• Juliana Malacarne
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Da esquerda para direita: Bruna e o filho caçula, Isaque, Liane e a filha Caroline, Cris e a filha Valentina  (Foto: Arquivo pessoal)

Da esquerda para direita: Bruna e o filho caçula, Isaque, Liane e a filha Caroline, Cris e a filha Valentina (Foto: Arquivo pessoal)

Em dezembro do ano passado, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou o registro e a venda de remédios à base de maconha no Brasil. Mas qual foi o impacto disso para as famílias que tem crianças que precisam do medicamento? Para responder essa questão, Crescer conversou com três mães que apontaram as mudanças em sua rotina e sugeriram caminhos para que todas crianças tenham acesso ao tratamento mais adequado para seu caso.

Na prática, a decisão da Anvisa significa que atualmente remédios compostos de CBD (canabidiol) e THC (tetra-hidrocanabidiol), derivados da Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, podem ser produzidos no país e comprados na farmácia desde que haja prescrição médica. O cultivo da planta, porém, continua proibido em território nacional, o que significa que as empresas nacionais interessadas em produzir esse tipo de medicamento precisam importar a matéria prima.

De acordo com artigo publicado por especialista da Universidade de Harvard, Estados Unidos, estudos comprovam que medicamentos à base de CBD são efetivos para o tratamento de algumas síndromes epilépticas como Dravet e Lennox-Gastaut, que geralmente não respondem a remédios convencionais. Além disso, há indícios científicos de que o medicamento possa ajudar com insônia e no controle de dor crônica. Os efeitos colaterais mais comuns, de acordo com a Universidade, são náusea, cansaço e irritabilidade.

Existem indícios de que o CBD combata alguns sintomas do autismo, mas nenhuma pesquisa em grande escala foi feita testando os efeitos do medicamento em pessoas com TEA. De acordo com o pesquisador Alysson Muotri, do Departamento de Pediatria e Medicina Molecular, da Universidade da Califórnia em San Diego, a ciência terá nos próximos anos respostas mais precisas sobre o assunto. “Não existe até o momento evidência cientifica de que o CBD auxilia no tratamento do autismo. Nos Estados Unidos, médicos podem recomendar o uso, mas receitar o CBD para pessoas com TEA é ilegal. Existem estudos de caso, estudos sem poder estatístico, ou algumas correlações retrospectivas (histórico familiar). O único estudo “prospectivo" (que estabelece uma relação causal entre o uso de CBD e melhoras no sintoma do autismo) vira de um ensaio clinico sendo conduzido aqui na Califórnia. Os resultados devem vir nos próximos 2 anos”, explica Muotri.

Confira o depoimento de três mães com filhos que recebem tratamento com medicamentos à base de canabidiol:

Liane Pereira e a filha Caroline (Foto: Arquivo pessoal)

Liane Pereira e a filha Caroline (Foto: Arquivo pessoal)

Liane Maria Pereira, 50 anos, professora aposentada, mãe de Caroline, 10 anos:

“Descobri o canabidiol em 2014 ao ler notícias na internet sobre pais que traziam o medicamento de forma ilegal dos Estados Unidos para tratar as crises convulsivas da filha. No mesmo ano, a Caroline, minha filha que na época tinha 6 anos, ficou cerca de seis meses internada por causa de convulsões diárias, as vezes mais de 50 crises em um período de 24 horas. Até então, os médicos não sabiam exatamente o que ela tinha. Quando nasceu na 39ª semana, Carol não aparentava ter nenhum problema de saúde, mas aos 25 dias de vida teve a primeira crise convulsiva. Naquele dia, ela ficou durinha, começou a babar, tremer, e quase foi a óbito. A partir daí teve várias crises de diferentes tipos.

Aos 3 anos, ela já tinha dezenas de convulsões por dia. Isso interferiu muito na qualidade de vida dela porque ou ela estava convulsionando ou dormindo. Carol começou a perder o equilíbrio, foi parar em uma cadeira de rodas, perdeu a deglutição, sofreu por muitas pneumonias por aspiração e teve que colocar sonda gástrica.

Em agosto de 2015, ela foi internada novamente por causa das convulsões e finalmente confirmaram o diagnóstico de Síndrome de Dravet, doença que além de uma epilepsia de dificílimo controle provoca atraso na fala e problemas motores. Nesse momento, já tínhamos tentado dezenas de remédios tradicionais, muitos com efeitos colaterais terríveis e nada conseguia controlar as convulsões. Refleti muito, conversei com a médica e ela concordou em receitar o uso do CBD importado.

Antes do CBD, o prognóstico que o médicos davam à Carol era de que ela não voltaria a andar. Pensando nesse quadro, temos um milagre nas mãos porque a cadeira de rodas da Carol já foi doada, a sonda gástrica foi retirada em abril de 2019 e até líquidos ela já consegue tomar sem o uso de espessantes. Não curamos a síndrome e ela ainda tem convulsões, mas conseguimos qualidade de vida.

