Poucas situações causam tanta agonia quanto saber que a vida do seu filho está, literalmente, nas mãos de outras pessoas, em uma mesa de cirurgia. Foi essa a situação vivida por Graziele Souza, 23, mãe da pequena Ester, que nasceu prematura de 35 semanas e precisou passar por um procedimento arriscado, que era sua única chance de sobreviver. Essa chance era muito pequena, mas os pais, é claro, queriam tentar tudo o que estivesse ao alcance. Infelizmente, ela não resistiu, mas deixou uma marca de amor e resistência que vai ficar para sempre na família.
![Graziele e o marido, Keslen, com os filho, Joshua e a pequena Ester — Foto: Arquivo pessoal/ Graziele Souza](https://cdn.statically.io/img/s2-crescer.glbimg.com/osKwmBSTOi-uwXVvtgby89N3GVA=/0x0:1200x1600/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_19863d4200d245c3a2ff5b383f548bb6/internal_photos/bs/2023/y/t/hyX9pLSKqXPmqOKSupxw/whatsapp-image-2023-11-17-at-15.16.22.jpeg)
Graziele, que também tem um filho mais velho, de 1 ano e 7 meses, fez o primeiro ultrassom com 6 semanas. Diferente da primeira gestação, em que tudo ocorreu bem e dentro do esperado, desta vezes, já nesse primeiro exame, os médicos detectaram que havia algo errado. “Eu estava com um descolamento do saco gestacional”, conta a mãe, em entrevista exclusiva a CRESCER. Mas não parecia ser nada tão preocupante. Os médicos diziam que o repouso poderia resolver.
Na 15ª semana, os pais fizeram um ultrassom particular para saber o sexo do bebê e ficaram felizes da vida ao saber que teriam uma garotinha. Mas, na ocasião, souberam também que havia algo além… “O médico só me disse para fazer o ultrassom morfológico com urgência e que a gravidez precisaria ser acompanhada mais de perto”, conta a mãe. “Fiquei assustada”, diz. O médico não adiantou nada, só disse que ela precisaria fazer o morfológico, mas Graziela pegou as imagens do ultrassom e não conseguiu ver as mãozinhas. “Vi os pés, a cabeça, o corpo, tudo, mas, nos braços, só tinha como se fosse um toquinho”, lembra.
De fato, quando ela fez o morfológico, com 22 semanas, descobriu, depois de muita tensão, que Ester não tinha ambas as mãos. Além disso, ela tinha uma malformação grave no coração. “Ela só tinha metade do coração. O ventrículo esquerdo era muito estreito e não teria força suficiente para bombear o sangue para o corpo”, conta a mãe. Pouco tempo depois, ela e o marido já souberam que a bebê precisaria de uma cirurgia assim que nascesse, na primeira semana de vida. Ester tinha uma cardiopatia congênita grave, conhecida como Síndrome de Hipoplasia do Coração Esquerdo (SHCE).
O que é Hipoplasia do Coração Esquerdo?
A Síndrome de Hipoplasia do Coração Esquerdo (SHCE) é uma das cardiopatias mais preocupantes. Isso porque a maioria das estruturas do lado esquerdo do coração acaba sendo muito pequena e pouco desenvolvida para fornecer o fluxo de sangue suficiente para as necessidades do corpo. Na SHCE, o defeito mais grave é o ventrículo esquerdo pequeno, que precisa ser suficientemente grande e forte para bombear o sangue oxigenado para todo o corpo.
De acordo com o médico José Cícero Stocco Guilhen, cirurgião cardiovascular pediátrico do Hospital e Maternidade Santa Joana (SP), nesse tipo de síndrome, o sangue chega ao corpo do bebê por meio do canal arterial, uma comunicação entre a circulação sistêmica e pulmonar. "Se a doença não for tratada, esse canal vai fechar e a criança pode evoluir para óbito", esclarece o médico.
Guilhen acrescenta, ainda, que a SHCE é uma cardiopatia que pode, sim, ser incompatível com a vida se não tiver um encaminhamento rápido após o nascimento do bebê. "Caso não seja tratada no período neonatal em 15 dias, a mortalidade é mais de 80%", alerta o especialista.
Gravidez de risco e internação
“Fui encaminhada a um hospital especializado em cardiopatia infantil de alto risco em São José do Rio Preto (SP). Fiquei internada e fazia ultrassons diários para acompanhar”, explica. Então, com seis meses de gestação, mais um problema: a placenta de Graziele parou de enviar os nutrientes de que Ester precisava para crescer e o líquido amniótico também diminuiu. A condição obrigaria os médicos a anteciparem o parto. Mas tinha outra questão: para fazer a cirurgia cardíaca que salvaria sua vida assim que nascesse, Ester precisaria ter no mínimo 2 kg e ela não estava nem perto disso. “No oitavo mês, Ester não estava mais recebendo nutriente nenhum da placenta e começou a entrar em sofrimento fetal”, conta a mãe. Não tinha mais jeito. Eles precisariam fazer a cesárea. “Os médicos disseram que, se ela não fizesse a cirurgia, não ia resistir, mas que só a operariam com mais de 2kg, então, na minha cabeça, ela ia falecer logo que nascesse”, diz Graziele.
Ester nasceu no dia 23 de agosto, com 35 semanas e 5 dias de gestação, pesando 1,3 kg, mais de 1 kg abaixo do esperado para aquela idade gestacional e também abaixo do mínimo necessário para a operação que poderia salvá-la. “Ela foi para a UTI Neonatal”, relata a mãe.
