Mundo Estados Unidos

Artigo: No Afeganistão, a sombra do declínio americano

No momento em que Biden buscava reafirmar liderança dos EUA, eventos no país da Ásia Central põem em questão status de superpotência
Afegãos no aeroporto de Hamid Karzai neste domingo, preparando-se para deixar o pais Foto: KIANA HAYERI / Agência O Globo
Afegãos no aeroporto de Hamid Karzai neste domingo, preparando-se para deixar o pais Foto: KIANA HAYERI / Agência O Globo

Não há dúvidas de que o Afeganistão é a herança maldita de Joe Biden, um produto de decisões malfadadas que vieram, em grande parte, do legado de seus antecessores. A crise que agora testemunhamos expõe as fragilidades dos Estados Unidos no momento em que o lema do novo governo era justamente buscar estabilidade e o retorno de uma liderança respeitável.

A crise no não diz respeito apenas à geopolítica, mas a reputação e credibilidade. É o capital político de Biden, para consumo doméstico, que está sobre a mesa. Ela escancara uma série de dilemas antigos dos Estados Unidos, a começar pelo paradoxo do que querem os próprios americanos. Há poucas semanas, pesquisas apontavam para mais de 70% da população apoiando a saída definitiva do Afeganistão. Hoje, diante das consequências disso, têm início, na sociedade estadunidense, uma “caça às bruxas” em busca dos responsáveis pelos resultados obtidos.

Em termos políticos, a decisão de Biden pode ser plenamente justificada, ainda que possa haver um debate sobre a responsabilidade dos Estados Unidos com o Afeganistão, após duas décadas de presença no país. O problema maior não está tanto na decisão da retirada, mas na sua execução atrapalhada, que revela profundos problemas na comunidade de inteligência americana.

Após invasão: Com capacidade para 100 passageiros, avião militar dos EUA decolou com 640 durante caos no aeroporto de Cabul

Há poucos dias, Biden garantia que a saída americana seria ordeira e que o Talibã tinha poucas possibilidades de retomar o poder em curto prazo. As imagens que circularam o mundo desmentiram Biden categoricamente. O presidente americano chegou a descartar explicitamente um cenário similar à desastrosa retirada de Saigon em 1975, que ficou imortalizada na foto do helicóptero no topo da embaixada dos Estados Unidos recolhendo o que restou dos cidadãos que estavam no país. Poucas vezes um presidente americano foi desmoralizado de forma tão rápida e inequívoca. Essas imagens assombrarão Biden durante o resto de seu mandato e serão exaustivamente exploradas pela oposição já nas eleições legislativas de meio de mandato, que ocorrerão em 2022.

Multidão tenta escapar do Talibã pelo aeroporto de Cabul, nesta segunda-feira (16 de agosto). Imagens mostram o que seriam pessoas caindo do trem de pouso de um avião de transporte C-17, da Força Aérea dos EUA.
Multidão tenta escapar do Talibã pelo aeroporto de Cabul, nesta segunda-feira (16 de agosto). Imagens mostram o que seriam pessoas caindo do trem de pouso de um avião de transporte C-17, da Força Aérea dos EUA.

Biden apanhará de todos os lados porque a situação no Afeganistão golpeia de morte a mãe de todas as crises nos Estados Unidos: a sombra do declínio enquanto superpotência. Como na política não há vácuo de poder, os chineses já estão em conversas avançadas com o Talibã. Se conseguirem garantir um mínimo de estabilidade no país, usarão o Afeganistão como um exemplo da eficiência chinesa em contraste com um Estados Unidos pintados como decadentes. As graves violações aos direitos humanos que devem se seguir ao retorno do Talibã no comando do país serão ignoradas pelos chineses. Os americanos, por outro lado, terão pouca autoridade para apontar problemas. Dessa forma, a China terá feito um avanço importante para qualquer potência desafiadora: deslegitimar a potência estabelecida perante os olhos do mundo.

*Fernanda Magnotta é doutora em Relações Internacionais, coordenadora da FAAP e senior fellow do Núcleo Estados Unidos do CEBRI; Carlos Poggio é doutor em Relações Internacionais e professor da FAAP