A liberação da venda do CBD nacional é uma luz no final do túnel, o início de um caminho. Mas na nossa rotina não muda nada porque temos desde abril de 2019 a liberação na Justiça e fazer nosso próprio óleo, que é o que tem funcionado. Nossa luta, porém, não é só pela Carol, mas por todos. Como o cultivo não é liberado no Brasil, as empresas continuam obrigadas a buscar a matéria prima no exterior, o que se reflete no preço alto do produto final. Como mãe de uma criança especial, sabendo a diferença que esse medicamento faz, eu gostaria que pudesse ser acessível a todos”.

Bruna Fernanda, o marido e os três filhos (Foto: Arquivo pessoal)

Bruna Fernanda, o marido e os três filhos (Foto: Arquivo pessoal)

Bruna Fernanda, 36 anos, estudante de Farmácia, Presidenta Associação Humanitária Canábica do Brasil, mãe de Mateus, 10, Rebeca, 4 e Isaque, 3:

Meus três filhos estão no espectro autista e o CBD permite que tenham mais qualidade de vida. Quando Mateus, meu filho mais velho, recebeu o diagnóstico fiz uma pesquisa aprofundada sobre os tratamentos disponíveis. Vi que em outros países o CBD já era usado, mas aqui no Brasil ainda era muito raro. Foi uma dura batalha para conseguir a prescrição e a autorização da Anvisa, mas o óleo ajuda o Mateus com seus principais problemas foco, concentração, insônia, fala, coordenação motora e agressividade.

Já a Rebeca foi diagnosticada aos 2 anos e o Isaque com 1 ano e também evoluíram bem com o tratamento. Com a decisão da Anvisa, nossa rotina ficou um pouco melhor porque o prazo da validade da autorização para o uso do medicamento foi ampliado de um para dois anos, diminuindo a burocracia. O preço, porém, continua em dólar para quem precisa comprar o que dificulta o acesso aos menos favorecidos”.

Cris e a filha Valentina (Foto: Arquivo pessoal)

Cris e a filha Valentina (Foto: Arquivo pessoal)

Cris Palacios, 42 anos, mãe de Valentina, 6 anos:

“Minha filha Valentina tem Síndrome de Down e autismo severo. Ela costumava se agredir muito, arrancava tufos de cabelo, se arranhava tanto que as mãos ficavam em carne viva, batia muito na parte frontal da cabeça e corria o risco de uma lesão irreversível. Eu precisava ficar o tempo inteiro ao lado dela, vigiando, para impedir que se machucasse. Não podia deixá-la com ninguém nem me afastar por alguns minutos.

Com a orientação do pediatra e neurologista, testamos uma série de remédios alopáticos e nada funcionou. Desesperada, fiz uma busca pela internet e encontrei o relato de uma mãe que tratava o filho com óleo de canabidiol. Conversei com o médico e, como nada estava tendo resultado, ele concordou em dar uma chance ao medicamento. Tive que quebrar muitas barreiras que tinha em relação à maconha, mas entendi que se trata de um composto isolado que tem efeito terapêutico.

No processo de comprar e importar o óleo com a autorização da Anvisa me assustei com os valores. Me ofereceram óleos de procedência duvidosa por um preço muito mais barato, mas eu jamais daria algo que não sei exatamente a composição para minha filha. Depois que o óleo importado finalmente chegou em 2014, fizemos algumas mudanças em relação a fórmula e quantidade, tivemos momentos de melhora e regressão, até encontrar o equilíbrio correto entre os componentes para a Valentina.

Quando conseguimos acertar a porcentagem entre o CBD e outros canabidioides como o THC ela ficou mais calma, feliz e tranquila. Foi a coisa mais linda. O mais importante foi que parou de se machucar com frequência e seu cognitivo teve um boom. Ela ainda não fala e tem uma deficiência intelectual bem acentuada, mas hoje já apresenta indícios de que está preparada para o desfralde e demonstra interesse em aprender a se alimentar sozinha.

Por causa de toda minha busca até encontrar um óleo que funcionasse com a Valentina, acredito que os grandes laboratórios poderiam fazer óleos de mais qualidade se tivessem a oportunidade de avançar nessa ciência. Acredito que a decisão da Anvisa exagerou na regulamentação ao limitar a porcentagem de THC a 0,3%, o que não funciona para todos os casos, e a colocar uma tarja preta no medicamento, mas é um passo na direção correta.

O valor do medicamento a base de canabidiol da Valentina atualmente é cerca de 2 mil reais por mês. Só com a liberação do cultivo da maconha para fins medicinais no Brasil isso diminuiria e o remédio se tornaria mais acessível e, com a abertura da concorrência, de melhor qualidade também. Não digo que o canabidiol seja uma cura para todos os problemas, estamos lidando com vidas de crianças, é preciso muita responsabilidade e prudência, mas existem casos e condições médicas em que ele faz toda a diferença para a qualidade de vida do paciente, e a Valentina é um deles”.

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