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'Diário confessional' revela Oswald de Andrade dividido entre pânico material e euforia conceitual

Escritas nos últimos anos de vida do modernista, páginas expressam
Oswald de Andrade Foto: Reprodução
Oswald de Andrade Foto: Reprodução

Dívidas, doenças, dificuldades — o Oswald de Andrade do “Diário confessional” contradiz a imagem que a história da literatura lhe reservou, de autor confiante e solar. Aqui se vê Oswald oprimido pelos juros, como se o “tupi or not tupi” se tornasse “to pay or not to pay”. Com organização de Manuel da Costa Pinto, o livro traz os cadernos escritos por Oswald entre 1948 e 1954, seus últimos anos de vida. Fecham o volume mais dois textos, ambos incompletos: um ensaio sobre a antropofagia e notas memorialísticas sobre a Semana de 1922.

A divisão permite ao leitor achar logo o que lhe interessa. Quem está celebrando o centenário da Semana pode ir direto às notas, onde Oswald fala com vagar e veneno sobre ela. Com elogios a Paulo Prado e críticas a Manuel Bandeira, assim como avaliações ambíguas sobre Mário de Andrade e Graça Aranha, Oswald dá sua versão do evento — um ângulo tão idiossincrático, recortado e parcial quanto interessante.

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Já quem prefere o Oswald pensador irá ao ensaio “A Antropofagia como visão de mundo”. Em prosa mais árida, o autor traz um conjunto eclético de referências. Deus, Fausto, Jurupari, Sancho Pança, Napoleão, Lênin e Rousseau são algumas das personagens a balizar reflexões sobre o caráter cíclico da História ou as implicações profundas da Antropofagia. Prato cheio para um enigma: vale-tudo com verniz filosófico ou contribuição selvagem ao pensamento mundial? Ambos, talvez?

Mas o grosso do livro —e do interesse — está mesmo no diário. Interesse que inspira cautela, pois nesse tipo de material autobiográfico a impressão de transparência bem pode ser só isso: impressão. Até a escrita mais íntima tem algo de performático.

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Por outro lado, também a performance do Eu pode ser esclarecedora. No caso do diário, há dois Oswalds que parecem se apresentar. O predominante é um homem acuado. Pressionado por credores, ele conta de suas andanças por escritórios, em reuniões com banqueiros e empresários, atrás de alívio financeiro. Xinga agiotas. Desespera-se para arrumar as contas sem prejudicar a família. Cogita soluções e o suicídio.

Desperta certa compaixão esse retrato do artista quando negativado. O organizador do livro compara Oswald a Naziazeno, protagonista de “Os Ratos” (de Dyonelio Machado), que roda a Porto Alegre dos anos 1930 para pagar a dívida com o leiteiro. Mas há uma diferença fundamental: ao contrário do modernista, Naziazeno não tinha uma rede de contatos com acesso a financistas graúdos, chegando até ao presidente da República, nem possuía obras de Picasso, Chagall, Miró.

Espaço para literatura e filosofia

O outro Oswald que aqui se apresenta é um homem entusiasmado. Sobretudo quando algum negócio se encaminha, volta o tom confiante de quem se lança em apostas ousadas, estética ou financeiramente. Não por acaso, nesses momentos de respiro, de triunfo na medida do possível, o diário dá espaço à literatura e à filosofia, oswaldiana ou alheia. Vislumbra-se (ou se quer vislumbrar) o contorno do vanguardista intrépido e às vezes estereotipado dos livros escolares.

Fato é que os dois Oswalds não existem separadamente. Pelo contrário: tem uma interdependência. O motor do livro parece ser essa oscilação de humores. Nas palavras do autor: “Às vezes o pânico me derruba, outras é a euforia que me levanta” (p. 200).

Mas, ao fim do diário, a alternância vai dando mais lugar à melancolia, conforme as dificuldades se acumulam. Elas são de ordem pessoal, como a saúde a deteriorar, mas também coletiva: os negócios de Oswald envolvem terrenos e imóveis, numa São Paulo cada vez mais verticalizada e profissional, crescendo e inchando bem mais que na década de 1920. A febre da modernização chegou e o prognóstico não parece bom.

O que leva a uma hipótese. Se considerarmos que a confusão do pessoal e do coletivo, da vida e da obra, permeia não só o próprio autor, como seu impacto de artista e agitador na cultura brasileira, o “Diário confessional” ganha outra camada de testemunho. Talvez a oscilação de Oswald entre pânico material e euforia conceitual expresse tanto — ou mais — da situação brasileira quanto suas teorias. Que o diga seu diário, a misturar rascunhos de poemas e balanço de dívida.

Henrique Balbi é escritor e mestre em Estudos Brasileiros e doutorando em Literatura Brasileira na USP

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"Diário confessional" Autor: Oswald de Andrade. Organização: Manuel da Costa Pinto. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 582. Preço: R$ 99,90.