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Por — São Paulo

Ao descrever uma cena sexo de oral entre o padeiro português Gonçalo e o soldado luso-brasileiro Érico em seu romance “Homens elegantes” (2016), Samir Machado de Machado havia optado pelo explícito “deu uma chupada”. Mas a mãe dele não gostou. Estava muito direto. A história se passa no século XVIII, em Londres, para onde Érico é enviado a fim de investigar o contrabando de literatura erótica para o Brasil colônia. Machado, então, criou uma solução mais elegante para se referir à “sequência de longas e nostálgicas sugadas” de Érico: “aquela demonstração de bom uso da língua portuguesa”.

— É difícil encontrar as palavras certas para descrever o sexo — diz Machado. — Que palavras soam mais naturais no papel? Transar? Trepar? Foder? E como se referir aos órgãos sexuais? Ninguém diz “falo”. Parece poesia pastoril. E “pênis” é muito médico. Qual a dosagem correta entre o literal e o chulo? Como não repetir palavras e imagens ao descrever um ato que é em si repetitivo?

De fato, escrever boas cenas de sexo dá trabalho. Autores que derrapam na hora de descrever a sacanagem viram piada na certa. Quem não se lembra de ter lido uma cena sexual que pretendia ser excitante e só conseguiu arrancar risos nervosos? Não à toa, a revista britânica Literary Review criou um prêmio para escritores que mandam mal: o Bad Sex in Fiction Award. Entre os vencedores, estão nomes como Norman Mailer e Morrissey (sim, que cantava nos Smiths). Em 2009, John Updike ganhou um prêmio honorário após quatro indicações consecutivas. Haruki Murakami também já concorreu mais de uma vez.

Sacanagem homérica

Aproveitando que recentemente aportaram nas livrarias romances que vêm expandindo o vocabulário erótico da literatura brasileira, como “Quarto aberto”, de Tobias Carvalho, e “O presidente pornô”, de Bruna Kalil Othero, o GLOBO perguntou a escritores que entendem da coisa sobre os desafios de escrever sobre os prazeres da carne.

Um dos prosadores mais libertinos do país, capaz de enfrentar orgias que se estendem por páginas e páginas, Reinaldo Moraes afirma que “escrever uma boa cena de sexo é tão difícil quanto escrever uma boa cena de um personagem preparando sardinha na brasa ou subindo uma escada”.

— O instrumental narrativo à sua disposição é o mesmo. Veja a “Ilíada”: há várias sequências de violência. Em uma delas uma flecha entra pela nuca de um personagem e sai pela boca com a língua na ponta! Esses mesmos recursos podem ser usados numa cena de sexo. É só trocar a flecha por um pau, por exemplo. Homero eram bom em descrever como os corpos interferem uns nos outros, adentram uns aos outros. Poderia ter escrito ótimas cenas de sexo — diz o autor de “Pornopopeia”, que manda um recado a seus pares: se quiserem escrever sem-vergonhice, esqueçam os prêmios literários.

E por falar na “Ilíada”, Antônio Xerxenesky confessa que cenas de sexo são o seu “calcanhar de Aquiles”. Em seus livros, os personagens até transam, mas não há descrições.

— Aprendi desde cedo que não sei escrever cenas de sexo. Não encontro as palavras certas. Talvez tenha algo de puritano, ainda que inconsciente. Me sinto mais à vontade descrevendo experiências místicas do que sexuais, algo que permeia toda a literatura brasileira contemporânea — diz ele, que suspeita que sua “recusa” pode ter nascido de certa rejeição à literatura brasileira dos anos 2000, “em que havia uma relação sexual por página”. — Muitos autores hoje falam de uma escrita “do corpo”, mas o que me interessa é uma escrita incorpórea, cerebral e espiritual ao mesmo tempo.

Popular para provocar

No caso de Samir Machado de Machado, foi precisamente a literatura brasileira dos anos 2000 (em especial o trecho lúbrico de “Barba ensopada de sangue”, de Daniel Galera) que o desafiou a escrever cenas de sexo. Ao GLOBO, o autor de “O bom nazista” também citou como inspiração erótica a tradição literária greco-romana, que, diz ele, não se envergonhava de recorrer ao calão e à piada para falar de safadeza. Autora de “O presidente pornô”, Bruna Kalil Othero insiste que nenhum autor brasileiro escreve cenas de sexo melhor que Maria Valéria Rezende (que é freira). Ela concorda que o humor ajuda na hora de escrever sacanagem. Com Hilda Hilst, ela aprendeu a abusar do vocabulário pornográfico popular para provocar o leitor, do “mastruço” (pênis) à “ximbica” (vulva).

