Cultura
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Por — Saquarema, Rio de Janeiro

A casa onde viviam os pitbulls que atacaram Roseana Murray fica ao lado da dela. O marido da escritora, o jornalista Juan Arias, ainda não consegue passar em frente. Carrega o trauma de ter visto a mulher coberta de sangue, no chão da calçada, após o ataque dos três cachorros que lhe arrancaram um braço e a orelha direita. A rua pacata, de frente para o mar de Saquarema, no litoral fluminense, quase não tem movimento. Mas se tornou parada de gente que transmite carinho e solidariedade a Roseana.

“Rezei por você”, diz um homem que estaciona o carro em frente ao portão. “Deus te abençoe”, grita outro de dentro do veículo em movimento. Ela conta que virou “celebridade”. Que lhe dão tchauzinho, fazem coração com as mãos. No Dia das Mães, um pedreiro órfão a escolheu para tomar a bênção. Na véspera, ela recebeu o maratonista Eduardo Neves, que a salvou do ataque. Em breve, vão as enfermeiras do hospital.

‘Vou festejar dois nascimentos': uma entrevista com a escritora ROSEANA MURRAY

‘Vou festejar dois nascimentos': uma entrevista com a escritora ROSEANA MURRAY

A onda de amor em torno da autora de 73 anos é combustível para seguir em frente. Limitações como a de colocar brincos na orelha implantada são uma nova realidade. Nada é páreo para sua fome de vida. A literatura é outro alimento. Com mais de cem livros publicados, 30 e-books gratuitos e prêmios, Roseana acaba de finalizar “O braço mágico”, inspirado na própria história. Escreveu ainda uma coletânea de poemas sobre anjos. Anjos desta vida terrena aqui. Como os que a salvaram. A força dessa mulher impressiona, como se vê na conversa abaixo e em vídeo disponível no site do GLOBO.

Como você está?

Estou bem. Super animada, cheia de projetos novos e antigos, como o Café Pão e Texto, em que recebo adultos e crianças de escolas públicas, e meu clube de leitura. Coisa mais linda ver como o Brasil se uniu por mim. Tanta gente sofre acidente, Porto Alegre está alagada. Viram em mim algo, e não sei o que é.

Você inspirou muita gente com sua postura diante da vida. Sua vontade de viver fez sua recuperação ser rápida a ponto de surpreender os médicos. De onde vem essa força?

Freud já fala, né? Não seria Eros? É vida. Eu quero viver. Não vou ficar chorando. Eu perdi um braço, mas eu tenho outro. Tenho 73 anos, tenho que seguir em frente. O tempo até a chegada no horizonte não é tão grande. Faltam 7 anos para eu ter 80. Quero que seja bom, quero viver lindamente.

É uma escolha.

Eu escolho. É uma escolha que o poeta tem, o olhar como ferramenta. Transformei meu braço num braço mágico, embora agora ele seja um braço fantasma que sinto. Estou trabalhando isso com medicamento e psiquiatra, fazendo a lateralidade para o lado esquerdo.

Roseana Murray — Foto: Alexandre Cassiano
Roseana Murray — Foto: Alexandre Cassiano

É uma dessensibilização do que sobrou do braço?

É. Porque o cérebro não entende muito bem. Esse braço fantasma dá muito choque, queima, é uma dor intensa 24 horas. O remédio diminuiu a frequência da dor, como se tivesse abaixado o som. Mas eu consigo separar. A dor fica num outro lugar para eu seguir. Estou encantada em ver como somos criativos. Para abrir um pote com uma mão, boto ele no meio das pernas. Estou inventando jeitos até ter a prótese, que quero ganhar de presente.

Vai colocar uma prótese?

Quero ganhar a prótese. É muito cara. Talvez uma empresa ou a prefeitura de Saquarema possam me dar. Vou batalhar por isso, pelo menos por um bom desconto para poder pagar. Quero uma prótese azul. Vi uma foto de uma prótese azul com uma mão preta feito uma luva e realmente me apaixonei.

Como é sua rotina de recuperação? Acorda, vai à fisioterapia...

Eu não vou. Tudo vem até mim. Tenho uma fisioterapeuta que trabalha comigo. Estou começando agora a escrever com a mão esquerda, com uma letrinha de criança. Ainda tenho ferimentos que não cicatrizaram. Melhor retirar toda essa tralha de curativo de cima de mim para poder sair.

A questão estética pega? Quando você escolhe sua roupa, você pensa que vai ter uma manga vazia?

Não, não penso. Acho que eu continuei uma mulher de 73 anos charmosa, de um braço só.

E a cabeça? Porque não dá para passar por tudo isso sozinha...

