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Maria Valéria Rezende, a escritora que traz o sertão de volta à literatura

Maria Valéria Rezende, a escritora que traz o sertão de volta à literatura

Na contração da literatura produzida nos bairros boêmios de São Paulo e do Rio de Janeiro, Maria Valéria prefere escrever sobre os pobres

RUAN DE SOUSA GABRIEL
19/03/2016 - 10h00 - Atualizado 26/07/2017 16h23

"Deviam proibir gente da minha idade de ganhar prêmio”, afirma a escritora Maria Valéria Rezende. Aos  73 anos, ela foi a última vencedora do Jabuti, o mais prestigioso prêmio das letras brasileiras, mas não é a idade que confere singularidade a Maria Valéria. Desde 1965, ela é freira e vive em João Pessoa, na Paraíba, numa comunidade de irmãs idosas. Quase não parou em casa desde dezembro, quando seu livro Quarenta dias (Alfaguara, 248 páginas, R$ 39,90) foi eleito o Melhor Romance e Livro do Ano pela Câmara Brasileira do Livro (CBL). O Jabuti, que ela desconfia que seja uma “Zebra”, obrigou-a a viajar pelo Brasil para dar entrevistas, falar de Quarenta dias e rememorar seu passado nas fileiras da Teologia da Libertação, a corrente teológica da Igreja Católica que preconiza que o Evangelho exige uma opção preferencial pelos pobres.

Maria Valeria Rezende. (Foto: Adriano Franco/ Epoca)


 

Outros Cantos, de Maria Valéria Rezende (Foto: Divulgação)

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A literatura de Maria Valéria também é marcada por uma opção preferencial pelos pobres. Ela segue na contramão do mercado editorial brasileiro, que, nos últimos anos, mostrou predileção por romances urbanos protagonizados por escritores, professores universitários e jornalistas nos bairros boêmios de São Paulo e do Rio de Janeiro – o gênero apelidado de “literatura da Zona Oeste” por ser ambientado na região paulistana metida a hipster.  Todos invariavelmente barbudos, neuróticos, angustiados e com um fraco por drogas lícitas e ilícitas. Maria Valéria prefere escrever sobre gente que nem sequer sabe ler e escrever. “Eu não entendo nada de rico e também não acho que eles precisam ser mostrados”, afirma. Apesar do olho cego e da catarata, Maria Valéria lê “a meninada toda”.  Mas confessa que ficou um pouco cansada do que chama de “literatura de bar e de alcova”. “Chega uma hora em que não quero mais saber dos sofrimentos íntimos de um jovem jornalista frustrado porque não consegue terminar um romance sobre um jovem jornalista que quer ser escritor”, diz.

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Num ano em que Chico Buarque e Cristovão Tezza tinham livros na disputa, ninguém esperava que o Jabuti fosse para uma freira que recusa a “literatura de bar e alcova”, ou “literatura da Zona Oeste”. Algumas manchetes de jornais nem sequer citavam o nome dela.  “O que eles queriam dizer é ‘velhinha anônima desbanca Chico e Tezza’”, afirma. “E ainda tem essa esquisitice de eu ser freira. As pessoas acham que freira é uma boboca que foi se esconder do mundo num convento porque não arrumou marido.” Quarenta dias, o romance vencedor, acompanha a trajetória de Alice, uma sexagenária que se muda para Porto Alegre a pedido da filha. Alice passa 40 dias vagando por becos da capital gaúcha perguntando pelo paradeiro de um rapaz, filho de uma amiga sua, que seguiu para o Sul em busca de trabalho. Antes de escrever, Maria Valéria se fez de Alice. Comprou uma passagem para Porto Alegre e perambulou pelos becos da capital gaúcha a perguntar: “Conhece um rapaz da Paraíba, o Cícero Araújo, peão de obra, que não deu mais notícias à mãe, desesperada pelo sumiço do filho?”.

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Nascida em Santos, em 1942, numa família católica, Maria Valéria estreou na literatura aos 59 anos, quando publicou Vasto mundo. O livro é uma compilação de narrativas breves nas quais desfilam beatas, sonhadores e cabras-machos. O cenário é o semiárido nordestino, que a freira escritora conheceu em plena ditadura militar. Movida por uma fé política, ela peregrinou pelo sertão para ensinar o povo a ler e escrever e falar sobre a Teologia da Libertação.

Maria Valéria estava no Uruguai quando os militares derrubaram o governo de João Goulart. Durante toda a Semana Santa de 1964, ela participara de um encontro da Juventude Estudantil Católica (JEC). Voltaria para a casa no dia 28, Sábado de Aleluia, mas se machucou e foi impedida de viajar. Na quarta-feira, 1º de abril, ela foi acordada por companheiros com a notícia do golpe. Por questões de segurança, permaneceu mais algumas semanas no Uruguai. Entrou no Brasil pela fronteira com o Paraguai e seguiu, de paróquia em paróquia, até Santos. Durante os anos 1970, escondeu militantes perseguidos pela ditadura e ajudou-os a partir em segurança para o exílio.

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Em seu novo romance, Outros cantos (Alfaguara, 152 páginas, R$ 34,90), Maria Valéria recupera as memórias dos tempos de educadora popular no sertão.  O romance é narrado por Maria, uma senhora que atravessa o sertão numa noite. Pela janela do ônibus, ela observa a paisagem, os passageiros que embarcam e desembarcam e recorda a primeira vez que enveredou por aqueles cantos, há 40 anos. Maria era uma moça urbana e educada na cartilha revolucionária quando chegou a Olho d’Água, um povoado rural no meio do semiárido, para ser professora do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), o programa de alfabetização do governo militar.

As trajetórias de Maria Valéria e de Maria, de Outros cantos, são parecidas, mas a escritora garante que não é a personagem. “Não é autoficção”, diz. Em dezembro de 1972, acompanhada de suas irmãs da Congregação de Nossa Senhora, chegou a Caraibeiras, no sertão pernambucano. A missão das freiras era evangelizar os pobres e organizar cooperativas de trabalhadores. “Eu emprestei à personagem percursos que eu conheço bem, mas nossas personalidades são diferentes.” Maria é sentimental e melancólica, Maria Valéria é prática, gesticula muito e emenda uma história na outra.

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Maria Valéria não gosta que lhe perguntem qual sua rotina de escritora. Ela escreve “quando dá”. Escrever, segundo ela, é apontar para o que passa despercebido. O lápis de Maria Valéria aponta para o sertão, mas ela rejeita o rótulo de regionalista. “Nunca vi classificar de regionalista aquela literatura que só fala de Ipanema ou da Vila Madalena”, afirma. Mas o sertão é mesmo do tamanho do mundo? “Há sertões escondidos em todas as rachaduras do mundo, nos avessos de todas as cidades. Quero que meus livros mostrem esses sertões escondidos”, diz.








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