Foi um período difícil. Graziele ficou em uma casa de abrigo em São José do Rio Preto para poder acompanhar a filha. Ao mesmo tempo, tinha o mais velho, ainda muito pequeno, a quilômetros de distância, em casa. Ela precisava se dividir. “Fiquei duas semanas direto em Rio Preto e depois vim embora, por causa do meu filho. Mas eu ia de van para vê-la um dia sim, um dia não”, recorda-se. Na gravidez, quando ela ficou internada, por um longo período em outra cidade, foi um grande desafio, porque os pais nunca tinham ficado tanto tempo longe do primogênito. “Tive que mandá-lo para Minas Gerais, para a casa da minha avó, que cuidou dele”, diz a mãe. “Ficamos um mês e dez dias longe dele. Isso nunca tinha acontecido desde que ele nasceu. Lidar com a distância, com ele tão pequeno (ele estava com 1 ano e 3 meses), foi muito difícil”, afirma.
O irmão mais velho, ainda muito pequeno, não entendia muito bem o que estava acontecendo, mas os pais chegaram a conseguir uma autorização para levá-lo à UTI, onde ele a conheceu. “Como ela poderia falecer a qualquer momento, eles deixaram”, diz a mãe. “Foi importante, porque ele a conheceu, pude pegar os dois juntos, a equipe do hospital foi muito humana”, agredece.
Até aquele momento, a pequena Ester, prematura e com meio coração estava se mostrando uma grande guerreira. “Quando ela nasceu, os médicos conversaram comigo e com o meu marido e falaram que ela ia falecer, que precisávamos ficar o máximo de tempo possível com ela e que ela não aguentaria esperar até chegar ao peso ideal para poder fazer a cirurgia e que, mesmo que aguentasse, esse processo na UTI, um bebê prematuro, risco de infecção… Seria difícil”, lembra. Mas a bebê resistiu - e os pais também! Com uma medicação que ajudava a manter o coração em funcionamento, em dois meses, Ester alcançou não apenas os 2 kg, mas 3 kg.
![Ester chegou a surpreender, sobrevivendo dois meses na UTI Neonatal e ganhando peso — Foto: Arquivo pessoal/ Graziele Souza](https://cdn.statically.io/img/s2-crescer.glbimg.com/M9SKZo80_J-d8_ATTrBSaXIay1k=/0x0:1200x1600/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_19863d4200d245c3a2ff5b383f548bb6/internal_photos/bs/2023/7/B/5U3ftITeu2UNBfBrlkkg/whatsapp-image-2023-11-17-at-15.16.44.jpeg)
Uma decisão muito difícil
Porém, os riscos para ela ainda eram muito grandes. Os médicos se reuniram e depois explicaram para os pais que, mesmo com a cirurgia, seria muito difícil que a pequena sobrevivesse. “Eles disseram que o coraçãozinho de Ester já estava há dois meses, apenas pela metade, naquele esforço todo… Se eles operassem, o coração, provavelmente, não teria forças para voltar a bater”, afirma. O risco era imenso.
Na cirurgia, os médicos precisariam retirar todo o sangue do corpo da bebê, que seria mantido resfriado, enquanto eles mexiam no coração. Depois, o sangue é reaquecido e colocado de volta no corpo. Então, o coração precisa reagir e bater para começar a bombear novamente. “E, nesse processo de voltar o sangue para o corpo, se o coração estiver fraco, ele não volta a bater. Era o caso dela”, relata.
Toda essa conversa era para explicar para Graziele e para o marido que eles tinham duas opções: desligar os aparelhos e deixar Ester ir embora ou tentar a cirurgia, sabendo que, muito provavelmente, ela iria embora logo depois. As chances eram mínimas. Mas os pais se agarraram à chance e optaram pela cirurgia arriscada. “Nunca perdemos a fé”, lembra a mãe. “Ela tinha sobrevivido durante aqueles dois meses e, a cada grama que ganhava, considerávamos uma conquista. Então, não podíamos desistir”, diz ela. “Mas foi a decisão mais difícil do mundo. Chegamos a pensar que, se ela morresse na cirurgia, pelo menos estaria anestesiada. Isso também nos ajudou a optar pela cirurgia”, confessa.
Porém, tudo aconteceu como os médicos haviam antecipado. Ela tinha aguentado todo o processo mas, quando o sangue voltou para o corpo, o coração não aguentou e ela teve uma parada. “Não teve forças para voltar a bater e ela faleceu no dia 19 de outubro”, diz a mãe, enlutada. Receber a notícia das médicas foi complicado. Graziele já desconfio quando pediram para ela ir a uma sala, onde encontrou a psicóloga do hospital. Então, ouviu o que tinha acontecido. “Nessa hora, parece que não tem ninguém lá em sua volta, parece que acabou o mundo”, descreve. “Você pode ter dez filhos, mas a dor de perder um, não tem como explicar. Não tem como. Meu chão abriu”, afirma.
Depois que Ester faleceu, a equipe levou o corpo dela para a mãe poder se despedir. “Fiquei lá com ela no colo. Eu nunca tinha pegado ela sem aparelho nenhum, eu nunca tinha abraçado, assim, só bem de levinho”, diz a mãe, que ficou uma hora com sua pequena, já sem vida, nos braços. “Ela ainda estava quente e, quando tive que entregá-la, foi uma dor absurda”, lembra.
Agora, um mês depois de perder sua pequena, Graziele tenta processar o luto e precisa seguir em frente, com força, para cuidar de seu menino. Ela também diz que se agarra à fé de que vai encontrar com a filha novamente um dia e, desta vez, sem sofrimento. “Quando eu for vê-la de novo, ela não vai ter malformação. Ela não vai ter nenhum problema de saúde. Ela vai estar bem. É isso. É isso que me ajuda a continuar”, completa.
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