— Gosto de misturar sexo e humor para quebrar a expectativa do leitor. No meio de uma cena tesuda, ele dá de cara com “xiriba” (vulva) e brocha na hora — afirma Bruna, que caçou vocábulos sexuais em Hilst e em Oswald de Andrade. — O que busco numa cena de sexo não é o tesão genital, mas uma linguagem que me permita falar sobre outras coisas, como humor, política e questões de gênero. Gosto de colocar homens e mulheres fazendo aquilo que o patriarcado reprova.

Já descrito como “curto e grosso”, Reinado Moraes gosta de “transitar pela putaria trajando um smoking”, ou seja, esmera-se em combinar uma prosa elegante com expressões chulas como “emborrachar o mandrová”. Amara Moira também aprecia testar os limites da língua ao narrar a luxúria. Tanto que não foi fácil traduzir “E se eu fosse puta” (livro inspirado suas experiências passadas como de prostituta) na Argentina: os hermanos não têm expressões equivalentes a “tchaca-tchaca” e “fio-terra”, por exemplo.

— A linguagem pode nos surpreender. Já recebi mensagem de uma amiga lésbica que não acreditava que ficou excitada lendo uma cena minha que só falava de pinto — conta a autora transexual, que, na escrita, busca fugir da espetacularização do erotismo e aproximá-lo da prática cotidiana do leitor. — Em uma cena de sexo, cabe tudo: o cômico, a tensão, a tentativa de impressionar o outro, de imaginar o que ele está pensando, aquele gesto errado que às vezes machuca e pode ser excitante ou não.

“Escritores, tirai vossas ceroulas! Somos herdeiros de João Ubaldo e de Hilda Hilst!”, pede Bruna Kalil Othero — Foto: Mauro Figa
“Escritores, tirai vossas ceroulas! Somos herdeiros de João Ubaldo e de Hilda Hilst!”, pede Bruna Kalil Othero — Foto: Mauro Figa

E quando, afinal, deve-se incluir uma passagem erótica em um livro? No ano passado, internautas pudicos da Geração Z propuseram a criação de um botão para pular sequências sensuais que, na visão deles, não contribuíssem em nada para a trama de filmes e séries. Autores ouvidos pelo GLOBO insistem que cenas de sexo não são gratuitas. Samir Machado de Machado afirma que essas sequências revelam muito sobre o “desenvolvimento dos personagens”. Natalia Borges Polesso reforça que essas cenas precisam estar inseridas em um contexto. Ao descrever o ato sexual, a autora do elogiadíssimo “Amora”, reunião de contos protagonizados por mulheres lésbicas, transforma o narrador em uma espécie de câmera que percorre todo o cenário, não só os corpos dos personagens.

— Esse deslocamento do olhar traz humanidade à cena, mostra que o sexo é algo que talvez escape à compreensão daquelas personagens. Assim como escapa à nossa. Prefiro ser direta ao falar sobre sexo, mas também gosto de escrever pela tangente — explica.

E o que faz uma cena de tão sexo ruim a ponto de merecer um Bad Sex in Fiction Award? Para Natalia, são as metáforas que se pretendem sensuais mas saem ridículas. Ela cita o exemplo de um livro do qual já não recorda título nem autor: na hora da transa, um pênis saltava de uma cueca “como um palhaço de mola de uma caixa-surpresa”. Amara Moira diz que o abuso de clichês mata o tesão. E Bruna Kalil Othero afirma que o excesso de seriedade e explicação estraga a prosa mais sem-vergonha:

— Quando fica muito dramática, meio shakespeareana ou com expressões como “meu membro túrgico”, toda cena de sexo fica ruim. Sexo é brincadeira, é fantasia — alerta a autora, que faz um apelo. — Escritores, tirai vossas ceroulas! Somos herdeiros de Gregório de Matos, de João Ubaldo, de Hilda Hilst! Vamos tirar a roupa e brincar mais.

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