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Muito além de Murakami: escritoras japonesas fazem sucesso ao criticar papéis impostos às mulheres

Autoras como Banana Yoshimoto e Sakaya Murata questionam a maternidade compulsória; bom momento no exterior reflete prestígio da literatura feminina no próprio Japão
Com público leitor majoritariamente feminino no Japão, escritoras conquistam seu espaço Foto: PHILIP FONG / Agência O Globo
Com público leitor majoritariamente feminino no Japão, escritoras conquistam seu espaço Foto: PHILIP FONG / Agência O Globo

Esqueça Haruki Murakami , o eterno candidato ao Nobel de Literatura e autor de best-sellers que retratam um Japão já distante das tradições milenares. A nova literatura de exportação japonesa é feminina. De uns tempos para cá, vêm chegando ao Brasil livros de escritoras como Yoko Ogawa, Sakaya Murata , Banana Yoshimoto e Mieko Kawakami, cujas críticas à sociedade japonesa vão desde o questionamento do estereótipo “ryosai kenbo” (“boa esposa, mãe sábia”) até a recusa da maternidade.

— Murata e Kawakami discutem muito questões relacionadas ao corpo feminino e a ter ou não filhos — diz Rita Kohl, que já traduziu Ogawa, Murata e Murakami. — Essas autoras não costumam se identificar como feministas, embora Kawakami dialogue com o feminismo de língua inglesa.

Yoshimoto foi a primeira escritora japonesa a conquistar o mundo, ainda nos anos 1990. Seu romance de estreia, “Kitchen”, lançando no Brasil em 1995, pela Nova Fronteira, retrata um inusitado arranjo familiar: uma órfã é adotada por uma mulher trans que já tem um filho. Murata faz sucesso no Brasil com “ Querida konbini ” e “Terráqueos”, romances nos quais os personagens não compreendem as normas sociais e não se interessam por sexo. Já Ogawa explora diferentes configurações familiares e a violência exercida sobre os corpos femininos. Num e-mail ao GLOBO, porém, ela disse que essa violência não tem relação direta com “o desprezo social e político com as mulheres”.

— Cada uma a sua maneira, essas escritoras criticam os estereótipos da mulher oriental submissa, tímida, que fala baixinho, faz tudo com perfeição está e está sempre impecavelmente arrumada — explica Joy Afonso, professora da Universidade Estadual de São Paulo. — Adoraria que se a cada Murakami publicado no Brasil, traduzíssemos duas autoras japonesas.

Yoko Ogawa Foto: Divulgação
Yoko Ogawa Foto: Divulgação

A literatura feminina no Japão não é novidade. Um dos textos mais importantes do período Heian (894-1194). “O livro do travesseiro”, foi escrito, na virada do século X para o XI, por uma mulher: Sei Shōnagon, uma dama da corte que descreve o cotidiano do Palácio Imperial de Quioto. Publicado no Brasil pela Editora 34, “O livro do travesseiro” encantou leitores como o escritor argentino Jorge Luis Borges, que traduziu parte do texto para o espanhol, e o cineasta britânico Peter Greenway, que se inspirou na obra para criar o filme “O livro de cabeceira”, de 1996. Com o início do período medieval e a emergência dos samurais, as mulheres perderam o protagonismo literário e só voltaram a publicar com regularidade após a Restauração Meiji, no século XIX, quando surgiram autoras como Higuchi Ichiyô e Yosano Akiko.

— No período Heian, havia dois mundos literários: o dos homens, com obras e documentos escritos em chinês, e o das mulheres, que escreviam diários, poesias e relatos da vida da corte em japonês — explica Donatella Natili, professora da Universidade de Brasília. — A escrita feminina dessa época era marcada pela experiência subjetiva da mulher e deixou uma grande herança na cultura japonesa. Ao contrário dos homens, as escritoras japonesas não precisaram procurar modelos literários europeus, pois já havia uma tradição autóctone de escrita feminina.

Banana Yoshimoto Foto: Divulgação
Banana Yoshimoto Foto: Divulgação

O sucesso das autoras japonesas no exterior reflete o prestígio que elas têm em seus próprio país: lá, o público leitor é majoritariamente feminino e elas dominam os prêmios literários. As traduções para o inglês também têm ajudado. Meiko Kawakami estourou nos Estados Unidos com “Breasts and Eggs”, que será lançado no Brasil pela Intrínseca. No ano passado, “A polícia da memória”, de Yoko Ogawa, concorreu ao International Booker Prize, que premia os melhores romances traduzidos para o inglês, e vai virar série na Amazon. No Brasil, as autoras japonesas estão espalhadas por várias editoras, como Todavia (Yoko Tawada), Rocco, (Natsuo Kirino), Companhia das Letras (Hiro Arikawa) e Autêntica (Kanae Minato).

Na linha de frente está a Estação Liberdade. Criada em 1989 e batizada em homenagem ao bairro nipônico de São Paulo, a editora publica grandes nomes da literatura japonesa, como Jun'ichirō Tanizaki, Yasunari Kawabata e Yukio Mishima . De uns anos para cá, começou a publicar escritoras japonesas e já conta com um “quarteto feminino” no catálogo: Yoshimoto, Ogawa, Murata, além de Hiromi Kawakami.

— Nosso quarteto feminino é bom de venda. Todas estão entre os 20 autores mais vendidos da editora, em páreo duro com Kawabata e Tanizaki.  A Murata arrasa! — comemora Angel Bojadsen, diretor editorial da Estação Liberdade.

Lançado no Brasil em 2018, “Querida konbini” está indo para a quinta edição. Outro sucesso é “A fórmula preferida do professor”, de Ogawa, que foi selecionado para o Programa Nacional Biblioteca da Escola do Ministério da Educação. Grupos de leitura como o Leia Mulheres e o clube do livro da Japan House, em São Paulo, também tem ajudado a popularizar as autoras japonesas no país. Natasha Barzaghi Geenen, diretora cultural da Japan House, afirma que, dos 18 autores que já lidos no clube, oito são mulheres.

Mais títulos de escritoras japonesas devem chegar às livrarias brasileiras em breve. No segundo semestre, a Estação Liberdade vai lançar “O doce amanhã”, de Yoshimoto, “A piscina seguido de Diário de gravidez e Dormitório”, de Ogawa, e “Entregas expressas da Kiki”, de Eiko Kadano, autora infantil ainda inédita por aqui. Pela Autêntica, deve sair “Where the Wild Ladies Are”, de Aoko Matsuda. Já a Todavia promete mais um título de Yoko Tawada (“The Emissary”) e um de Hiroko Oyamada (“The factory”). A própria Ogawa tem uma sugestão para as editoras brasileiras.

— Uma de minhas escritoras prediletas é Reiko Matsuura, autora de um romance de “O aprendizado do polegar P”, um romance dinâmico no qual o polegar de uma mulher se transforma num pênis — diz.