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Obscurantismo, execuções e papoulas: saiba como foi o primeiro governo do Talibã

Grupo comandou o Afeganistão entre 1996 e 2001, impondo uma visão própria e deturpada do islamismo e colocando milhões de pessoas sob um regime de terror absoluto
Integrantes do Talibã perto de Jalalabad, no Afeganistão, em outubro de 2001, uma semana depois do início da intervenção estrangeira que duraria duas décadas Foto: TARIQ MAHMOOD / AFP
Integrantes do Talibã perto de Jalalabad, no Afeganistão, em outubro de 2001, uma semana depois do início da intervenção estrangeira que duraria duas décadas Foto: TARIQ MAHMOOD / AFP

A volta do Talibã ao poder depois de uma fulminante ofensiva que, em questão de semanas, colocou quase 90% do território sob poder do grupo — incluindo a capital, Cabul, conquistada sem qualquer dificuldade — trouxe à memória dos afegãos o período em que a milícia comandou o país, em um regime de repressão, violência e horror entre 1996 e 2001.

O contexto que antecedeu o primeiro governo Talibã era bem diferente do atual. O Afeganistão estava virtualmente sem uma autoridade central, em meio à guerra civil que sucedeu a ocupação soviética (1979-1989).

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Nesse contexto, o grupo surgiu, em 1994 , com um discurso de combate à corrupção e aos abusos dos “senhores da guerra”, de fortalecimento do governo e de pacificação — algo que, em um primeiro momento, deu-lhe certa legitimidade e apoio por parte da população. Ao mesmo tempo, professava um ideário político e religioso que deixaria marcas profundas na sociedade afegã.

Como conta o jornalista e escritor paquistanês Ahmed Rashid, em seu livro “Taliban” (sem edição no Brasil), a milícia tem como base o deobandismo, um movimento dentro do Islã sunita, que surgiu no período em que o subcontinente Indiano estava sob controle britânico.

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A filosofia ganhou força nas escolas religiosas da região, incluindo no Paquistão, onde muitos dos futuros fundadores do Talibã estudaram, contando em certos casos com financiamento saudita a partir dos anos 1970 — isso ajudaria a explicar o avanço do pensamento radical e por vezes violento herdado de correntes do wahabismo, linha “purista” adotada na Arábia Saudita.

Obscurantismo

Rashid aponta que o Talibã adotou uma vertente radical e singular, que foge de preceitos deobanditas clássicos, como o pacifismo, abraça valores extremistas e refuta ideias externas. Paradoxalmente, vai contra a história do Islã no Afeganistão, tradicionalmente dominada por correntes moderadas, que incluem o sufismo, visto como herege pelo grupo.

“Sua exposição ao debate sobre o islamismo radical pelo mundo é mínima, sua noção da própria história é ainda menor. Isso criou um obscurantismo que não permite qualquer tipo de diálogo, mesmo entre os próprios muçulmanos”, escreveu Rashid.

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Somado a essa visão estreita do mundo, o grupo adota os preceitos do Pashtunwali , espécie de código que rege o estilo de vida dos pachtos, maior grupo étnico do Afeganistão e base do Talibã — para Rashid, o código foi igualmente deturpado pelos fundamentalistas.

O resultado foi um regime marcado por horrores impostos à população, especialmente às mulheres. Com a conquista de Cabul, em 1996, os antes opcionais véus foram substituídos por obrigatórias burcas, vestes que cobrem o corpo inteiro das mulheres e eram algo estranho para boa parte da população não pachto. Escolas e universidades passaram a ser apenas para homens, assim como o mercado de trabalho — sair de casa, apenas com um homem da família. TV, música e qualquer forma de entretenimento estavam vetadas, dentro e fora das residências.

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Quem violasse as regras estaria sujeito a punições extremas, como a amputação de mãos ou braços para pessoas acusadas de roubo, ou a morte por apedrejamento imposta a mulheres apontadas como adúlteras. O estádio Ghazi (“Herói”), palco de jogos de futebol, críquete e até um show de Duke Ellington, nos anos 1960, passou a ser usado para execuções sumárias no gramado. Minorias étnicas e religiosas eram perseguidas e frequentemente mortas.

Lucros

Contudo, alguns se beneficiaram. O Talibã viu no tráfico de ópio uma fonte excepcional de renda: estima-se que 90% da produção mundial venha do Afeganistão. Uma proibição total ao plantio da papoula, em 2000 — ação vista como uma tentativa de melhorar a imagem externa do regime —, elevou drasticamente o preço dos opiáceos e garantiu aos talibãs um lucro considerável anos depois, quando venderam o produto armazenado. Até hoje, essa é apontada como a principal fonte de renda do grupo, apesar de sua filosofia considerar pecado o uso de drogas, algo que pode ser punido com a morte.

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O terrorismo internacional viu também no Afeganistão um lar seguro. Quando foi expulso do Sudão, Osama bin Laden, fundador da al-Qaeda, voltou ao país onde lutou contra os soviéticos nos anos 1980, agora para planejar ataques pelo mundo. Em 1998, depois dos atentados contra embaixadas americanas na Tanzânia e no Quênia, posições do grupo chegaram a ser bombardeadas pelos EUA, sem afetar sua capacidade de ação.

Mas, em 2001, com os ataques do 11 de Setembro, o próprio Talibã tentou se livrar de Bin Laden para evitar uma invasão internacional — pouco mais de um mês depois, as bombas da Otan começaram a cair, e o regime foi deposto em dezembro daquele ano. Bin Laden foi morto em maio de 2011 , em Abbottabad, no Paquistão. Já o Talibã permaneceu ativo nas décadas seguintes e voltou ao comando de Cabul ao mesmo tempo em que as tropas enviadas inicialmente para caçar o líder da al-Qaeda se retiram totalmente do país.