sofreram algum tipo de abuso sexual na infância. Só 11% denunciaram, e 26% contaram para alguém. Esses números são oficiais, ou seja, apenas de casos que foram denunciados.

O Instituto Liberta tem esse nome para tentar libertar meninos e meninas, mães e avós do silêncio carregado por tanto tempo. Denunciar, contar a sua história, cria uma cadeia de relatos que, se não cura os traumas, faz nascer uma irmandade poderosa.

Na peça, cito um trecho de Simone de Beauvoir: “Toda dor dilacera, mas o que a torna intolerável é que quem a sente tem sempre a sensação de estar separado do resto do mundo. Partilhada, a dor, ao menos, deixa de ser um exílio.” Conte. Denuncie. Talvez liberte.

Denise Fraga é atriz, casada com o diretor Luiz Villaça e mãe de Nino, 23 anos, e Pedro, 21 (Foto: Cauê Moreno/Editora Globo) — Foto: Crescer
Denise Fraga é atriz, casada com o diretor Luiz Villaça e mãe de Nino, 23 anos, e Pedro, 21 (Foto: Cauê Moreno/Editora Globo) — Foto: Crescer

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