Eu tenho a minha psicanalista online e uma psiquiatra acompanhando porque eu saí com muitos remédios do hospital. Minha psicanalista diz que fiz uma torção no trauma. Achei isso ótimo. Quer dizer que o enganei. Quando tomei conhecimento de que tinha perdido o braço, eu dei uma afundada. Aí, falei: “Não quero afundar.” Vou escrever história sobre uma avó que perde um braço e transforma essa falta num braço mágico. Acho que é isso que aconteceu comigo.

A ideia veio rapidamente...

Veio ali naquela hora em que subi. Mas não sabia como escrever, achar o tom. Meu filho André deu a ideia de colocar os netos para ajudar. Aí, ficou fácil, com uma pegada mágica. Eles a ajudam no cotidiano, fazendo bolo, essas coisas. O sonho da avó é ter uma prótese. Ela faz coisas incríveis com o braço mágico e aí entra a magia da criança, que não tem nenhum problema em entrar nessa viagem. Como a gente não tem quando lê o Gabriel García Márquez... É um pacto, né?

Você tem dois netos, como foi o encontro depois do acidente?

Tenho o Luiz, de 14 anos, e a Gabi, de 10. Eles foram ao CTI. Deixaram eles entrar excepcionalmente. Precisavam mesmo me ver, precisavam muito me ver. E foi tranquilo para eles. As crianças são inacreditáveis. A vovó estava viva, já tá bom.

Roseana Murray é aplaudida ao sair do hospital — Foto: Gabriel de Paiva
Roseana Murray é aplaudida ao sair do hospital — Foto: Gabriel de Paiva

Há uma memória do momento do acidente ou bloqueou? Sonha com ele? Ela te assombra?

Não sonho. E não bloqueei, ela é fragmentada. Eu estava saindo pra academia e vi que tinha cachorros soltos aqui na rua. É um portãozinho aqui do lado, muro com muro, né? Estava indo para a academia toda feliz. Aí pensei: "Nossas, eles estão soltos, será que vou?". Como estão sempre no muro latindo e a gente passa sempre, achei que não iam me atacar. Quando passei, vieram uns três, me derrubaram no mesmo segundo. Minha sensação era que estavam arrancando mesmo meus pedaços. Me defendi. Botei a cara assim (coloca o braço a frente do rosto), o que foi uma sorte, porque protegi a jugular. Eles foram para cima para matar, não me largavam, foi muito difícil.

Foi quando Eduardo te salvou...

Não tinha ninguém na rua. Eu gritava: "Socorro, eu vou morrer". Eu sabia que eu ia morrer. E não tinha ninguém pra me acudir. Eduardo veio correndo e ouviu os gritos. Arranjou um pau e, não sei como, conseguiu tirar os cachorros de cima de mim. Um homem jogou o carro contra os cachorro. Isso é uma narrativa, não vi nada disso. Só vi quando já tinha um monte de gente e dizendo que haviam chamado os bombeiros e que ninguém podia tocar em mim. Dei uma apagada.

E foi levada para um hospital do SUS, onde foi muito bem tratada...

Esse hospital é maravilhoso. Recebe baleados, esfaqueados, acidentes de todo tipo. Se você é acidentada e vai para um hospital público, tem grande chances de ser salvo. O Alberto Torres, em São Gonçalo (RJ), é um hospital só de trauma. Nunca senti tanto orgulho de ser brasileira como dentro daquele hospital. É nosso! Isso pode existir. Tinham que ter centenas deles.

Eles têm um jardim com flores, árvores. É uma área tão humana. Eles plantam um jasmim para cada órgão doado pelas famílias. E tem as minhas aranhas douradas (como ela chama as enfermeiras). Elas me contaram que, a partir do meu post, passaram a ser famosas dentro do hospital. Porque elas eram invisíveis, né? Estou indo toda semana fazer curativo e eu morro de saudade delas. Vão vir tomar um café comigo.

Roseana, a sua casa, como disse, é muro com muro da casa onde viviam os cachorros. Você passa todos os dias pelo lugar onde tudo aconteceu. Não ficou com vontade de se mudar?

Deus me livre! Não existe isso pra mim. Eu vou passar... Meu marido não consegue passar na frente da casa. Mas ele teve um outro tipo de trauma. Ele me viu ali no chão, morta, num charco de sangue. Está bastante traumatizado. A minha experiência é outra. Eu não ligo. vou passar naturalmente. Ainda melhor: não tem mais cachorro latindo no muro pra gente.

Você trocou o Rio de Janeiro há 20 anos atrás por Saquarema, em busca de uma vida mais tranquila. De repente acontece uma violência dessa. O imponderável da vida...

Totalmente imponderável. Porque esse é o lugar mais calmo do mundo, não tem registro de violência. Daí, você é praticamente morta por três cachorros... Mas também entra nessa balança alguma desatenção minha. Não achei que fosse ser atacada. Não tenho explicação. Não quis me culpar, nem pensar sobre isso. Mas eu deveria não ter ido.

Podemos chamar o que você está vivendo agora como um renascimento? Porque houve uma ruptura com a vida anterior, não é?

Seguramente. Vou festejar dois nascimentos. Um em 27 de dezembro, e o meu renascimento em 5 de abril. Os médicos contam que cheguei com a vida por um fio.

Entende-se a gratidão por estar viva, mas não há revolta em algum lugar?

Não existe. Juro pela memória da minha mãe. Não tenho raiva de nada. Nem revolta. Estou aí pra aprender a fazer as coisas com o meu braço esquerdo, continuar minha vida. Tenho meu marido, Juan, minhas gatas, filhos, netos. Meu sítio em Mauá. Minha vida está aí.

O que identifica na sua criação para ter ser tornado essa pessoa tão evoluída?

A literatura sempre me ajudou. Desde criança. Eu era timidésima. Era uma casa de imigrantes poloneses, judeus que vieram para o Brasil na década de 1920 e se encontraram depois. Cada um veio em um ano diferente. Fui leitora cedo porque minha casa era muito triste, com muito sofrimento. Muitos amigos dos meus pais eram sobreviventes de campo de concentração. Era corriqueira a expressão “neurótico de guerra”. Ouvia essas coisas, sabe? Então eu lia, era bom estar em outro lugar. Cresci lendo e a minha timidez me acompanhou por muitos anos. Até que comecei a publicar. Nem ia escrever pra criança.

Foi por acaso, então, que começou a escrever literatura infanto-juvenil?

Foi. Meu filho mais velho, André, tinha 6 anos e queria ler o que eu escrevia. Mas não era pra ele. Eram poemas muito retorcidos, de busca, de angústia. Meu caminho é cheio de sinuosidade, não segui nunca em linha reta. Então, de brincadeira, comecei a escrever pra ele. Foi a coisa mais maravilhosa da minha vida. A criança é um leitor fantástico, te diz na lata o que pensa, o que acha.

E a literatura te salva de novo agora, além da onda de amor...

O amor tem tanto poder que a gente se pergunta: como que ainda fazem guerra? Por que homens estão no poder? Quem sabe, se as mulheres decidissem se vai haver guerra ou não, elas decidissem: não vou embarcar meu filho num trem pra ir à guerra e não voltar. Homens têm essa violência intrínseca, fálica, da arma. Mulher, não. Explode amor porque é cuidadora. Se não tem filho, tem gato, cachorro, sobrinho, aluno.

Acha que o acidente vai impactar sua literatura, sua linguagem?

Acho que não haverá impacto. Porque é uma continuidade de pessoa, né? Claro que tenho um imenso agradecimento, como se estivesse muito assombrada de estar viva, mas a pessoa é a mesma. Se existe algo, é que estou uma pessoa melhor, mais compassiva e paciente.

Donos de cachorros têm te procurado?

Uma pessoa me mandou e-mail falando que pitbulls são dóceis, que depende dos donos. Discordo. São dóceis até a hora em que não são. São cachorros fabricados e têm surtos de agressividade. Há casos em que matam até os donos. O Brasil tem milhões de leis e nenhuma é respeitada. Guia e focinheira podem funcionar na Suíça. Essa semana uma cadela matou um senhor de 77 anos. Foi direto no pescoço.

Os cachorros que te atacaram estão no abrigo da prefeitura. Os donos, respondendo em liberdade. Acha justo? Ficou satisfeita com esse resultado?

Não tenho nada a ver com esse resultado. Se não fosse eu, seria outra pessoa. Justiça, para mim, seria que essa raça não pudesse mais ser comercializada, dado que é um cachorro instável. A solução seria esterilizar, proibir a venda, mas isso vai ferir interesses imensos. Há a proibição do pitbull em muitos países.

Havia uma iminência desse ataque, inclusive ataques anteriores dos mesmos cachorros...

Sim, quatro BOs (boletins de ocorrência). E nada foi feito. Comentava-se na rua. Tinham quase matado um cachorrinho também. Fugiam, pulavam o muro.

Sei que escreveu, ou melhor, ditou, um novo poema no hospital. Está escrevendo algo novo?

Nunca pensei que fosse conseguir ditar um poema. A vida toda ele vem da mente direto para o braço direito. Estou escrevendo uma coletânea de poemas sobre anjos. Sem nenhuma conotação religiosa. No sentido metafórico mesmo, existencial. O anjo pra mim é a mais bela metáfora. Porque ele é o mensageiro do divino, do que é concreto e do que é divino. É uma figura bonita. Esse Eduardo que me salvou foi o meu primeiro anjo. A equipe de bombeiros, a do hospital. Todos anjos.

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